Por Débora

Este texto foi originariamente colocado como comentário, mas a sua importância política é tão grande que o Passa Palavra decidiu convertê-lo em artigo. Esperamos assim estimular o debate sobre questões técnicas da luta social.

As quebradas [bairros populares nas periferias] são todas iguais em precariedade e para surgir uma luta são necessárias várias condições prévias.

1. Primeiro, não basta ser estrangeiro e chegar agitando na quebrada. Mesmo com a participação de gente de fora é sempre necessário que pessoas de dentro assumam as coisas.

2. Não são quaisquer pessoas que estão em condições de chamar os outros para a luta. As lutas são sempre iniciadas por pessoas que possuem uma boa carreira moral na quebrada – nos termos de Goffman -, precisam ter moral junto aos demais, respeito (viciados, vagabundos, putas e golpistas estão previamente excluídos). Sem oferecer nenhum centavo para que outros lutem, as lideranças arriscam, na verdade, as suas carreiras morais. Imaginem que morra uma criança ou ocorram outras coisas. Quem chamou o ato será cobrado [responsabilizado] nesse sentido.

3. Nenhuma liderança consegue fazer nada se não houver um clima mínimo de identidade, união e paz entre os moradores. São essa identidade e boa convivência prévia que são catalizadas. Ora, quem, num exemplo, sentir vergonha de morar num CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, habitação social] menos ainda vai querer se expor numa luta deste mesmo CDHU. E se as vizinhas andarem com facas a pegar umas às outras, quem as tirará para a rua juntas? Estar junto no ônibus, escola, quermesse, trem, bar, salão de beleza, igreja permite construir essa confiança mútua.

4. As lutas são ligadas a necessidades passíveis de serem supridas. Trabalhador pobre não costuma sair para a rua para salvar as onças cor de rosa ou protestar contra a invasão de um país pelos E.U.A. Querem uma escola, uma duplicação, um desconto na passagem.

5. Diferentemente do que ocorre nas lutas sem base social certa ou com base temporária – caso dos estudantes -, os populares não aceitam golpe de pauta [golpes na ordem de trabalhos] (feministas adoram dar golpe de pauta, por isso fogem das quebradas). Ou seja, se o Pedrinho resolver cobrar o Marquinho que não lhe paga ou se a Cecília resolver acertar contas conjugais no meio do ato serão devidamente informados pelos populares que aquela luta não foi organizada para tal.

6. Quem já apanhou na vida não gosta muito de ficar brincando com a questão. Assim, certas provocações bobas comuns em atos de estudantes protegidos são descartadas. Também não gostam de ficar falando em greve de fome, porque conhecem a falta de alimentos de perto ou de memória próxima.

7. As lideranças ou os mais bem instruídos são ouvidos, mas precisam ter humildade para lidar com a falta de conhecimentos gerais. Nenhum trabalhador gosta de sair para atos e reuniões onde seja exposto sem delicadeza à sua ignorância.

8. O respeito com os valores populares precisa ser grande. Não há espaço para militância ateísta nem hedonismo puro e simples.

9. Nesse tipo de luta ocorre muito de as lideranças terem que arcar com os gastos – panfletos, cartazes e outros. O militante literalmente acaba tirando dinheiro do bolso. Dinheiro é sempre um tema polêmico e se os gastos não atingirem uma soma muito alta preferem bancar [pagar] sem que se recolha alguma coisa dos moradores.

10. Não bastam os cartazes, é preciso um corpo a corpo, andar muito, falar pessoalmente com as pessoas, se expor para que elas participem. Militância de Facebook não dá conta.

11. Naturalmente, com a luta surgem os riscos, as pressões, as ameaças. Por outro lado, surgem as tentativas de cooptação. Assim como times possuem olheiros [informadores] nos campeonatos de base, políticos e organizações buscam captar militantes dentre as lideranças populares que vão surgindo.

12. Quando as coisas esquentam, é comum que muitos corram, desapareçam, deixem de participar. Nesse caso, as lideranças vão ficando mais sozinhas ante as ameaças e surgem os convites para ingressarem em dadas organizações – que lhes oferecem advogados, apoio, outros. Boa parte dos lutadores populares que conheci ou desistiram com medo das ameaças ou se juntaram a grupos para ter algum respaldo. E assim segue a roda de surgimento, cooptação ou desaparecimento de lutadores populares.

As gravuras que ilustram o artigo são do anatomista holandês Frederik Ruysch (1638-1731)

62 COMENTÁRIOS

  1. bem-vinda a ´´tradução´´ de mundos… tomara que seja o começo de um processo para os leitores desse site… pra que mais adiante, não precise mais de tradução! parabéns

  2. O Passa Palavra é, desde o primeiro dia, um site luso-brasileiro. Ora, apesar de o imperialismo brasileiro, através das telenovelas, ter levado a cultura brasileira a todos os continentes e de ter transformado o vocabulário corrente em Portugal, pauta ainda significa em Portugal exclusivamente papel de música e é necessário explicar aos leitores daquele país que se trata de ordem de trabalhos, o termo equivalente no uso lusitano. O mesmo sucede com várias outras palavras. De igual modo modo colocamos colchetes para os leitores brasileiros nos artigos escritos em português de Portugal. Estranhamos que esta preocupação de internacionalismo pareça estranha.

  3. companheiros, a ideia de ´´tradução´´ não era literal… era a tradução de mundo de quem luta, pra quem ´´o olha´´, me explico? apesar de que o ´´deslize´´ do esclarecimento seja bastante interessante. Não defendo ´´imperialismos´´ de nenhum tipo, mas pensando a relação Brasil-América Hispanica, a América Hispanica na maioria das vezes utiliza a ´´real academia espanhola de letras´´ como referencia ´´internacionalizada´´. A relação Brasil-Portugal aparentemente é invertida, apesar de exister a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Então, convido a observar a diferença entre o ´´ (sub)imperialismo´´ brasileiro com o ´´imperialismo-neocolonial´´ da Espanha. Por esta razão, a resposta brasileira a Portugal seria bastante contra-hegemonica vista desde da ótica hispanica… mas tal leitura tb é bastante polemica…

  4. Tradução2,
    Só quem desconhece a história pode falar de contra-hegemonia brasileira. Há muito tempo Portugal já não existe. Contra-hegemonia contra o quê? Recomendo a leitura deste texto: http://passapalavra.info/?p=33125
    Outra coisa, por que diabos o imperialismo brasileiro é sub e o espanhol é neocolonial? Não entendo essas classificações. Elas parecem servir mais para ocultar aquilo que deveria ser escancarado todo o tempo.

  5. Afora as questões semânticas, achei o texto extremamente lúcido e pertinente, aponta uma agenda de postura e reflexão frente às lutas sociais que muitos estudantes universitários e ONGs deveriam ler atentamente antes de se aventurarem em levar a salvação para as periferias.

