Tropa de Elite I é o Diário de um Detento contado a partir do olhar do Robocop do sistema. Por Acauam Oliveira

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II

2.1 O Bope, o Brasil e Machado de Assis

Grande parte do impacto e força de TE I está, portanto, – e não me lembro de ter lido isso em nenhum lugar, apesar de ser um dado importantíssimo – em ser o primeiro bem sucedido filme de guerra nacional. O que nos coloca de imediato duas questões fundamentais: como ele transpõe o imaginário de tais filmes para nossa realidade sem perder os dois, o gênero e a realidade, nesse movimento, e como, nessa transposição, consegue ser mais interessante do que o modelo hollywoodiano padrão? As duas perguntas têm, na verdade, um fundo em comum que sustenta a resposta. O acerto do filme com a matéria histórica nacional evita que ele soe como mera cópia mal feita de um modelo prévio, e ao mesmo tempo faz dele uma grande obra, mais interessante do que a média do gênero, pelo teor da novidade.

Podemos pensar o problema da transposição de um gênero para outro contexto a partir do debate brasileiro sobre a constituição de um herói nacional. As tentativas de se criar uma personagem heróica no país, como o Vigilante Rodoviário ou o índio Peri (personagem do romancista José de Alencar), tendem no geral a fracassar, por não adentrar no imaginário local. São no geral encarados como algo de exagero, de deslocamento. Em suma, não convencem. Aqui, a figura que se impõe como heróica é sempre a do anti-herói, ora malandros, ao mesmo tempo ousados, covardes e preguiçosos, como Macunaíma ou Chapolin – que nem brasileiro é – ora figuras marginalizadas, como o cangaceiro Lampião. Em todo caso, nenhuma capaz de encarar a positividade proposta por um Superman.

As raízes dessa dificuldade têm matriz social, e explicam-se pela boa e velha cordialidade [1] brasileira. Nos termos de José Pasta Junior, a imagem do herói não cola por aqui porque a separação entre eu e o outro – no caso, os pólos do mal e do bem – é problematizada pela cordialidade, que consiste na indiferenciação constitutiva entre ordem e desordem, o público e o privado, etc. O ato enunciativo, a relação entre subjetividades, nunca se dá em termos de eqüidade inicial, como numa disputa em que partimos do zero a zero. O modo padrão de relação aqui sempre parte do princípio da disparidade de forças. Um time entra com 11, outro com 4, e a partir daí começa o jogo em zero a zero. Por não se criar um espaço público em que as pessoas se transformem em indivíduos dotados de direitos de cidadãos, a vida social aparece para a ideologia como extensão da subjetividade, dos desejos, daí a regulação pelo princípio do prazer – corrupção, violência – das relações sociais. Ou o eu se suprime diante do outro, por completo, tornando seu os desejos alheios (agregado), ou finge suprimir-se de modo a ganhar o outro para si (malandro), ou ainda a alteridade é bruscamente suprimida pelo eu (senhores). No limite, limpeza étnica e social. Enfim, o modelo de sociabilidade nacional oscila sempre entre dois extremos: o padrão caridade – programa do Gugu, Netinho, Vida de Princesa – e o padrão extermínio – jagunços, escravidão e programas policiais como o de José Luiz Datena. Os dois extremos unidos pelo mesmo princípio, aos amigos tudo, aos inimigos, o rigor da lei. Princípio cordial por excelência. A sociabilidade sentida como luta de morte. [2]

