Uma nova identidade operária é necessária e possível, é o ponto de partida para as novas lutas. Por Daniel Lage
Leia aqui a 1ª parte deste artigo.
O novo operariado
Tentemos deixar de lado a classificação do IBGE sobre os grandes setores de atividade econômica e pensemos do ponto de vista das atividades envolvidas na produção de capital. Quantos trabalhadores hoje estão envolvidos na produção direta de capital? Quantos são hoje os chamados trabalhadores produtivos? Definimos, na esteira de Marx, trabalhadores produtivos todos aqueles que estão envolvidos diretamente no processo de produção de capital, isto é, os que são atores diretos no processo de valorização do valor. São todos aqueles trabalhadores que dentro de sua jornada estão submetidos à extração de mais-valia através da exploração do trabalho [1] – estando envolvidos em um processo de produção de mercadorias, produzem um valor maior do que eles mesmos valem dentro desse processo, cumprindo assim papel fundamental na produção de capital. Ou seja, são trabalhadores produtivos em relação ao capital, mesmo que realizem atividades muito pouco produtivas do ponto de vista humano.
Da mesma forma, definimos como não produtivos para o capital os trabalhadores que não produzem mais-valia, isto é, que não estão inseridos em atividades produtivas de capital, mesmo que exerçam atividades muito produtivas do ponto de vista humano. Assim, a partir dessa definição, estão excluídos do grupo dos produtivos, por exemplo, os trabalhadores assalariados do setor público, os trabalhadores do comércio, atacado e varejo, assim como os trabalhadores das instituições financeiras, os autônomos e profissionais liberais. Por outro lado, estão incluídos no grupo dos produtivos, além dos trabalhadores fabris, os trabalhadores da construção civil, os trabalhadores do ensino privado, os trabalhadores da saúde privada, os trabalhadores dos transportes de cargas e de pessoas, os trabalhadores dos correios e comunicações, da TV e Rádio, os trabalhadores da agroindústria e etc.
Desse ponto de vista, há um grupo bem maior de trabalhadores que cumprem o papel de produtivos que comumente vemos apenas nos trabalhadores da indústria. Afinal, para o capitalista, não importa o que se produz, importa o quanto se lucra com o que se produz, isto é, o quanto de mais-valia é possível extrair do trabalhador independente da atividade que ele exerça. Por conta disso, para além dos ramos mais evidentes na produção de capital, como construção civil e transportes, temos também que considerar novos ramos de trabalho que acabam de ingressar na esfera produtiva. As recentes mudanças na organização do trabalho, principalmente a terceirização, essa “nova forma de empregar”, reorganizou ramos inteiros de atividade que transforma uma série de “prestadores de serviços” nos mais recentes produtores de capital.
Um dos ramos que podemos utilizar como exemplo dessa mudança são os trabalhadores da limpeza. Esses trabalhadores a muito são identificados como do setor de serviços e, portanto, não produtivos. Entretanto, a partir do momento em que esses trabalhadores são contratados por uma “empresa de limpeza”, a qual é contratada por outras empresas, de forma terceirizada, para produzir limpeza nos edifícios, nas escolas, nas ruas e etc., esse ramo de atividade passa a ser produtivo para o capital. Pois agora esse trabalhador não está mais “prestando um serviço” e seu patrão não paga a ele um salário para ele limpar as instalações como antes. Agora que esse trabalhador faz parte da “empresa de limpeza X”, ele recebe um salário de um patrão que vende limpeza, e ele agora é um operário da limpeza, pois fabrica uma mercadoria, “coisas limpas”, que vale mais do que ele mesmo recebe. Apesar de não ser tão palpável quanto um automóvel, a nova atividade de produzir limpeza é uma atividade capitalista como as outras, tem dinâmica própria, empresas concorrentes, ações na bolsa e operários. Portanto, aquele trabalhador que antes prestava um serviço em troca de salário, hoje está inserido em um processo de valorização do valor e trabalha numa “fábrica de produção de limpeza”. Uma reportagem publicada na Folha de São Paulo no dia 7 de agosto de 2011, sob o título “Terceirização move Setor de Limpeza”, ilustra esse movimento que descrevemos:
“A terceirização do serviço de limpeza, segundo especialistas, é o que move o setor, que faturou R$ 15,2 bilhões no ano passado. Há facilidade na abertura de empresas nessa área, afirma Pedro Luiz Paulucci, sócio da Top Marketing Comercial. O investimento inicial é baixo e é possível abrir o empreendimento com endereço residencial, explica. (…) Paulo Gonçalves Peres, 40, sócio da inService, já acumulava experiência no mercado de limpeza quando abriu a empresa, há nove anos. “Demorou dois anos para o negócio ‘virar’ [dar retorno]”. No início, foram investidos cerca de R$ 60 mil. Hoje, a empresa tem 1.500 funcionários e faturamento anual de R$ 45 milhões.”