  6. Pessoal, não tem qualquer motivo para atritos com relação à tradução. Sou brasileiro e confesso que também não entendi a expressão ‘golpes de pauta’

  7. “viciados, vagabundos, putas e golpistas estão previamente excluídos”

  8. Este texto — e aqui reside muito do seu interesse — não se baseia em predilecções subjectivas mas em constatações de facto. Por isso, seria interessante perguntar por que motivo aquela vastíssima camada da classe trabalhadora exclui de antemão «viciados, vagabundos, putas e golpistas». E não só nas quebradas do Brasil mas, pela minha experiência, noutros lugares distantes e mesmo noutras épocas igualmente distantes. Já agora, seria interessante também perguntar por que motivo tantos estudantes de esquerda — das universidades públicas, não das privadas — mitificam e romantizam «viciados, vagabundos, putas e golpistas».

  9. queria saber qual o debate sobre questões técnicas da luta social vcs pretendem estimular com esse texto. o que mais do que uma lista de coisas óbvias ele traz?

  10. Eu própria sou a favor da descriminalização das drogas, mas entre os populares a coisa é mal vista e, nas lutas sociais, viciados são excluídos porque não são poucos os casos em que causam problemas. Muitas vezes adeptos de um individualismo exacerbado colocam em risco o coletivo, trazem atritos desnecessários.

    No geral, me parece que viciados, vagabundos, putas e egoístas são vistos com desconfiança porque eles previamente não se veem como iguais aos populares, se sentem melhores, diferentes, mais livres, isso e aquilo, mais corajosos e, nisso tudo, menos propensos a trabalharem e dividirem tarefas e responsabilidades como os demais. Os trabalhadores já são explorados pelos patrões, não gostam de ter que carregar outros mais nas costas, gente de vida fácil.

    Nas universidades públicas a mitificação dos viciados, das putas, vagabundos e golpistas surge num contexto em que trabalhadores em formação procuram retardar ao máximo a própria proletarização e não pretendem se ver como proletários. Por outro lado, a vida nesse meio permite não só se vender como não proletário mas ainda conviver com outros viciados, vagabundos, putas e golpistas que vêem de meios econômicos mais abastados, o que mais reforça o auto-engano. Depois de alguns anos a realidade cai para cada um.

    Finalmente, as quebradas possuem as suas regras. Não é sem razão que não tem marcha das vadias em Osasco, Capão Redondo, Grajaú. Quem já vive no extremo não pode se dar ao luxo de brincar com certas coisas. Quem corre o risco de ser chamada de vadia pela ROTA ou pelos patrões não vai sair por ai se autointitulando tal. Isso é coisa de garotas brancas de classe média super protegidas. E, claro, novamente, tem lá umas proletárias junto com elas, tentando esconder sua condição de proletárias.

  11. existe a ideia de ´´lumpen proletario´´, mas o problema é definir isso e quando se fala em “viciados, vagabundos, putas e golpistas estão previamente excluídos” talvez realmente caia em ´´moralismos´´, apesar de que com o comentário da debora agora a gente observa que nao era essa a intenção, apesar de alguns ´´generalismos´´. Convido a pensar em ´´trabalhadora sexual´´ porque nem todas as ´´putas/prostituras´´ são lumpem. eu não sei vcs, mas já vi vários anarquistas lumpen também, assim que a ´´categoria´´ é ampla…

  12. Caros,

    É impressionante a capacidade que algumas pessoas têm de confundir uma constatação, uma verificação do que acontece no mundo real, com o como se acha que devem ser as coisas. A velha distinção entre SER e DEVER SER. Mas talvez não seja confusão e sim uma demonstração cabal do que é o tal “golpe de pauta” – e fica aqui sanada a dúvida de Márcio.

    Abraços,
    Taiguara

  13. Segundo Débora, “o respeito com os valores populares precisa ser grande. Não há espaço para militância ateísta nem hedonismo puro e simples”. Coloco então uma questão: como podemos fazer frente à ação dos líderes religiosos que mobilizam os populares para que eles defendam um programa conservador? Refiro-me, lógico, à ação das Igrejas neo-pentecostais, e outras, que fazem bastante sucesso entre os populares e que são a mais perfeita manifestação dos conservadorismos de toda ordem. Tais lideranças até se mobilizam junto com os populares, para conseguir a construção de “uma escola, uma duplicação, um desconto na passagem”. Mas o que ocorre é que tais lideranças participam das lutas sociais também para conquistar o voto dos populares nas eleições, para garantir que os populares continuem a financiar com o dízimo de todo mês a sua opulência etc. Como combater esse tipo de gente, se se deve ter um respeito tão grande pelos “valores populares”? Porque, se existe alguma coisa que possamos chamar de “valores populares”, não é mais do que uma composição incoerente de ideologias contraditórias e mesmo antagônicas: afinal, os trabalhadores aderem também às perspectivas ideológicas das classes dominantes, tanto da burguesia quanto da tecnocracia. Se não fosse assim não haveria o consenso ideológico necessário para uma fundamentação segura do poder de classe da burguesia e dos gestores. A religião só serve para sacralizar práticas sociais de opressão, exploração e violência, dizendo que tudo o que ocorre é pela vontade de Deus, que cabe a ele punir os malfeitores na outra vida e nós devemos viver resignadamente esperando pela justiça divina, viver resignadamente e continuar a pagar o dízimo para dar continuidade à “obra do senhor” etc., etc., etc. Então… estamos diante de um dilema (e que dilema!): não podemos criticar a religião porque a religião é bem vista pelos populares; mas não criticar a religião é permitir que os líderes religiosos continuem a sacralizar práticas sociais de opressão, exploração, violência etc. No mais, o texto é cheio de colocações bastante pertinentes.

  14. Fagner,

    Eu não conheço casos concretos de enfrentamento com evangélicos, então não sei o que dizer. A questão do respeito que quis dizer é não mexer com religião, de forma que seja possível a participação de católicos, evangélicos e outros.

    É bom lembrar que o povo não é aquilo que a cabeça do esquerdista imagina ou queira que seja. Uma população que não tem dinheiro para pagar psicanalista, análise, faz uso intensivo das igrejas, onde ainda tem também um tanto de música, confraternizações, amizades, namoros, informações sobre empregos…O que precisa ficar claro é que a militância na universidade é uma festa, nas periferias não é. Por isso todo mundo quer militar na universidade, no máximo nos sindicatos e ninguém quer ir para as quebradas.