Nesse contexto, o retrato do Outro, a representação deste como objeto, dado o regime local de indiferenciação entre sujeito e objeto, irá se aproximar perigosamente da figura do Eu. O fascínio pelo malandro, o excluído que consegue se infiltrar pelas margens (fascínio que anda de mãos com o desejo de apagar sua existência) existe porque vivemos num contexto em que a exclusão é regra – sempre alguém deverá se submeter a um ego que é ao mesmo tempo superego. Mesmo a representação fenotípica do bandido, o anti-sujeito por excelência, é complicada por não ser possível determinar com precisão, no Brasil, a imagem do Outro. Não é possível indicar árabes, chineses, coreanos, alemães, como o pólo do mal, porque isso também não é sustentado pelo lastro da realidade local. Questões postas pela mestiçagem, outro campo de indistinção. Em suma, o herói, aquele que encarna o bem delimitado pólo da Ordem, não convence enquanto representação da subjetividade nacional [3]. A questão subjacente ao TE I é, portanto, o estabelecimento de uma figura que rompa com a dialética ordem\desordem [4] – do que depende a constituição do herói – sem que com isso se perca o instinto de nacionalidade. O sucesso da solução proposta pelo filme aponta ao mesmo tempo para um compromisso com as raízes históricas brasileiras e um acerto de contas com o presente.

No filme, todo destaque é dado à figura onipresente do capitão Nascimento, um funcionário exemplar, que faz de tudo para não deixar sua vida pessoal interferir em seu trabalho. Quando sente que não dá mais, não questiona o modelo de ação do Bope (isso se dará no segundo filme), mas procura um substituto à altura. Está criada, portanto, a conjunção bem característica de modelo ético incorruptível com prazer de matar, que tem larga tradição no país e cujo maior intérprete foi o romancista Machado de Assis (1839 – 1908):

“Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit.

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.

A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única”. (Assis, 2008)

Trata-se da própria descrição do ethos do capitão Nascimento, a união bem brasileira de cidadão exemplar com carniceiro. O cunhado Cotrim, segundo o narrador, é um pai de família exemplar, preocupado com os seus, mas que vive em um contexto embrutecido que exige a punição dos que fogem da linha. Se ele é truculento e violento, é porque o meio o exige. Além disso, apenas os verdadeiramente culpados são punidos: os escravos perversos e os fujões, ambos tipos que não aceitam seu lugar na escala social. A justificativa moral dos gestos oculta a perversidade do modo de produção escravista, mesma função, aliás, que tem a redução atual da política a uma questão moral, ser ou não ser corrupto, pelo que se pauta o olhar de Nascimento. Moralidade e barbárie caminham de mãos dadas desde os tempos do Brasil colonial, passando por TFPs, ditaduras e afins. Nesse sentido, Nascimento segue no trilho histórico do país. Além disso, desde há muito, como podemos observar pelos elogios feitos por Brás Cubas ao cunhado, essa conjunção já é admirada pelos demais cidadãos de bem, deixando de causar admiração que uma revista como a Veja traga uma manchete nos seguinte termos, em uma matéria sobre o filme, “Finalmente um herói do lado certo”. Sequer perguntaremos aqui a quem se refere exatamente esse “certo”: a resposta é auto-evidente.

O primeiro acerto do filme está, portanto, em colocar como protagonista uma personagem fincada na lógica da cordialidade – verdadeiro princípio organizador da sociabilidade brasileira, em sua face perversa – e explorar essa perspectiva sem concessões, formalizando assim um aspecto social. Entretanto, isso não explica de todo a grande novidade do filme, a construção de um herói tupiniquim. Pois, além de dar conta desse caldo sócio-cultural de base, a obra mantém os dois pés firmemente fincados no presente. A pergunta materialista, no caso, seria: o que mudou nas condições históricas do país, que forneceu a possibilidade de surgimento dessa personagem onde todas as tentativas anteriores foram frustradas ou, ao menos, não tão bem sucedidas?

Para o crítico cultural Roberto Schwarz, o país entrou, a partir dos anos 80, em seu fim de século:

“É sabido que o novo padrão competitivo, íngreme em face das realidades da vida popular, se compõe à maravilha com o nosso descaso secular pelos pobres. Em seu despreparo, estes estão deixando de interessar até como força de trabalho quase gratuita. Passou o tempo em que incorporá-los parecia um imperativo econômico”[5].

João Cesar Rocha, por sua vez, define esse momento como a passagem da antiga dialética da malandragem para a dialética da marginalidade, em que o projeto de integração nacional se esfacela e o Outro se converte em excesso desprovido de função, que deve ser gerenciado ou exterminado [6]. Acreditamos que a melhor definição desse novo estado de coisas é oferecida pelo conceito de Vida Loka do grupo de rap Racionais MCs. Aliás, são os raps do grupo que a nosso ver oferecem a melhor resposta ao posicionamento ideológico do filme.