Ora, de onde vem esse rendimento senão da exploração do trabalho desses novos operários? Se pensarmos que essa mudança no mundo do trabalho, chamada de “terceirização”, acontece de forma massiva também com os trabalhadores de reparações, manutenções e instalações, e tantos outros ramos e atividades, o grande setor não produtivo dos serviços acabou por tornar-se um gigantesco setor produtivo de capital.
Assim, há milhões de trabalhadores que passaram a estar submetidos ao trabalho produtor de capital. Isto é, estão agora submetidos às “leis da produção de capital” como um trabalhador fabril: extensividade das jornadas, intensividade do trabalho, controle de produtividade e qualidade, metas, e etc. Ou seja, toda a série de medidas de controle da extração de mais-valia passam a valer em setores que tradicionalmente não estavam determinados por essa lógica, e um número maior de trabalhadores passa a ter seu trabalho explorado. Evidentemente, há setores que não são produtivos e que são impelidos a seguir a mesma lógica de produção. Exemplo disso é a recente aplicação de metas para os atendentes do INSS, e servidores públicos em geral. Do ponto de vista da produção do capital, os trabalhadores da Previdência Social não produzem mais-valia, contudo, são impelidos a seguir uma intensividade de trabalho semelhante à realizada pelos trabalhadores fabris. Vale lembrar que, como dissemos anteriormente, ser produtivo ou não produtivo não diz respeito à qualidade do trabalho realizado, mas sim à produção e acumulação de capital. Segue, então, o gráfico 10, que considera os subsetores 16, 17, 18, 19 e 20 como atividades não produtivas, e o restante dos subsetores como produtivos:
Observando o gráfico 10, vemos que pelo menos 50% da força de trabalho em atividade pode estar envolvida diretamente com a valorização do valor. Do ponto de vista do capital isso significa mais extração de mais-valia do que antes. Do nosso ponto de vista, o que essa perspectiva nos permite ver é o aumento do número de trabalhadores operários não só na indústria, mas em outros setores que antes eram somente assalariados e não produtivos. Isso significa que parte do conjunto da classe trabalhadora que não estava tradicionalmente ligado à valorização do valor passa a estar submetida às leis do capital e a compor o que poderíamos chamar de “grande setor produtivo”. Portanto, mais do que simplesmente crescer numericamente, a classe trabalhadora passou por uma mudança qualitativa: há novos operários sendo incorporados a todo vapor à produção de capital.
A “nova classe média”
Visto que as recentes mudanças na qualidade das relações de produção ampliam a massa explorada de trabalhadores, seguimos para o último pilar do senso comum que apresentamos: afirma-se comumente que os operários ganham altos salários e por isso compõem a classe média ou classe média alta. Antes de entrarmos no debate sobre a definição do que seria uma classe média e o que significa falar de uma classe média operária, vale a pena voltarmos à classificação do IBGE e verificarmos os dados da evolução salarial dos trabalhadores por faixa de remuneração e atividade. Os dados disponíveis sobre remuneração são do banco de dados da RAIS e dizem respeito, portanto, aos trabalhadores com registro em carteira. Para atualização dos valores dos salários nos respectivos anos para os dias de hoje utilizamos dados do IPEA.
O primeiro aspecto que podemos apontar no gráfico 11 é que de 1985 até 1998 os trabalhadores da indústria tinham a maior média salarial em relação aos outros setores. Contudo, a partir de 1998, o setor de serviços, puxado pelos trabalhadores da administração pública, passa a ter a maior média salarial. Isso significa que o imaginário comum que constrói um passado no qual os trabalhadores da indústria tinham piores salários é completamente falso. Ou melhor, está invertido. É no passado que os trabalhadores da indústria detinham a melhor média salarial da classe trabalhadora, não hoje. Contudo, é fato que os trabalhadores da indústria têm remuneração mais alta do que os trabalhadores da construção e do comércio.
Um segundo aspecto interessante de se notar no gráfico 11 é que a média dos salários dos trabalhadores da indústria em 2010 é próxima da de 1994. Ou seja, não há um crescimento contínuo da média salarial. Pelo contrário, vemos que entre 1994 a 2002 há um recuo na média dos salários que cai de R$2.043 para R$1.726 seguido de uma recuperação de 2002 até 2010. Respectivamente, um recuo do valor dos salários nos oito anos de governo de Fernando Henrique e um aumento dos salários nos oito anos de governo de Lula.