  15. Companheira Débora, entendo isso que comenta. Inclusive quem é que quer morar na periferia? Muita gente que milita quer morar bem longe da pobreza, enfim, essa galera tem que recuperar um projeto popular de vida. Também é o fato de ninguém querer fazer trabalho de base e fica só no trabalho político. Mas pra mim o mais duro as vezes é que o próprio povo, protagonista da luta e não simples esquerdistas, não se mobiliza. Se compararmos com o panorama do século XX, estamos pior, muito pior. Os tais 99% contra os 1%. Enfim, penso que ninguém ´´salva´´ ninguém e vai chegar o tempo em que os que militam vão ser meio ´´guetto´´. Enquanto isso, nós seguimos lutando! Um abraço

  16. Na verdade, eu me referia mais à influência ideológica de grupos conservadores sobre os populares, do que ao enfrentamento propriamente dito destes populares com grupos conservadores religiosos. Mas a reflexão é interessante, porque o fundamentalismo islâmico, por exemplo, tem muita semelhança com o fascismo, que, segundo João Bernardo, “não se limita a ser um regime repressivo. O fascismo é muito mais do que isso, e muito pior. É uma mobilização de amplos sectores populares, sob a forma de milícias, para prosseguir uma reorganização autoritária do Estado” (citado do texto indicado noutro comentário, acima, por Astolfo Jr.). Li, numa entrevista de João Bernardo, o seguinte: “sem dúvida, para mim, os fundamentalismos religiosos, tanto islâmicos quanto cristãos, cumprem hoje um papel que o fascismo cumpriu na sua época; eu não digo que eles são fascistas, digo que cumprem um papel equivalente, e é esta a sua periculosidade, mobilizam massas pobres, por vezes muito pobres, em nome de uma revolta, concebida como uma ascensão social, mas ao mesmo tempo extremamente conservadora, não só pelos valores que tem, como por uma agregação supra-classista […] (Antítese – Marxismo e Cultura Socialista, n. 2, 2006, p. 146)”. Eu não acho que a coisa chega ao nível do enfrentamento, com evangélicos e outros fundamentalistas, organizados em milícias, espancado lutadores populares. Mas algo que me impressiona muito é a ênfase de alguns desses líderes religiosos na tentativa de desmobilizar política e socialmente os membros de suas comunidades, afastando-os, digamos assim, da rua, e canalizando suas energias para o interior das Igrejas etc. Isto é, esses líderes não dão um direcionamento conservador à massa ativa, mas concorrem para que essa massa seja passiva política e socialmente, algo que já vi com meus próprios olhos: pastores evangélicos pregando contra a greve, contra as manifestações de rua e a favor do fervor religioso do fiel no interior da Igreja, onde este fiel pode descarregar tudo o que está reprimido num êxtase impressionante. Então, penso mais nos líderes religiosos passivizando os movimentos sociais e impedindo o prosseguimento da luta. Para que haja enfrentamento é preciso haver o mínimo de mobilização, mas a função desses líderes comunitários é impedir o próprio nascimento da mobilização. Não sei se me expliquei bem, mas é isso que penso. Grato pelas novas considerações, Débora.

  17. Certa vez vivi uma situação interessante. Estávamos em greve e uma das colegas de trabalho ficou na dúvida se deveria participar ou não junto com os outros. Então ela foi à igreja, no caso uma dessas neo-pentecostais, e perguntou ao pastor o que deveria fazer. Para a minha surpresa o pastor recomendou que ela participasse da greve desde que acontecessem atividades. O que não poderia era ficar no ócio! Como as atividades da tal greve não aconteciam, certo momento ela resolveu voltar ao trabalho antes de aprovado o fim da greve pelo conjunto dos trabalhadores.

    Nesta mesma greve, durante toda a semana do seu início, houve um ato católico no setor que mobilizou mais de 50 trabalhadores, que a colega evangélica não participou obviamente, mas em nenhum momento foi tocado no assunto “greve”. Pôde-se fazer uma manifestação religiosa católica numa repartição pública de um Estado laico, mas não havia espaço para misturar política e religião nas conversas. E assim eu poderia passar o dia relembrando causos de entrelaçamento, assimilação ou rejeição entre política e religião. Fico com mais um apenas, que foi quando uma senhora de uma ocupação de sem-teto me confessou ir à igreja porque lá ela cantava, conhecia novas pessoas e tinha gente pra cuidar dos seus filhos enquanto ela confraternizava. E isto era melhor do que ficar em casa.

    Relembradas estas situações, me atrevo a chegar a duas conclusões:

    A primeira é que a igreja é apenas mais uma forma de organização social que entre outras tantas concorre com organizações políticas – se já não bastasse a concorrência entre elas! – pela direção da energia que sobra para ser gasta fora do mundo do trabalho. Não há mais “A Igreja”. O que há são pequenas células que se compreendem os desejos dos trabalhadores daquele determinado espaço e de alguma forma dão respostas às suas necessidades conseguem a sua atenção. Se não conseguem, minguam. A gente costuma pensar que somente nós “de esquerda” fracassamos, mas já cansei de ver igreja neo-pentecostal fechar as portas porque não conseguia adeptos. E no ano seguinte na mesma região outra igreja aparece e “bomba” de gente. Portanto as igrejas são muitas, e não me espantaria se um dia surgisse uma que incorporasse de forma explícita na sua pregação os símbolos da luta de classes, como certa altura foi uma fração da igreja católica através da teologia da libertação. Aliás, o movimento inverso, de grupos de esquerda incorporando os símbolos, técnicas e tudo mais das religiões é o que não me falta exemplos, chegando-se ao ápice nas místicas. Por outro lado, há associações de bairros tão conservadores quanto igrejas, grupos de jovens também, e por aí seguiríamos numa extensa lista até chegarmos ao tráfico de drogas. Sim, estas organizações são conservadores na grande maioria dos casos e cumprem mesmo a função de organizar os trabalhadores para atuarem dentro da ordem. Não estou aqui para negar isto. E muitas delas usam da violência, inclusive as igrejas. Mas eu me preocuparia mais com as nossas próprias organizações que teriam por obrigação fazer diferente e não fazem.

    A segunda é que a esquerda, em geral esta mesma que Débora aponta e que é formada dentro das universidades, mistifica os trabalhadores como se eles fossem por essência revolucionários. Eu já cansei de ouvir esta frase saindo da boca de universitários. E eu não sei como conseguem afirmar isto quando os únicos trabalhadores que mantêm contatos são as empregadas domésticas dos seus apartamentos e os professores das universidades, quando estes últimos ainda são trabalhadores! Os trabalhadores são aquilo que são, e são muitas coisas, e cada um consegue expressar muitas práticas às vezes contraditórias entre si, seja no mesmo espaço, seja durante a sua vida. A única coisa que os fazem ser uma coisa só é o fato de serem explorados. Então se os trabalhadores não têm essência, e são sujeitos com história, acredito que não nos cabe apresentar um discurso mais poderoso e convincente do que o das igrejas, muito menos tacar fogo nelas. O que nos cabe é ter a sensibilidade de identificar práticas que rompem com esta lógica da fragmentação e que coloca os trabalhadores a atuar dentro da ordem, e incentivá-las. Participar destas práticas junto com eles. Nos reconhecer também enquanto trabalhadores, que é o que mais nos falta hoje em dia, ao invés de nos colocarmos enquanto faróis. E por último, levar essas práticas para os nossos locais de trabalho ao invés de querermos lutar a luta dos outros.

    O que adianta acabar com o que organiza hoje os trabalhadores se não somos capazes de fazer nada diferente?