2.2 Ligando o rádio: Diário de um detento

“São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã.
Aqui estou, mais um dia.
Sob o olhar sanguinário do vigia.
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK.
Metralhadora alemã ou de Israel.
Estraçalha ladrão que nem papel.
Na muralha, em pé, mais um cidadão José.
Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson.
Ele sabe o que eu desejo.
Sabe o que eu penso.
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso.
[…]
quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!
O ser humano é descartável no Brasil.
Como modess usado ou bombril.
[…]
O Robocop do governo é frio, não sente pena.
Só ódio e ri como a hiena.”

[Racionais MCs, Diário de um Detento]

Os Racionais são os responsáveis por uma das melhores e mais contundentes produções estéticas surgidas no país desde o final dos anos oitenta, em todos os campos artísticos, e Diário de um detento [Diário de um detido] é sua obra prima. O rap produzido pelo grupo rompe com certo ideal de integração nacional subjacente ao samba e às suas figuras típicas, que convertem o oprimido em ícone: o malandro, a mulata e o próprio samba, símbolos da nacionalidade e, ao mesmo tempo, testemunhas da exclusão. O rap, por sua vez, é bem localizado e tem endereço determinado, a periferia de São Paulo, e a experiência não pode ser universalizada a não ser em direção a outros marginais que ouçam a mensagem e formem uma espécie de aliança, só possível de modo efetivo caso se rompa com a lógica de violência que estrutura a realidade. Em suma, o rap dos Racionais não pode ser apropriado enquanto símbolo da nacionalidade por ser a própria formalização da falência do projeto civilizatório nacional.

Segundo Walter Garcia [7], é possível depreender dessa canção um sistema, no interior do qual ela se movimenta. Ergue-se uma muralha que separa um emissor, que está do lado dos detentos, de um receptor, um você que “não sabe o que é caminhar, sob a mira constante de uma HK”. Essa muralha é ainda mais intransponível [8] por conta do terceiro elemento fundamental, o “olhar sanguinário do vigia”, que vai sustentar a separação. Podemos dizer que essa configuração da sociedade como uma penitenciária, separada pelo vigia de olhar sanguinário entre os que estão dentro e os que estão fora, vai finalmente tornar possível a distinção mais rígida entre eu e outro no contexto brasileiro e, como consequência, o aparecimento do herói (já o fato do lado da ordem ser o menos defensável é da peculiaridade da sociedade brasileira. O filme jura que não). Pois por mais que o policial seja também um Zé Ninguém metido a Charles Bronson, sua posição no interior do sistema na parte superior do muro, materialização da violência que paira no ar, faz com que esse mínimo de distinção social se converta, literalmente, num caso de vida ou morte. Digamos que Tropa de Elite I é o Diário de um Detento contado a partir do olhar do Robocop do sistema, que é frio, não sente pena, ou seja, um exemplar cumpridor de ordens, quase um burocrata empenhado, e, ao mesmo tempo, gozando com a possibilidade de apagamento literal do outro, só ódio, e ri como a hiena. Mistura de ódio e prazer, burocrata sanguinário.

Em todo caso, tanto em Diário de um detento quanto em TE I, apresenta-se uma separação que impossibilita o trânsito entre as classes e o sonho desenvolvimentista de integração nacional. Marginalidade = cordialidade – mobilidade. A lógica de negação da subjetividade do outro permanece, mas rompe-se a possibilidade de resposta do oprimido. É o fim do agregado, o eu que suprime seu desejo para tornar seu o do outro. É o fim também do malandro, aquele que faz com que o outro deseje o meu desejo. A alteridade é literalmente reduzida à condição de mercadoria descartável. O ser humano é descartável no Brasil, como modess usado ou Bombril.