De modo geral, em relação ao imaginário comum, esses dados nos mostram que hoje, em primeiro, não é o trabalhador da indústria o melhor remunerado, mas sim os trabalhadores dos serviços, setor no qual se encontram os servidores públicos que historicamente são melhores remunerados do que o conjunto da classe trabalhadora em atividade. E, em segundo, não há um crescimento progressivo dos salários dos trabalhadores da indústria e de nenhum outro setor. O que vemos são avanços e recuos no valor pago aos trabalhadores a depender da conjuntura política e econômica do país.
Contudo, é importante lembrar que a média salarial é calculada pela soma de todos os salários dos trabalhadores de um setor, inclusive dos que assumem cargos de liderança e chefia, dividida pelo número de trabalhadores desse mesmo setor. Por isso esses dados têm um problema: se um setor emprega uma quantidade pequena de chefes, mas esses recebem muito acima do restante dos trabalhadores, a média dos salários vai esconder a maioria dos trabalhadores que ganham menos no setor. Assim, se considerarmos um cálculo por faixa salarial veríamos que grande parte dos trabalhadores recebem menos do que a média, pois os cargos de liderança por serem melhores remunerados jogam a média para cima. Por conta disso, elaboramos a tabela a seguir, que traz a porcentagem dos trabalhadores por faixa salarial e por setor de atividade.
Podemos verificar, pela tabela, o importante dado de que mais da metade dos trabalhadores da indústria em 2010, 57,66%, tem remuneração média de 0 a 2 salários mínimos, valores correspondentes a no máximo R$1.138 por mês. Se somarmos esses aos trabalhadores que ganham de 2 a 3 salários mínimos em 2010, isto é, no máximo R$1.708, temos 71% da classe operária nessa faixa salarial (de R$0 a R$1.708). Comparativamente, ao observar o ano de 1985 vemos que 60,21% dos trabalhadores da indústria tinham uma remuneração de até R$915; somando esses trabalhadores com os que estavam na faixa de salário de 2 a 3 salários mínimos em 1985, temos que 70% dos trabalhadores da indústria naquela época ganhavam no máximo R$1.373. Ora, se ocorreu algum grande aumento na remuneração real para a maioria dos trabalhadores da indústria nos últimos 25 anos, esse valor é de no máximo 335 reais para quem ganha o valor máximo que são 3 salários mínimos. Somente alguém com um senso de realidade desregulado poderia considerar que um aumento de 335 reais em 25 anos de trabalho seja algo relevante para colocar os trabalhadores fabris no patamar dos bem remunerados da sociedade brasileira. Do ponto de vista comparativo com a remuneração dos trabalhadores de outros setores da economia, podemos afirmar que assim como na construção civil, no comércio e no grande setor de serviços, a maior parte dos trabalhadores registrados da indústria ganha de 0 a 2 salários mínimos mensais. Lembrando que os valores aqui apresentados estão atualizados para o mês de maio de 2012.
Esses dados revelam uma das construções ideológicas mais perversas sobre os operários: de que são classe média. Por mais controverso que seja o termo e já venha carregado de ideologias, façamos o exercício de pensar a imagem comum da classe média. Isto é, uma família cujos filhos estão em escolas privadas, que possui assistência médica ampla, que tem casa própria e um carro na garagem. Seria possível com um rendimento de R$1.708 mensais, uma família pequena, de 3 pessoas (cônjuges e uma criança), ter esse padrão de vida? Evidentemente, os operários brasileiros estão muito longe desse “acesso”, e a imagem da classe média parece não corresponder à renda de 71% dos trabalhadores da indústria. Vale considerar que esses mesmos trabalhadores possuem rendimento abaixo do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, no valor de R$2.383,28 atualmente. Talvez as moradias subnormais, favelas e aglomerados urbanos, tenham mais a nos dizer sobre como vivem os trabalhadores da indústria no Brasil do que se imagina.
Contudo, para botar à prova a ideia de que o operariado é classe média, não basta identificar a irrealidade de ser classe média do ponto de vista da renda. Temos, sobretudo, que investigar sua possível eficácia do ponto de vista dos hábitos, comportamentos e costumes. Afinal, como afirma Marx e Engels, o poder das construções ideológicas está justamente em conseguir representar algo realmente, sem representar algo real [2]. O que nos traz a pergunta: será que é possível que o operariado brasileiro se identifique como classe média, mesmo não tendo condições para realmente sê-lo? Por ocupar um lugar de extrema importância na produção da vida na sociedade capitalista e ser responsável direto pela manutenção dos lucros e das condições de reprodução da classe dominante, a identidade que se forma entre os trabalhadores da indústria é fundamental para a conjuntura da luta de classes. Nos últimos 30 anos vimos o “novo sindicalismo”, iniciado pelos metalúrgicos do ABC paulista, protagonizar a construção de uma identidade operária. Muitos dos principais personagens que construíram essa nova identidade estão hoje em cargos importantes do executivo, tendo como modelo padrão o ex-presidente Lula, ex-metalúrgico. Apesar de aparentemente ser uma identidade calcada no ganho salarial e em um forte corporativismo, seria preciso um estudo qualitativo de peso para apontar quais as características da identidade operária criada no ABC e em qual momento, afinal, ela se encontra. Não obstante, as políticas do governo Lula, e sua continuidade por Dilma Rousseff, apontam para uma descaracterização da identidade de trabalhador para a celebração do mote “somos todos classe média”. Fato que retrospectivamente pode ter algo a dizer, mas o que é possível verificar agora é uma política de desagregação da classe trabalhadora por parte do governo.