  18. Não tenho dúvidas de que as religiões em geral tendem a promover ou apoiar determinadas ações que são do interesse imediato do proletariado. Mas o que ocorre é que, muitas vezes, ao defender ou promover ações que são do interesse imediato do proletariado, muitos grupos religiosos acabam também buscando (e conquistando) a adesão do proletariado para a defesa e o apoio de outras ações que são contraditórias em relação a estes interesses imediatos e em relação aos seus interesses de longo prazo. É claro que alguns grupos de esquerda também o fazem. De fato, não estou dizendo que devemos iniciar uma campanha antirreligiosa. Estou dizendo que acho que o surgimento de atritos, dos lutadores sociais com grupos religiosos conservadores, é inevitável. Isto porque existem grandes grupos religiosos conservadores – que na verdade são grandes empresas, algumas transnacionais – que buscam desmobilizar o proletariado na rua e no local de trabalho, para mobilizá-lo exclusivamente no interior das igrejas e templos. O que estou dizendo é que o confronto com estes grupos é inevitável. Existem, por outro lado, obviamente, outros grupos religiosos que desempenham um papel positivo nas lutas sociais, e não me coloco contra eles. Existem casos e casos.

  19. Me parece que o problema central em relação ao neopentecostalismo com a esquerda brasileira vem da formação desta. De uma maneira geral, mesmo os ateístas, são formados pela forte tradição católica presente no Brasil, por isto temem a ascensão das igrejas protestantes; afinal são os hereges.

  20. Agora… (a que cúmulo chegaram!) sou católico e tenho medo da ascensão dos hereges protestantes! Realmente as discussões neste site chegam a momentos imprevisíveis, pois os seus comentadores parecem não conseguir ler o que os seus interlocutores escrevem. A esquerda brasileira é católica e, por sua formação, não consegue aceitar o neopentecostalismo… Pergunto-lhe, Gabriel, em que mundo você vive, ou pelo menos em que cidade? Bem, digo-vos que, na cidade que habito, os grandes líderes evangélicos são integrados aos grupos conservadores e direitistas que disputam o poder à esquerda capitalista ascendente. Não digo que os católicos são diferentes, pois os membros das hierarquias superiores da Igreja Católica também se integram aos mesmos grupos. De modo que os líderes religiosos em geral estão integrados aos elementos mais conservadores da sociedade local, aos elementos que querem ver os movimentos sociais desmobilizados. Aliás, os líderes evangélicos e católicos transformam seus fiéis em eleitores de seus candidatos, quando não são eles mesmos os candidatos: pastores, líderes da renovação carismática etc. Nenhum destes senhores se interessa pelas lutas sociais, a menos que se tenha uma visão tão míope sobre elas: podem até apoiar as lutas por pavimentação de ruas, instalação de saneamento básico etc, como fazem… Mas boa parte dessas “benfeitorias” fazem parte das condições gerais de produção, cujo objetivo é criar condições para a exploração do proletariado pelas unidades particulares de produção. O proletariado se reúne nos cultos para confraternizar? Claro, mas o que importa é a sua reunião para a criação de relações sociais novas, igualitárias, democráticas etc. Relações sociais capazes de dar fundamento a um nova organização social e não de dar novo fôlego à organização social vigente, integrando, de uma forma ou de outra, novos contingentes de força de trabalho no sistema produtivo. Se vemos com tanta estreiteza as lutas sociais, nada nos diferencia da esquerda ou da direita, capitalistas, no poder: sua proposta é a mesma – integrar novos contingentes de força de trabalho no sistema produtivo.

  21. Excelente Texto. Principalmente pela possibilidade de, por seu intermédio, identificar as ambiguidades (e identificando-as, quem sabe, saber operar com elas) que uma militância que pretenda fincar ráizes em áreas proletarizadas, terá de enfrentar.
    1) O código moral dos habitantes das “quebradas” expressa por um lado valores próprios do meio especifico em que vivem, por outro expressa valores assimilados pelos exploradores e pelos formadores de opinião (estes últimos em geral oriundos de camadas médias). E se existe algo que os proletários sabem muito bem identificar são aqueles que o exploram para além do capitalista (o que não significa que deles consigam se livrar).
    O dono da padaria ganha em cima do proletario, a partir de sua necessidade alimentar, do mesmo jeito que o cafetão – ou a prostituta autonoma – a partir de sua necessidade sexual.
    2) Os golpistas de origem proletária enxergam os proletários como a fonte possível de seus golpes, já que aplicar golpes em capitalistas, mesmo quando possível, é mais arriscado.
    3) O vício altera o caráter, pois o que orienta o viciado, em última instância, é a busca pelo objeto do qual é dependente. Os proletários sabem muito bem das consequencias de se assentar uma luta sobre viciados.
    4) A religião oferece confortos multiplos e resignação diante das mazelas da vida, coisa que os proletários necessitam objetivamente para se fortalecerem subjetivamente diante da continuidade da exploração. Os proletários sabem muito bem da inexistencia de uma rede de solidariedades ateístas que pudesse substituir à das igrejas.
    5) a ambiguidade do conceito de lumpenproletariado permite a alguns interpretá-lo de modo a “endeusar” seus integrantes, mas o proletariado sabe distinguir muito quem são seus irmãos de classe em situação de vulnerabilidade da “escória da sociedade” que serviu na história de base de massas para os fascismos por exemplo.
    Paro aqui.
    Haveria muito mais a expor sobre tão rico tema que o texto levantou, mas certas reflexões devemos fazê-las em processo e entremeadas com práticas. De preferência nas “quebradas”.

  22. “A religião oferece confortos multiplos e resignação diante das mazelas da vida, coisa que os proletários necessitam objetivamente para se fortalecerem subjetivamente diante da continuidade da exploração. Os proletários sabem muito bem da inexistencia de uma rede de solidariedades ateístas que pudesse substituir à das igrejas”.

    Há dois problemas fundamentais nesta argumentação: 1) se os proletários precisam recorrer a divindades para se fortalecerem, “apesar” (o que transparece na referida argumentação) da exploração que sofrem, isso significa que, de fato, eles estão a se enfraquecer, pois a religião não é uma forma de eles de fortalecerem “contra” a exploração que sofrem; 2) se se reconhece como dada uma condição na qual inexiste uma rede de solidariedade ateísta, o que se reconhece é a impossibilidade de se formarem laços de solidariedade não mediados pela religião: bem, isso, de um lado, contradiz frontalmente toda a trajetória histórica da luta da classe operária… e mais, toma como um fato inegociável que somente formas “religiosas” de solidariedade podem ser estabelecidas entre os proletários: assim, a transformação dos partidos e movimentos de esquerda em seitas religiosas é totalmente justificável, pois o proletário não conceberia sua luta fora de um âmbito “religioso” ou “dogmático” e “mistificador” e “mitificador”. Se o proletário não concebe a si mesmo, enquanto parte de um todo, de uma coletividade, como “o” criador, mas transfere a criatividade de seu trabalho, enquanto parcela do trabalho coletivo de sua classe, para uma entidade criadora suprema e supra terrena, então é impossível que ele queira recobrar, por completo, o controle sobre a sua criação, a riqueza, e sobre o processo de criação, o trabalho. Talvez seja (e isto é uma sugestão à reflexão, não um postulado dogmático) justamente a permanência da atuação das religiões no seio do proletariado que o propicie a reproduzir, na luta política e social, os procedimentos próprios das religiões: a formação de dogmas, a criação de mitos, o surgimento de ideologias mistificadoras, a adoração dos chefes etc. Da tese de que o proletário é naturalmente revolucionário, alguns dos leitores deste site chegam à tese de que ele é incapaz de pensar e de se solidarizar com seus iguais rompendo com os procedimentos, os ritos, as formas de organizar, próprios da religião… Quanta coerência!