Comparando os procedimentos estéticos de TE I com outro famoso (e bem mais caro) filme de ação, César Quitério chega à seguinte conclusão:

“[Em O Cavaleiro das Trevas] A mensagem ideológica se torna clara: trata-se do mito do altruísmo americano, de um país que age sozinho para garantir a existência livre e democrática de nações ao redor do mundo […] Já em Tropa de Elite, bem, trata-se de garantir a exploração e reprodução pacífica da miséria, trocando-se a “tranqüilidade” afluente de um dos lados pelo genocídio permanente do outro” (Quitério, 2008).

O ideológico aqui é imediatamente o Real, a morte. Bem mais assustador e contundente do que o quase contemporâneo americano que, a propósito, e por razões diferentes, é outro grande filme. Por seu compromisso com a matéria social, TE I consegue antropofagicamente deglutir e colocar novas questões para o modelo do entretenimento mundial. Movimento que é a própria razão de ser do modelo.

Notas

[1] Conceito criado por Sérgio Buarque de Holanda, em seu célebre livro Raízes do Brasil.
[2] PASTA Jr., J. A. (1999). Romance de Rosa: Temas do Grande Sertão e do Brasil. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 55.
[3] Convêm lembrar que esta situação mudou no contexto mundial, e atualmente, a figura do anti-herói tornou-se também modelo padrão de construção de personagem, tanto em filmes quanto nos quadrinhos e seriados. As condições de possibilidade de Tropa de Elite também estão dadas pela popularização mundial do modelo de herói retratado pelo filme.
[4] CANDIDO, A. (1993). Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo, Duas cidades.
[5] SCHWARZ, R. (1999). Fim de século. In: Seqüências Brasileiras. São Paulo, Companhia das Letras.
[6] ROCHA, J. C. C. (2004) Dialética da marginalidade. In: Folha de São Paulo – caderno Mais! 29 fev.
[7] GARCIA, W. (2007) ‘Diário de um detento’: uma interpretação. In: NESTROVSKI, A. (Org.). Lendo música. São Paulo, Publifolha.
[8] Ou quase, pois o rapper consegue atingir o outro lado do muro. Não como o malandro, transitando entre os espaços porosos, mas através das idéias que atravessam sua mente, sem quebrar com a corrente, sem nunca deixar de ocupar o lugar que lhe cabe, ao lado dos vencidos.

A Bibliografia será publicada na última parte do artigo.

6 COMENTÁRIOS

  1. O Rap “Diário de um detento” é mesmo o diário de um detento e foi escrito por um preso chamado Jocenir. Inicialmente um poema, a letra do preso foi musicalizada pelos Racionais, não são eles os autores.

    Discordo que não se defina no Brasil uma imagem do outro, do que se teme. Como se formou uma elite e uma classe média majoritariamente branca, filha de migrantes europeus, árabes e asiáticos, o outro é representado justamente pelos tons cinza da pobreza: o pardo, o feio, dentes precários, a pele escura.

    Como não houve conflitos que criassem um inimigo externo, o imaginário de guerra dos moradores de Barão Geraldo, da classe média, traz como inimigo o próprio povo, pele escurecida, pobreza, os que não possuem todos os dentes…

    A questão da mestiçagem traz problemas seríssimos porque as desigualdades econômicas são tingidas por ódios baseados em diferenças na cor da pele.

  2. a barbárie, o estagio pré civilizatório, a ausência completa dos pressupostos da modernidade (padrões republicanos de governo, educação minimamente eficaz, consciência critica, organicidade social, a prosperidade induzida do exterior, a ausência de padrões de civilização, religiosidade primitiva) faz qualquer analise com tintas marxianas se tornar mera louvação da marginália…a má consciência de pequenos burgueses que se dizem de esquerda buscando na delinquência sua identidade secreta para uma ação para a qual não estão preparados e não desejam efetivamente.

  3. Não acho que se possa definir o TE como um filme facista.

    Nascimento é um herói destrutivo, cumpridor das suas funções, mas também é uma pessoa psicologicamente confusa, conflituosa, sobretudo na sua vida pessoal (e esse conflito, essa dúvida, vai se estender no TE II à própria estrutura da polícia e do governo, colocando em questão a sua própria eficiência como fucionário e o papel que ele deve exercer).