Como exemplo, recentemente, a SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal) estabeleceu, finalmente, a faixa de renda que corresponde hoje a da classe média brasileira. Depois de longa discussão, foi dito que fazem parte da classe média brasileira os trabalhadores que têm renda per capita familiar entre R$ 291 e R$ 1.019. Sem desconsiderar o bom humor do governo na falta de correspondência entre a faixa estabelecida e o que comumente chama-se de classe média, pensemos no caso do atual trabalhador da indústria. Pensemos que no melhor dos casos, estando ele entre os 71% dos trabalhadores desse grande setor produtivo, ele seja um privilegiado e receba mensalmente R$1.708. Se considerarmos que ele tem uma família composta por uma esposa e um filho e que com seu salário sustenta a todos, pois bem, nosso operário é o mais novo membro da classe média brasileira com renda per capita de 569,33 reais mensais. Não à toa a secretaria é de assuntos estratégicos, e parece muito oportuno definir que a maior parte da população economicamente ativa do Brasil compõe a “nova classe média”.
Ao fim e ao cabo a definição de classe média da SAE tenta colocar nessa categoria a maioria dos trabalhadores assalariados, substituindo oportunisticamente o que seria a linha da pobreza pelo conceito de classe média. Evidentemente, para quem quer governar sem perturbações, esta é a identidade ideal para a classe trabalhadora. Pois a classe média sabe que está melhor que outra parcela da sociedade, os mais pobres, e, justamente por isso, permanece submissa aos que lhe proporcionam essa posição, os mais ricos que lhes pagam os “bons salários”. Além disso, há um estímulo explícito do governo ao comportamento consumista e competitivo que alimenta valores individualistas típicos dessa camada média. Fatores que somados garantem a tranquila acumulação de capital e a harmonia nas relações de trabalho. Assim, estamos diante da ideologia que marca o período atual. Do ponto de vista salarial não podemos dizer que houve avanço suficiente para gerar um padrão de consumo que eleve os operários ao padrão classe média. Mas, sob direção do Partido dos Trabalhadores, a classe trabalhadora é tratada e reconhecida como classe média, criando terreno pouco favorável à identidade de classe que esse mesmo partido construiu. Troca-se o mote “trabalhador só vota em trabalhador” da origem do partido pela sua negação consentida “somos todos classe média”.
Questões de classe
Primeiramente, esperamos ter cumprido com o objetivo proposto de desconstruir ideias do senso comum sobre o operariado brasileiro. O imaginário que elabora um “passado operário” e um presente de outra ordem não se justifica tanto pela quantidade de trabalhadores ativos quanto pela qualidade das relações de produção. Nesse sentido, hoje a classe operária é numericamente maior e proporcionalmente semelhante àquela de trinta anos atrás. Ou seja, este imaginário, como toda ideologia presente no senso comum, apresenta a realidade invertida. Por sua vez, é uma eficiente ferramenta de dominação de classe cuja característica fundante está em esconder tanto as próprias classes quanto as relações de produção da vida.
Em consequência, a constatação de que quantitativamente a classe operária ainda está de pé nos serve também para colocar o debate nos seus devidos termos: é na qualidade das organizações de classe que se encontram as boas perguntas e as saídas para a luta contra a exploração do trabalho. Assim, não é trivial que seja sob a direção do Partido dos Trabalhadores que o operariado cresça substantivamente, e, ao mesmo tempo, esteja pacificado politicamente.
Nesse sentido, compreendemos que não basta apontar os limites das políticas públicas implementadas pelos governos Lula e Dilma, justamente porque há avanços importantes na diminuição da miséria e no aumento do acesso à educação, por exemplo. É preciso, antes de tudo, recompor quais são as bandeiras das lutas operárias. E assim voltar ao Partido dos Trabalhadores e entender qual identidade de classe, por ele protagonizada, permite que o fim da exploração do trabalho seja posto de lado. Ou melhor, qual é a identidade criada que permite que a intensificação da exploração do trabalho sob condições desumanas, como se viu nas greves das grandes obras do PAC (Plano de Aceleração do Desenvolvimento) em Jirau e Pecém, seja comemorada como conquista da classe trabalhadora.