  23. Devo ter me expressado muito mal, para ilações como estas que tirou de meu comentário Fagner.
    O q pretendi afirmar foi que:
    1) os religiosos conhecem muito bem as formas de lidar com o proletariado, pois atuam por meio de instituições muito antigas.
    2) muitas coisas são feitas no âmbito religioso. Outra coisa é avaliar se poderiam ser feitas em um âmbito não religioso (concordo contigo q poderiam perfeitamente).
    3) a religião atua para o conformismo e não para a rebeldia é uma coisa, a necessidade de conforto para as mazelas q enfrentamos é outra. Avaliar se o conforto propiciado pela religião e falso ou não, é uma terceira coisa.
    4) constatar a inexistência de algo é uma coisa, a possibilidade ou impossibilidade de sua existência é outra.
    5) o proletariado possui uma dupla vida q nega e afirma a sociedade em que vivemos ao mesmo tempo. Avaliar a capacidade do proletariado em fazer isto é outra coisa, que por sua vez também difere de considerá-lo revolucionário ou incapaz de fazê-lo.
    Quanta dificuldade de entendimento!
    Mais acima o Taiguara referiu-se ao SER e ao DEVER SER. Nessa mesma linha, é importante não confundirmos “juízo de constatação/realidade” com “juízo de valor”.
    Por fim, embora seja eu um ateu militante, concordo com o texto qdo afirma q não há espaço para militância ateista antes de percorrido um longo processo de atuação prática partilhada.

  24. Se algo, no caso: a religião, atua para o conformismo e propicia conforto para as mazelas que enfrentamos, trata-se da mesma coisa: precisar de conforto é um ato de conformismo. Quem não aceita o que está estabelecido não precisa buscar conforto algum: pelo contrário, a não aceitação do estabelecido é, no mínimo, desconfortável e desconfortante. Se o conforto é falso, é óbvio que sim, nem me darei ao trabalho de ter que discorrer sobre isso. Por fim, esta dialética do “ser” e “dever ser” pode nos levar à miopia: não se trata do que é, mas deveria ser de outra forma. Trata-se do que está sendo, mas pode vir a ser de outro modo. Estou a realizar considerações sobre uma tendência atual: a desmobilização do proletariado pela influência ideológica de poderosas lideranças religiosas conservadoras. Não estou a falar do pastor da esquina, nem do padre da paróquia ao lado, nem da freira missionária da comunidade tal… estou a falar de homens como o missionário RR Soares, o Pastor Silas Malafaia, o Apóstolo Valdomiro Santiago, o Bispo Edir Macedo etc., etc., etc., bem como dos seus imitadores menores, de influência regional ou local. Na cidade onde vivo, Goiânia, existe o chamado Apóstolo César Augusto, que fez de seu filho, Fabio Souza (filiado ao PSDB), vereador (com o maior número de votos para vereador nas eleições de 2004) e depois deputado estadual duas vezes (o mais jovem deputado eleito do Estado até hoje). Portanto, estou a falar de números: ao invés de aderir a este ou àquele movimento social, o proletariado está a conquistar recordes eleitorais para os sujeitos mais conservadores e reacionários do cenário político. E isso é bastante sugestivo. Sugere que a inserção, a influência, dessas pessoas, no seio da classe trabalhadora, é tremenda. O mesmo ex-vereador e atual deputado estadual tem sido um dos maiores aliados do atual governador, Marconi Perillo, o qual se notabiliza pela truculência com que procede para com os movimentos grevistas, populares e reivindicatórios em geral, além de se notabilizar pelo envolvimento com a famosa máfia de Carlinhos Cachoeira e outras coisas mais. Acontece que grandes contingentes do proletariado estão a dar apoio, pelo menos apoio passivo, a estes senhores. Não estão a se mobilizar em redes religiosas de solidariedade, mas a fazer outra coisa, muito diferente. Além do mais, quem quer que se dedique, um pouco ao menos, a constatar o conteúdo da pregação destes senhores, perceberá que as igrejas neo pentecostais, que alguns comentadores estão a defender, baseiam seu sucesso na promessa de fazer o fiel alcançar um sucesso financeiro milagroso: curiosamente, nas suas propagandas, só são retratadas “histórias de superação”, as mais emocionantes, dos empresários que passaram a frequentar a igreja para reconquistar a prosperidade financeira perdida. Se há alguém aqui que defenda esse tipo de coisa, querendo me taxar de católico preconceituoso em relação à heresia neo pentecostal progressista, então os comentadores deste site padecem de um mal muito maior do que eu imaginava. Não fazer militância ateísta contra esse tipo de gente é uma bandeira que só levará ao seu fortalecimento. Que só afastará a classe trabalhadora de uma perspectiva de mobilização para a transformação social.

  25. Por conclusões parecidas com as de Fagner, onde ganha destaque o terreno ideológico – principalmente o da da disputa eleitoral -, é que a quase totalidade da esquerda goianiense esvaziou os movimentos de base e direcionou seus esforços à propaganda eleitoral em torno do voto nulo (obviamente falo da fração que se diz anti-partidária componente da já minúscula esquerda goianiense).
    Uma tristeza, duro de ver.

  26. Infelizmente, Rodrigo Araújo é outro dos que não sabe ler o que está escrito diante de seus olhos. Não escrevi em lugar algum que se deve esvaziar os movimentos de base e direcionar esforços para a propaganda eleitoral em torno do voto nulo. Se Rodrigo Araújo conseguiu ler isso no meu comentário, viu muito onde não havia nada. Usei o exemplo eleitoral para ilustrar o fato de que são os líderes religiosos e até mesmo os partidos de esquerda eleitorais que afastam o proletariado dos movimentos de base, reduzindo sua ação política ao voto nas eleições. A diferença entre os grupos religiosos e os partidos, incluídos aí os de esquerda, é que os religiosos tem um poder de mobilização maior do que o dos demais partidos, hoje. É um mar de gente, quando se tratam de festas ou outras manifestações religiosas, o que não ocorre num comício ou manifestação convencional. Essa gente, contudo, é mobilizada para não atuar política e socialmente na perspectiva das lutas sociais: nessa perspectiva, querem os líderes religiosos de maior inserção, protestantes ou católicos, que o proletariado seja passivo, sendo ativo somente quando em frente do altar etc. O terreno ideológico há de ganhar destaque, se se quiser que as lutas sociais vão adiante. Caso contrário, pode-se ignorá-lo, imaginando que quanto antes paramos de pensar no problema mais rápido ele se resolverá por si mesmo.