    Gosto particularmente dos racionais também pela conflituosidade, pela complexidade psicológica que se expressa nas letras – um “jesus chorou” ou na “fórmula mágica da paz”, por exemplo.

    Me parece que da mesma forma que não se deve olhar o TE como um filme facista não cabe olhar o racionais tão somente como um discurso de revolta do marginal contra o sistema – um discurso destrutivo, despersonalizador, desfragmentador, fundado tão somente na ótica da exclusão social, etc.. Se fosse somente isso muito da riqueza da rima deles seria perdida.

    fica um trecho da fórmula mágica da paz

    “Pôrra, eu tô confuso. Preciso pensar. Me dá umtempo
    pra eu raciocinar.
    Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá, minha ideologia enfraqueceu.
    Preto, branco, polícia, ladrão.. ou eu, quem é mais filha da puta, eu não sei! Aí fudeu, fudeu, decepção essas
    hora… a depressão quer me pegar vou sair fora.”

    Me parece que depois de uma primeira fase dos racionais, ligada ao movimento negro norte americano, a fase da juventude deles (bem clara numa música como “racistas otários” – que tem uma letra sensacional – ou “negro limitado”), depois dessa fase, surge uma segunda, mais conflituosa, onde as suas ideologias são colocadas em dúvida, e essa é certamente a fase mais rica, dos clássicos, dentre os quais o “diário de um detento”.

    Enfim, em suma, a minha discordância com o texto (apesar do gosto pelos racionais em comum) se dá no próprio fundamento da arte. Eu não consigo admitir a arte à serviço da política, ainda que no âmbito do conflito de ideologias. Acho também que o artista que se limita a ser um produto do seu meio (um cara que veio da favela, marginalizado, que se limita a destacar seus status de marginalizado e de repetir um discurso ideológico ou ideologicamente direcionado), é, por definição, um político e não um artista. O artista deve buscar transcender isso, deve buscar construir um discurso diferenciado, que explore as sutilezas da alma humana e quiça se projete para além dela, ainda que se dê a partir de um universo reduzido (como a periferia ou qualquer outro microcosmo)

    O TE explora as complexidades e conflitos do homem colocado numa situação de guerra com muita sutileza; a desumanização do inimigo, a separação entre guerreiro e pai de família, etc.. defini-lo como filme facista para mim é colocar todo o regime artístico sob o reflexo de uma paranóia política que inviabilziaria a própria arte como a concebo. Não que devamos execrar a política da arte, não! Mas devemos tomar cuidado com certas interepretações reducionaistas.

  4. Caro Zé,

    Não acho que se possa eximir o caráter fascista do filme pelo simples fato de haver psicologização complexa dos seus personagens. Ao contrário, parece-me que os conflitos e as confusões mentais do Nascimento, que nem são tão complexos assim, guardam analogia com a contradição, esta social, entre a necessidade de se revoltar com o atual estado das coisas e ao mesmo tempo mantê-las dentro da ordem. É essa tensão que o faz se olhar no espelho e já não mais se reconhecer, como se fosse movido por forças para além de sua vontade, sendo o sujeito, aqui, apenas o ponto em que se concentram e se encarnam as necessidades históricas.

    Poder-se-ia dizer que o autor da obra, então, apenas estaria exprimindo, ou denunciando, as contradições do mundo real, os elementos objetivos que se encontram dispersos e latentes na sociedade, sem qualquer compromisso com a sua resolução. Mas Padilha, com ou sem consciência, assume posição, não pelas convicções políticas que ele declara ter em outros momentos da vida (já disse que não acho que Padilha é fascista, acho até que é um progressista) ou por algum discurso mais explícito do próprio filme, mas pelos recursos artísticos que ele escolhe para nos mostrar estas questões. Em parte, concordo com a ideia de que a arte não pode ser colocada pura e simplesmente à serviço da política, ou melhor, que os autores utilizem a obra ou um personagem dela para expressarem suas opiniões através de um discurso direto, chato e enfadonho. No entanto, haverá sempre um teor político emergindo de sua unidade; a qual, no caso de TE I e II, é fascista, a despeito do que pensa Padilha, do que se passa na cabeça de Nascimento ou de qualquer outro personagem do filme.