Por fim, cremos que entender que a realização do projeto do Partido dos Trabalhadores significa uma classe operária que não se enxerga como classe; que se apresenta dócil para as altas taxas de exploração a que é submetida; que está entregue às formas selvagens de extração de mais-valia típicas da periferia do capitalismo; e que comemora e chora junto com os sindicatos patronais o crescimento ou retração do Produto Interno Bruto, pode ser um bom ponto de chegada. Por outro lado, saber que a classe operária continua grande, ou melhor, ela está maior do que nunca; saber que as condições materiais que a colocam no centro da produção da vida na sociedade capitalista se mantêm; que ela permanece no ponto estratégico da luta contra a exploração do trabalho; e por fim, saber que uma nova identidade operária é necessária e possível, é o ponto de partida para as novas lutas.
Notas
[1] MARX, Karl. Trabalho Produtivo e Trabalho Improdutivo. In: ANTUNES, RICARDO. A Dialética do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
[2] KARL, M. ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
Acesse aqui os anexos das duas partes do artigo.
O João Bernado possui uma ótima tese sobre a questão: para ele, hoje, a classe trabalhadora existe apenas economicamente, como um elemento organizado pelas empresas, mas não existe politicamente, como um elemento auto-organizado. Para ele a classe trabalhadora só passa a existir politicamente quando se auto-organiza e se constitui como tal a partir de tuas lutas. Somente um novo ciclo de lutas poderá dar origem a classe trabalhadora, em termos políticos. Enfim, classe não é um conceito absoluto e a-histórico, existe uma classe quando há lutas que forjam uma classe…é dialético o processo: existir, desaparecer, existir novamente.
Se existência política, os trabalhadores são meros objetos da organização empresarial e estatal. Aparecem diluídos em milhões de eleitores, torcedores de times, expectadores de TV, fiéis de igreja, perfís de facebook, participantes de seminários marxistas na Unicamp, festas punks, raves…
Inexistentes politicamente, também dão azo a lutas gerais, interclassistas, onde se unem com membros ou futuros membros da classe exploradora a partir de temas como ecologia, feminismo, segurança, amor aos animais, defesa dos homossexuais, liberdade religiosa, de uso de estupefacientes, contra a corrupção, escoteiros, democracia em futebol…e segue.
Continuo com a crítica que fiz à primeira parte do artigo. Não está claro o que o autor entende por classe operária. Se no primeiro artigo transpareceu que o entendimento era de que a classe operária era o conjunto dos trabalhadores da indústria, agora transpareceu que classe operária é o conjunto dos “trabalhadores produtivos”.
Até porque só se justificaria o conteúdo da seção “Novo Operariado” pelo entendimento de que o operariado é o conjunto dos trabalhadores produtivos (os que produzem mais-valia).
A distinção entre os trabalhadores que produzem mais-valia e os que não produzem mais-valia é algo que fez o próprio Marx cair em contradições. É uma tentativa que até hoje foi fadada ao fracasso. Mas deixo para entrar nessas contradições em outro comentário caso seja necessário. A distinção entre produtivos e improdutivos sempre foi acima de tudo política, não econômica, como deixa transparecer este próprio artigo.
Nessa seção “Novo Operariado” não entendi por qual motivo se vislumbrou que alguns setores passaram a ser organizados de forma capitalista – e portanto seus empregados produzem assim mais-valia – deixando-se de fora, por exemplo, o comércio. Só para citar o exemplo mais óbvio dos shopping centers e suas lojas. O dito “comércio”, além de ser constituídos por empreendimentos capititalistas, há muito deixaram de ser meros revendedores de mercadorias produzidas em outro lugar. São prestadores de serviços e produtores de mercadorias eles mesmos, na forma de lazer, de ambiente, da própria marca, enfim, de uma série de mercadorias imateriais.
Outro ponto: não consigo imaginar expectativa de que um governo vá servir para constituir identidade de classe. Governar é governar um povo, uma nação, que por si já tende a ser uma negação das classes.
Não consigo extrair sentido da afirmação de que o PT protagonizou uma identidade de classe operária. Só vejo sentido lógico em protagonismo de identidade da classe pela própria classe.
Não acho que ‘classe média’ seja uma identidade, e historicamente tenha sido uma identidade. Embora pessoas possam se reconhecer como sendo classe média se perguntadas, trata-se de uma noção que historicamente tem sido mais frequentemente usada para apreender um conjunto de pessoas com certa cultura, comportamento e valores, relacionadas a sua posição no mercado. Não se trata de uma identidade em torno da qual pessoas se organizem e identifiquem seus interesses.