  27. Vale observar que o texto da Débora foi originalmente um comentário sobre uma mobilização ocorrida na M’Boi Mirim (São Paulo), que, segundo material divulgado aqui no PP, foi organizada também pela Associação Beneficiente Caminhando com Cristo, que integra a Confederação das Igrejas Independentes do Brasil:
    http://passapalavra.info/?p=64525

  28. O que Fagner não entende é que talvez – só talvez? -, as igrejas consigam cumprir uma função prática dentro de suas metas, algo que muitas vezes as esquerdas não conseguem dentro do que deveriam ser as suas. Será que estes objetivos se reduzem à pregação? Este é o ponto.
    Mas se assim for, sugiro então que crie logo a igreja dos marxistas heterodoxos reformados.

  29. Para quem não tenha aversão à leitura, ler Dostoievsky ajudaria não a resolver esta questão da religiosidade popular, mas a clarificar as dúvidas, o que é muito mais importante. Aliás, ajudaria nesta questão e em muitas outras.

  30. Como viciado (nicotina, cafeína) e usuário esporádico de alteradores de consciência (marijuana, álcool e mais para efeitos de curriculum vitae, ectasy), como vagabundo assumido, como frequentador da “zona” (meretrício, para os não brasileiros) e dono de uma sexualidade que se recusa a normatizar-se no agora feijão-com-arroz do binômio hetero/homo, talvez até mesmo como golpista, não posso deixar de dar razão à Débora quando ela atribui a membros destas categorias pouco nobres um “individualismo excessivo”.
    Se pensarmos bem, eles somos o sintoma da própria sociedade capitalista exatamente por “patologizar” aquela característica que é considerada a maior virtude dessa mesma sociedade: o individualismo.
    Nesse sentido, eles somos o anticorpo que se volta contra o próprio corpo de que faz parte, um pouco como acontece naquelas doenças autoimunes, quando o nosso sistema de defesa biológico se volta contra os nossos próprios tecidos.
    Talvez venha daí – dessa potência de destruição do sistema por dentro, desse curto-circuito de identificação – parte da “força” de mitificação que outros comentaristas já referiram aqui: é que, ao agirem como agentes provocadores, se utilizando das próprias ferramentas oferecidas pelo sistema (no caso, o individualismo), amplificando-as, “patologizando-as”, eles encenamos uma narrativa desagradável, mas reveladora, que expõe as entranhas da normalidade aparente onde viceja o capitalismo. Seria interessante observar, ainda que este não seja o ponto aqui, que essa mitificação se dá principalmente no terreno das artes, onde parecem existir as melhores condições de expressão para esses abjetos sociais. (E o mais curioso é que, quando conseguem aí se afirmar – portanto, produzir “algo” – passam a ser reconhecidos por essa mesma sociedade que antes os tinha desprezado, quando então são até considerados fundamentais e imprescindíveis, portadores, afinal, de algum tipo de capacidade de articulação; mas isto é outra estória)
    Concordo que qualquer movimento social que se queira afirmar, que queira empreender qualquer luta em prol de uma coletividade não poderá ser fundado a partir dessas categorias, e se deparará sempre com indivíduos problemáticos cada vez que eles se presentificarem nessas lutas.
    Como espécie, somos o ápice do “individualismo” (autoconscientes, “inteligentes”, reconhecemo-nos no espelho, e dizemos “eu”) mas, ao mesmo tempo, da coletividade (dizemos “eu”, mas também dizemos, “tu” e “ele”, e só conseguimos os feitos que conseguimos agindo coletivamente), sem a qual não vingaríamos, frágeis e desajeitados que somos.
    Conclusão da estória: nenhuma.
    PS.: Eu acrescentaria a essa lista de aberrações sociais os loucos, seja lá o que “loucura” queira dizer.

  31. Com certeza, Observador não leu o comentário em que eu disse que grupos conservadores podem até apoiar algumas lutas, como a luta contra a precariedade do transporte, por exemplo. Mas o que ocorre é que: primeiro, o que estas lutas estão a fazer é poupar trabalho aos gestores, chamando-lhes a atenção para problemas que estes se interessam por resolver; segundo, as classes dominantes se notabilizam por tomar para si o programa das classes populares, mas retirando seu conteúdo mais contestatório, mais revolucionário: assim, as religiões conservadoras podem muito bem apoiar esse tipo de mobilização.

    Já para Rodrigo Araújo o problema é sempre a esquerda marxista, incapaz disso e daquilo. Se as igrejas conseguem cumprir uma função prática dentro de suas metas… Maravilha, é isso o que importa, mesmo que a meta cumprida seja antipopular, antiproletária, contrarrevolucionária! Culpa da esquerda que não consegue fazer nada, e mais nada, e mais nada. Bem feito para a esquerda! Vivam as igrejas! Então, eis que vem a sugestão do século: “crie-se a igreja dos marxistas heterodoxos reformados”… Mas estou eu a defender os procedimentos e as formas de organização das igrejas? Não, quem o faz são meus interlocutores… pobres deles.

    Num comentário que fiz, a outro artigo deste site, disse que muitos leitores deste site são ávidos em criticar as ortodoxias, mas não deixam de ser eles ortodoxos: há, aqui, um senso comum estabelecido, o qual chega a espantar. Quem quer que manifeste ideias que contradigam este senso comum é acusado disso e daquilo, e isso e aquilo é, sempre, ser autoritário. Se você manifesta opiniões ateístas… Autoritário, pois o povo é crente! Se você ousa manifestar opiniões inspiradas em qualquer marxista que não seja conselhista e que é, portanto, autoritário, e deve ter suas obras jogadas no lixo… Autoritário, pois o conselhismo, em matéria de revolução, é o que há (mesmo que você também se declare inspirado pelo conselhismo)! Se você ousa dizer que o proletariado não é naturalmente revolucionário, dizendo que os que dizem o contrário acabam por mitificar o proletariado, você é, novamente, um autoritário! Conclusão: quem quer que ouse pensar por conta própria (independentemente do senso comum aqui estabelecido) e exprimir o que pensa, neste site, é exatamente o que os leitores deste site julgam que não são: autoritário.

    A mitificação do proletário, neste site, chega a níveis delirantes: o proletário é revolucionário em tudo o que faz. E quem ousa propor algo diferente é contrarrevolucionário por excelência, ou seja, é autoritário! Mas o importante é ter com quem concordar, é ter um conformismo no qual buscar conforto (para reproduzir o discurso de um de meus interlocutores): então chovem críticas e mais críticas, de comentadores e mais comentadores (que não são autoritários!), os quais se limitam a repetir exatamente a mesma coisa: tudo o que o proletariado faz, bom!; tudo o que a esquerda pretende fazer, mas não consegue nunca, ruim!. E assim seguem as polêmicas. Só não me canso de continuar a comentar porque acho isso tudo muito divertido.

  32. Não Fagner, o que importa é não ser obtuso e trabalhar com a realidade que existe. Seu raciocínio é tão cheio de furos que não acho que o mais importante seja debater tese por tese.