    O problema não é ele contar a história pelo ponto de vista do Nascimento, mas o conjunto de recursos que se usa para contá-la: do mesmo modo que o herói é assimilado pelo ambiente em que está inserido, também o espectador é deixado levar pela tendência fascicizante da história; somos induzidos a admitir a “guerra” como se fosse um dado inevitável e, portanto, justificável.

    Enfim, dá o que pensar…
    Abraços,
    Taiguara

  5. Desculpe Damastor, mas não entendi se vc quis dizer que o artigo apóia a “marginalidade”, ou faz apologia do crime ou coisa assim… então não irei tecer comentários.

    Zé, eu acho que o Taiguara já respondeu bem a sua colocação. Mas eu concordo com o seu enunciado de que não seja um filme facista, embora por razões diferentes das suas. Eu acredito que o conservadorismo do filme é, propriamente, nacional, e não tem ligações diretas com o facismo enquanto evento histórico. O nosso conservadorismo é de outro tipo, e chamar de nazista por vezes encobre especificidades importantes que mais obscurece do que esclarece os eventos.

    Só como um argumento a mais, lembro das críticas que o Zizek faz ao filme Munique, do Spilberg. Os defensores do filme também lançavam um argumento parecido com o seu, de que o filme não era conservador (ou seja, politicamente engajado em uma postura conservadora) porque os soldados israelenses eram mostrados como dotados de complexidade psicológica, podendo ser bons ou maus, frequentemente embaralhando essa oposição de forma mais humana (e assim marcando uma posição estética, aquém ou além do mero político). Mas é justamente nessa humanização que se encontra o movimento ideológico mais profundo: enquanto os assassinos israelenses são retratados de maneira “humana”, os palestinos são tratados de maneira muito mais chapada, sem complexidade. Dessa maneira, toda complexidade pós moderna (os verdadeiros valores a se defender) estaria do lado israelense, enquanto os palestinos estão sempre uma passo aquém da complexidade humana (o que justifica sua superioridade no exato momento em que a questiona). Sem forçar paralelos, creio que é possível ver algo desse movimento em Tropa de Elite I, a “complexidade” do Nascimento se define por oposição à animalização dos bandidos, sendo mais um elemento a favor de sua valorização enquanto herói.

    Mas o que eu quis argumentar com o texto, Zé, é, sobretudo, contra o risco que vc bem aponta das argumentações reducionistas. Embora ele seja, a meu ver, um filme conservador, essa qualificação não serve para dizer que não se trata de um grande filme. Mas também quis fugir do risco oposto: por ser um grande filme, temos que considerar necessariamente que não se trata de um filme conservador. Ao contrário, é nessa ambiguidade que o filme ganha em valor e força.

    Abraços
    Acauam

  6. Estou gostando bastante da série, acho ela um esforço muito rico de se analisar o filme. Talvez por um pouco de birra com a psicanálise, mas achei que sobrou aí alguns conceitos, acho que convém mais para esse tipo de texto tentar usar os argumentos numa chave menos hermética como a da psicanálise, ainda que isso dificulte algumas passagens.

    Eu talvez saia um pouco do mérito do conteúdo do filme, que é mais o que está sendo analizado, mas me parece que o filme, assim como 99% do que passa nas salas de cinema comerciais, é conservador. Não apenas por sua estética, mas por sua produção e divulgação. Se pensarmos o conceito ampliado de audiovisual, num mundo com câmeras de filmas em celulares, compartilhamento massivo de vídeos via internet, as novas possibilidades de produções de baixo custo, tendo tudo isso e mais em mente, a idéia de qualquer mega-produção, produzida com dinheiro de mega-empresários e na forma de um investimento de capital (muito mais do que uma divulgação ideológica), organizada de forma altamente especializada e hierarquizada como são os sets de filmagem do cinema de hoje, não há conteúdo estético que passe por cima de toda essa reprodução material de um certo tipo de organização social.

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