Willian,
Essa tese, antes de ser do João Bernardo, é do Thompson, um famoso historiador inglês. Thompson identifica em Marx um conceito de classe que considera tanto o lugar de determinadas parcelas populacionais na produção social da vida (ou seja, uma existência econômica) quanto a capacidade dessas parcelas se erguerem enquanto corpo organizado (ou seja, uma existência política).
O presente trabalho adere a essa definição de classe, ao enxergar as determinações econômicas da existência da classe operária, desmentindo a insistência de alguns de que a classe operária diminui. Por outro lado, constata que a identidade política que a mobiliza e a organiza não é uma identidade dela mesma mas uma identidade de classe média.
Sugiro que você leia o texto inteiro.
Leo Vinicius,
Acho que você entendeu bem o movimento do conceito de operariado que está texto. Num primeiro momento o texto considera que são os trabalhadores “chão de fábrica”, num segundo, reconhece, na esteira de Marx, os trabalhadores produtivos de capital como classe operaria. Eis aí o movimento do conceito de operariado nesse trabalho.
Sobre sua crítica, seria mais interessante se você apontasse sua discordância diretamente, afinal você achou o que está definido como operariado.
Quanto as controvérsias sobre trabalhadores produtivos e não produtivos. Acho apressado da sua parte falar de fracasso desse conceito, e ainda deslegitimar o debate, dizendo que pode comentar sobre isso em um próximo comentário se necessário. Não é óbvio suas afirmações sobre isso, muito menos sobre o conceito de trabalho imaterial. Sinceramente, insisto para você descer do salto e falar o que pensa sem essas arrogâncias que soam mais como autodefesa e fuga do tema debatido.
Vou explicar melhor como a distinção entre produtivos e não produtivos é econômica e não política. Um funcionário público, como um atendente do INSS, não produz mais-valia. Ele produz um serviço que é de fundo perdido, gerido por impostos, esse é um trabalhador não produtivo de capital; já um faxineiro dessa mesma repartição pública onde trabalha esse atendente, que foi contratado por um empresa terceirizada, produz mais-valia, gera prédios limpos, gera mais-valor. Na época em que esse faxineiro era contratado pelo governo não produzia, agora, quando passa a ser contratado por um empresa terceirizada ele produz. Acho que essa alteração é fundamental para a luta de classes.
Um exemplo mais claro é ver os contrastes das greves de diferentes setores. Quando os metalúrgicos da GM param um dia sua produção de automóveis, é mobilizada a sociedade toda. Imprensa imediatamente, ministros, prefeitos e etc… Todos vem para eles dizer: o capital não pode parar!
Agora, quando os professores das universidades federais entram em greve, ele podem ficar três meses ininterruptos que poucos se mobilizam. Afinal, não toca a produção de capital, são trabalhadores que vivem outro tempo social de produção. Trabalhadores não produtivos de capital. Apesar de serem muito produtivos do ponto de vista de humanidades…
Os trabalhadores do comércio são trabalhadores da circulação e não da produção de capital… Não produzem valor, apesar de estarem garantindo a mudança de forma de capital-mercadoria para capital-dinheiro.
Não estou fazendo aqui um distinção valorativa do ponto de vista moral. Pelo contrário é fundamental entender os diferentes lugares que os trabalhadores estão na produção da vida para conseguirmos pensar estratégias de transformação radical da sociedade. É a diferença de quem está numa posição e de quem está em outra posição. Não ver isso é tratar como iguais os diferentes.
No mais, sugiro que veja esse debate sobre a classe média: http://emdefesadaeducacao.wordpress.com/
Acho que será mais eficaz do que minhas tentativas.
Abraços
Daniel,
A propósito desta sua última consideração, do jeito que você apresenta, fica para mim uma incoerência quanto ao critério adotado para definir os trabalhadores produtivos. Logo no início desta parte do texto, você aponta – corretamente, a meu ver – que trabalhadores produtivos são aqueles que produzem mais-valia. Pois bem, logo em seguida, e reforçado por este último comentário, você identifica a distinção entre trabalhadores do setor privado e trabalhadores do “setor público” à distinção entre trabalhadores produtivos e improdutivos, respectivamente. Assim, fica parecendo que, pelo simples fato de atuar numa empresa estatal, o trabalhador deixa de produzir mais-valia.
Entretanto, como você mesmo chega a indicar, produzir mais-valia diz mais respeito às formas e às condições de trabalho do que ao setor da economia em que se atua ou à qualidade tangível dos bens ou serviços produzidos. E se concordares neste aspecto com o que digo, terá, por consequência, de admitir que também nas empresas estatais trabalha-se sob condições de extração de mais-valia.
Caso contrário, chegamos a conclusão de que basta estatizar as empresas hoje privadas para que cessemos a extração de mais-valia e, consequentemente, a produção de capital. Quanto a isso, lembro que as experiências “reais” de socialismo evidenciaram ser esta uma tese furada, uma vez que tivemos ali a demonstração de que o capitalismo pode se desenvolver sob vias jurídico-formais não privadas e manterem intacto o cerne das relações de produção capitalistas.