    Quando critico sua posição, não o faço na perspectiva do autoritarismo, mas sim na do dogmatismo. Muitas vezes os que se apresentam como antípodas estão mais próximos na prática do que imaginam, trabalham com estruturas de funcionamento análogas, apesar da divergência quanto ao conteúdo. Foi desta perspectiva que fiz meu primeiro comentário e também o segundo, ao sugerir semelhanças da sua fala com a de um pastor missionário.

    Ao contrário do que coloca, não acho esta situação nada divertida, pois demonstra uma fragilidade incrível na perspectiva daqueles que buscam de alguma forma contribuir com as lutas sociais. Sei que expor estas coisas causam muito incômodo, mas não fazer não é uma opção, se o objetivo é avançar na construção de um ambiente de luta mais propício.

    Mas, na minha última tentativa de tentar contribuir, te faço algumas perguntas: qual é o potencial aglutinador de uma luta anti-religiosa hoje? Existem coisas mais urgentes e espaços mais privilegiados para a luta?
    Acho que é desta perspectiva que o texto deve ser lido e não como um guia para a resolução de todas as contradições das lutas sociais.

  33. Fagner, desculpe-me a franqueza, mas me parece que você não lê os comentários direito e está tão na defensiva que sai acusando todos sem ao menos perceber que em muitos pontos há concordâncias, mas em tantos outros não. E se você se propôs a fazer um debate (penso que foi esta a sua intenção ao postar um comentário aqui) então deveria saber que nestes casos comentários te provocando ou te contradizendo poderiam surgir. Desde que isto tudo seja feito com cordialidade, sem insultos, eu fico sem entender qual é o foco das suas queixas contra os outros interlocutores.

    Um exemplo de concordância com todos aqui, inclusive você, me parece ser o fato do proletariado não ser por essência revolucionário. Que ele é formado por muitas contradições e que pode tanto atuar nas lutas como contra elas. Me corrija se estiver errado após a releitura de todos os comentários. Portanto, não há porque ficar batendo nesta tecla se não há mais nada a contribuir neste aspecto.

    Segundo, não vi ninguém aqui defendendo as igrejas, muito menos as neo-pentecostais. No geral, todos parecem defender o pressuposto que elas conduzem os trabalhadores a atuarem dentro da ordem e, portanto, são mesmo instrumentos conservadores. A questão já colocada com todas as letras, inclusive em CAIXA ALTA, é que uma coisa é como as coisas deveriam ser, outra é como elas são. E o que eu em particular coloquei aqui é que em alguns momentos as igrejas não agem como deveriam agir segundo a concepção clássica do marxismo em relação às religiões e suas organizações. Podem, inclusive, fazer o papel oposto. Quando fazem o papel oposto não deixam de incorrer em contradições. Estas contradições devem ser apontadas, como também devem ser apontadas as contradições de qualquer outra organização que se predisponha a organizar os trabalhadores de fora da classe, e mesmo, e talvez principalmente, as que são formadas de dentro das classes, no seio das lutas. Se elas fazem o que deveriam fazer então acredito que ninguém aqui defenda que não devemos combatê-las. Estrategicamente, neste momento defendo que gastemos mais energia compreendendo as nossas organizações (auto-organizações), ou até mesmo aquelas que geralmente são de fora (hetero-organizações) mas se confundem muito com as de dentro, como muitos sindicatos e muitos dos autoproclamados novos movimentos sociais, do que com estas organizações que raramente nos dias atuais disputam os rumos das lutas, pois atuam principalmente junto àqueles que nunca se ligaram a nenhuma ou já estão por completo decepcionados com elas. Além disso, e principalmente para neo-pentecostais, esta igrejas atuam com estratégias muito mais típicas das pequenas empresas do que das pequenas organizações políticas, e oferecem um produto (a fé?) ou uma gama de serviços (terapias, grupos de apoio, cuidados das crianças, etc.) a um preço muito mais barato do que o mercado comum, e que varia conforme a renda já que é cobrado de forma relativa. Quem pode mais, paga mais. Esta é a lógica do dízimo. Se estas organizações econômicas não conseguem oferecer tais serviços e produto a custo e qualidade menores do que o mercado formalmente estabelecido, então elas vão à falência como qualquer outro empreendimento. A sua concorrência com outras formas organizativas da sociedade, inclusive as organizações surgidas dentro das lutas dos trabalhadores deve ter também um conteúdo ideológico, não descarto. Mas com certeza a maior preocupação é que o trabalhador gaste tempo e renda em outras atividades a não ser na igreja. Além disso, e talvez o que deveria ser o principal mas não é, que se filie a outra rede de solidariedade que tenha por base outra lógica, uma lógica não mercantil. Deveria ser mas não é porque neste momento das lutas sociais só mesmo a gente – ainda bem que pelo menos a gente! – acredita na força que podemos ter. De outra forma, e volto ao meu primeiro exemplo, o pastor jamais liberaria sua fiel para participar de uma greve se ele já não soubesse de antemão que não sairíamos de uma reivindicação econômica controlada por um sindicato tão hierarquizado quanto a sua igreja. Até mais violento, te garanto. E aí volto para a questão inicial: que adianta tacar fogo nas igrejas ou construirmos discursos mais poderosos do que elas se não somos, neste momento, capazes de dar respostas aos problemas que nós mesmos levantamos nas nossas lutas, problemas não somente de ordem ideológica, mas principalmente de ordem organizativa?

  34. Trabalho árduo o exemplificado pelo relato da Débora. Realmente notável. Infelizmente, contudo, é patente a assimilação das ideologias das comunidades ou “quebradas” (as outrora chamadas favelas), em que todo o resto aparece apenas como mistificação ou puerilidade. Disso se segue, paradigmaticamente, a concepção da religiosidade da Débora como simples compensação psicológica popular de uma vida materialmente miserável, ao passo que a terapia psicológica seria a “religião” dos abastados. Completa ignorância e mistificação tanto da primeira quanto da segunda questão. Essa ideologia da quebrada pretende que apenas os problemas da miséria material sejam reais, se bem que não se discuta que sejam mais graves e urgentes. Se a luta desenvolvida nas “quebradas” pretende, como pode muitas vezes ser o caso, apenas vencer os obstáculos à mobilidade social emperrada pela luta de classes, elevando os “populares” conscientemente à alçada das classes médias, então os chamados problemas frívolos das classes médias se manifestarão com toda evidência, e os sofrimentos psicológicos típicos de uma vida social urbana profundamente atomizada, desregrada, competitiva e destrutiva passarão a ser sentidos por essa camada ascendente.