Afora esta crítica, e talvez mais uma ou outra secundária, acho que o artigo contribui com o debate na medida em apresenta dados empíricos importantes, ainda que retire daí interpretações e estratégias de luta das quais eu discordo.
ABÇ
Daniel,
Se estivesse deslegitimando o debate não diria que deixaria algo para comentar depois, caso entrassem nessa discussão sobre quem produz ou não produz mais-valia.
Bem, a questão daí começa pelo que se entende por comércio. Funcionário do Mc Donald’s é produtivo, certo? Embora trabalhe no que se costuma chamar de comércio. Um Mc Donald’s não deixa de ser uma fábrica de alimentos em pequena escala que comercializa seu produto direto ao consumidor. Um Mc Donald’s possui inclusive linha de produção. Os funcionários na cozinha seguem o ritmo pré-determinado pelas máquinas. Mesmo se não houvesse rodízio de funções, imagino que o caixa que recebe o dinheiro da compra seria considerado tão produtivo quanto aquele que está na linha de produção na cozinha, assim como o que faz a limpeza. Se isso vale para o Mc Donald’s, que produz e vende seu produto, por que não valeria para o comércio em geral? Só porque o CNPJ da empresa que produz é diferente do CNPJ da empresa que vende o produto os que estão no caixa passam a ser improdutivos?
Além do que, como já tentei apontar em comentário anterior, o que se denomina por comércio hoje em dia é produção. E para muitas empresas o ponto mais importante da produção, ponto alto do ciclo de produção de valor.
Se o ponto de vista a ser tomado é o dos capitalistas, faz bem ler livros de administração, marketing etc. Hoje em dia não são poucos os empreendimentos capitalistas em que os capitalistas vêem o valor do empreendimento acima de tudo na criação de relacionamento, por exemplo
Marquinho,
O texto está mais preciso mesmo. Talvez tenha me expressado mal no comentário. A distinção público privado não corresponde diretamente a distinção produtivo e não produtivo. Os trabalhadores da Petrobrás são tão produtivos quanto os da Wolks. Nesse sentido, concordo contigo que os trabalhadores das indústrias soviéticas produziam mais-valia absorvida pelo Estado. Contudo, essa discussão passa por uma consideração sobre transição que, apesar de todo fracasso, dá pano pra manga.
Leo,
Os trabalhadores do MacDonald, assim como os trabalhadores do Subway e etc. não são contabilizados como trabalhadores do comércio, mas como trabalhadores da indústria de alimentação e bebidas. Não à toa essa última é a que mais emprega do setor da indústria de transformação. Não obstante, concordo contigo que muitos trabalhadores que são considerados como do comércio podem estar mal classificados. Essa é a discussão que é feita no texto em relação aos trabalhadores dos serviços, pois muitos passaram para o setor produtivo de capital. Nesse sentido, estamos concordando no movimento que o capital faz, qual seja, aumentar a quantidade de trabalhadores que estão submetidos a extração de mais-valia. Estejam eles no chão de uma fábrica ou não.
Abraços
Os dois textos são muito bons. Eu tenho mais elogios do que críticas, mas o elogio o texto faz por si só na sua qualidade, mas as críticas precisam ser ditas.
O tempo todo o texto trata a classe operária (primeiro de “trabalhador fabril”, depois o mais amplo “trabalhador produtivo para o capital”) como uma figura inerte, ideologicamente dominada, dócil, burra. A classe trabalhadora tem plena consciência da sua condição de subordinação, a crítica marxista pode até explicar melhor como ela é explorada, mas a parte de estar na parte de baixo da pirâmide social não é uma novidade. O mote inicial do texto todo é que ele quer desmistificar o crescimento da “classe média”. A questão é que ninguém tá falando em crescimento da classe B e A, mas sim da classe C, um C bem grande de TERCEIRO LUGAR.
O que está acontecendo é a integração de um país subdesenvolvido no capitalismo, da pobreza as pessoas estão ascendendo para o consumo de baixo custo, que é o que tem sido comemorado. Ninguém diz que a Classe C vive num paraíso. Tem muito PTista que se ilude até hoje achando que o Lula tá tirando o país do capitalismo, mas o que ele tá fazendo é o contrário, tá colocando o país no capitalismo sem o trauma todo que o séc. XIX causou na Europa, que é o que o trabalhismo sempre fez.
E se formos pegar o Marx ao pé da letra (algo que Lenin e principalmente Mao não fizeram) agora nós temos a situação ideal para a revolução, quando temos proletariados e não lumpenproletariados. O problema é que a revolução não vem. O proletariado não assume seu protagonismo político e não vejo que há uma conspiração global para evitar isso, acho que o proletariado está interessado em lutar por outras coisas (Thompson me convenceu disso, estou esperando alguém convencer do contrário). Uma delas se chama leis trabalhistas (algo que me faria sair pra rua caso fosse colocada em risco no Brasil), outra direito ao consumo (algo que os socialistas insistem em negar ao trabalhador, achando que quando mais eles sofrerem, mais rápido vem a revolução), direito a educação, lazer e cultura, etc. E tudo isso o Estado tem, mal e porcamente, tentado oferecer. Por isso vivemos num welfare state que o PT importou da Europa. No Brasil isto caiu como uma luva, devido ao histórico provincialismo dependente do Estado central (e não dos pequenos Estados locais).
Então a conclusão do texto é meio frustrante, porque não só ignora que a classe operária tem sim uma cabeça própria, seus próprios anseios e desejos, como não diz qual seria a identidade política que a classe deveria assumir. Se o texto dissesse a mesma ladainha do Manifesto Comunista seria mais frustrante ainda, então o silêncio é até positivo. Se a solução for apostar num Estado gigante e controlador que governe em nome da classe operária e que tenta (com sucessos e insucessos) satisfazer seus anseios, merece ouvir um pouco os conselhos de Bakunin e Orwell.
A social-democracia avacalhada de FHC-Lula já tenta (mal e porcamente, com sucessos e insucessos) satisfazer necessidades e desejos da classe operária, e sem todo o derramamento de sangue que a revolução sempre acaba provocando.
Agora, uma resposta positiva envolveria coisas como ler Castoriadis e discutir um pouco cooperativismo (que é um pepino gigante, e deixo para outra hora). Valeu, e parabéns pelo texto.
O texto é muito bom, principalmente pelos dados apresentados. E a questão discutida nos comentários sobre trab. produtivo e improdutivo é realmente polêmica. Inspirado no vol 3 de O Capital, estou quase certo de que o foco em empresas individuais é equivocado (isso me parece muito claro quando por ex. o texto diferencia o trabalho de limpeza antes e depois de ser terceirizado como critério para dizer se é produtivo ou improdutivo) do ponto de vista da acumulação do capital como processo global na sociedade. Do ponto de vista do capital global como “circuito fechado” (aqui deixo de lado a hipótese de R. Luxemburgo de o capital só funcionar pela “troca” com sociedades exteriores pré-capitalitas), a mais-valia só pode ser realizada em última instância mediante a venda de bens de produção, e não bens de consumo. Por que? Porque se a mais-valia global fosse realizada vendendo bens de consumo, isso significaria que o salário global dos trabalhadores (e a renda para o consumo pessoal dos capitalistas) realizaria a mais-valia, o que significa que, globalmente, não existiria mais-valia (ou senão que ela seria usada improdutivamente no consumo luxuoso dos capitalistas, o que também seria absurdo, pois inviabilizaria a acumulação do capital). Então, do ponto de vista global, os trabalhadores que produzem meios de produção (softwares, alicates, instrumentos, robôs, petróleo, energia ou até matérias primas…) são os únicos realmente produtivos (de capital) e ocupam o ponto realmente nevralgico da acumulação mundial do capital. Isto significa também que a realização global da mais-valia só pode ocorrer de fato no circuito “tautológico” de transações de meios de produção de meios de produção de meios de produção… numa acumulação interminável de “trabalho morto” completamente alheio aos desejos e necessidades humanas. A aparente mais-valia das empresas que vendem bens de consumo na realidade é apenas um “respingo” daquele circuito “tautológico”.
Uma idéia que acho interessante talvez seria deixar de lado a idéia de mapear na sociedade o trabalho produtivo (de capital) e, ao invés, mapear a sociedade capitalista do ponto de vista da produção que faz sentido (ou que potencialmente faz sentido) para os seres humanos, pensando na hipótese de os proletários neste exato momento terem suprimido a propriedade privada e as fronteiras nacionais (assim como abolido o Estado, obviamente) e se deparando com a tarefa urgente de decidir o que fazer para estabelecer, manter e desenvolver a associação livre sem fronteiras dos indivíduos para os quais a produção só pode ser expressão e realização dos desejos e necessidades humanas livres, e não mais volte a ser algo “alheio” (salário, trabalho, propriedade privada, capital).
Pensando nisso, eu andei namorando isto: http://atlas.media.mit.edu/
Dois textos sobre composição de classe:
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/a-logistica-e-fabrica-mundial.html
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/teste-de-realidade-estamos-vivendo-em.html
E este é sobre o (des)funcionamento do “capitalismo imaterial”:
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/a-escassez-artificial-em-um-mundo-de.html