    Nada disso deve invalidar as bases das observações da Débora, com as quais estou de pleno acordo. Falta apenas refinar a crítica de modo a perceber a distinção da natureza dos problemas concernentes à cada estrato das classes sociais subalternas. É importante interpretar devidamente as lutas específicas, superando as aparências enganosas. Isto é essencial, uma vez que, no plano das manifestações dos estratos médios da sociedade, o que é dito explicitamente em geral escamoteia contradições que não são encaradas em sua essência por esses próprios estratos. Nesse sentido, a onda de Marchas não traz sua explicação real nas bandeiras empunhadas em atos de manifestação. A crítica e a análise deve poder apanhar as cotnradições que motivam a luta, decifrando seu lugar na luta de classes e seus horizontes sociais de contestação. Se a ideologia das quebradas quer retirar a realidade aos problemas sociais que não sejam os seus próprios, então ela contribui para a mistificação, segmentando a realidade que é uma só, embora com distinções internas. Enquanto os militantes de esquerda não se empenharem em compreender que os problemas se fundamentam numa unidade, estabelecida pelo próprio sistema social, se difundirão essas ideolias sectárias, em que a da “quebrada”, especialmente, com seus mitos e ritos, pode fornecer a chave de movimentos regressivos, a depender do tipo de militância que se introduza nela.

  35. Só uma coisa que gostaria de comentar sobre essa relação entre as igrejas e os movimentos políticos dos trabalhadores.
    Alguns aqui apontaram com razão que existe certa ambiguidade no discurso de certas igrejas, mas isso se daria, segundo afirmam, porque as ações que apoiam não põem em cheque a ordem vigente (como o caso da greve citada pelo DanCaribé). No entanto, creio que o buraco seja um pouco mais embaixo. Temos que lembrar que nas periferias, onde as igrejas neo pentecostais se proliferam, os pastores muitas vezes não tem formação teológica, são autodidatas, e portanto, não raras vezes, desconhecem qual seria a “posição oficial” da igreja sobre diversos assuntos. E além disso, a grande maioria deles são, eles também, moradores do bairro e proletários. De tal forma que muitas vezes, quando apoiam uma greve ou um protesto, não é simplesmente porque não compromete a ordem estabelecida, mas porque eles próprios se vêem atravessados pela contradição de serem proletários e pastores.

  36. Rodrigo Araújo diz que meu raciocínio é “cheio de furos”, mas não se incomoda em demonstrar quais são. Afinal, não é importante debater tese por tese. Só digo, mais uma vez, que não estou a convocar uma luta antirreligiosa, estou meramente a afirmar que é preciso tentar tirar o proletariado da influência ideológica das religiões, se se quer que ele se mobilize na luta anticapitalista (que haverão enfrentamentos com os grupos religiosos conservadores, para mim está claro que sim, e não se trataria de uma novidade histórica).

    DanCaribé continua com a dualidade “ser” e “dever ser” (em caixa alta, ressalve-se!), quando, na verdade, eu estou a afirmar exatamente que talvez ela seja inválido para analisar o problema, e é por isso que não tem havido diálogo: nenhum dos comentadores disse que o proletariado é propenso naturalmente a levar os seus superiores hierárquicos à guilhotina, mas o que fica patente na sua argumentação é que, contato que o proletariado haja “sem” (dispensarei a caixa alta) a intervenção do que se convencionou chamar por vanguarda, está tudo bem, este é o caminho. Ao passo que, quando a vanguarda, com seus preconceitos elitistas, intervêm na luta, tudo começa a dar errado, porque sua intervenção é sempre no sentido de usurpar o protagonismo do proletariado no processo de luta. Assim, o proletariado tende para a revolução, ao passo que a vanguarda tende para a contrarrevolução. Eu me resumi, até agora, a afirmar que não vejo as coisas segundo essa perspectiva: defendi que o proletariado tende a aderir a um projeto, ou a uma organização etc., que lhe pareça, de imediato, o mais viável para alcançar objetivos imediatos, e que isso acaba lhe colocando em apuros depois. Diante de um quadro no qual as igrejas oferecem certos projetos à apreciação do proletariado, ao passo que a esquerda às vezes se resume a colocar a mesma coisa em pauta (lutar por determinados ganhos materiais imediatos, que, na verdade, fazem parte das condições gerais de produção), o proletariado, no momento, opta por dar ouvidos e por aderir a quem, de resto, consegue se compatibilizar melhor com seu universo cultural, um universo de alienação, já que ele é sujeito, por definição, à exploração. Se algumas igrejas fogem à regra e não agem como deveriam agir, de acordo com a tradição marxista, ótimo… Mas exceções não são verificáveis em toda parte? DanCaribé diz que devemos nos esforçar em compreender as nossas organização e as organizações de fora… Por acaso eu convoquei a marcha dos socialistas ateus contra os religiosos fundamentalistas? Não, fiz sugestões, polêmicas claro, só isso. Vou acrescentar uma última questão ao seu último questionamento: será que não sabemos ainda como nos reorganizar exatamente porque quem “deveria” estar se organizando, nas lutas, já está se organizando noutro lugar, para fazer outras coisas (ou, melhor, quem gostaríamos que estivesse se organizando nas lutas)? Me explico: se o proletariado já está engajado em outras organizações, pois já aderiu ao projeto que elas sustentam, não seria o caso de se disputar a adesão do proletariado com um novo projeto, uma nova síntese programática, ao invés de com novas formas de organização sem projeto definido?

  37. Fagner, por favor, cite a frase em que eu disse que o proletariado precisa ou não de uma vanguarda. Ficarei muito agradecido com esta sua gentileza, pois me acusa de uma coisa que não defendo, pelo menos não nestes termos.

    Sobre “disputar o proletariado com uma nova síntese programática”: é exatamente contra isto que escrevi meus dois últimos comentários, portanto não me alongarei muito. A própria luta e os seus lutadores, ao se auto-organizarem, são capazes de construir um próprio projeto político (é uma possibilidade, que fique claro, e muitas vezes pode não acontecer). E somente um projeto politico construído na própria luta pode dar respostas às questões que deram origem à luta. Daí criar esta “nova síntese programática”, que só poderia surgir de fora das lutas, não me parece ser outra coisa a não ser o mesmo que fazem as igrejas, só que com uma linguagem própria.

    Dito isto, só tenho a agradecer por ter colocado de forma tão clara na sua questão as diferenças entre a gente. Não faria melhor.

  38. Um manual de instruções para discriminar, seleccionar, aprovar, desaprovar e remeter para escolha preferida aqueles que têm mais pedegree.
    o problema é que a democracia e o voto ficam de lado para não haver misturas.

  39. Massa, o texto. Achei engraçado como repercutiu a fala sobre o estereótipo dos não aceitos. Me parece tão claro que para desmontar esses e quaisquer estereótipos precisa primeiro estabelecer uma interlocução legítima, e que pra isso, precisa pelo menos de modéstia suficiente para entender de que lugar as pessoas falam, e para saber que elas te vêem a partir do lugar de onde você fala. Ponto de partida para qualquer coisa, que nos nossos tempos confusos e narcisistas, anda ficando em último plano. Valeu, Débora.

  40. Acho que o Gustavo apontou bem ao lembrar do tabaco. E os VICIADOS em cigarro? E os VICIADOS em religião? Em televisão? Não seria o caso de problematizarmos um pouco mais o senso comum não?

    Entendo que a autora colocou esses pontos em relação a “putas, vagabundos e viciados” como análise, não necessariamente como defesa, mas acho problemático referendarmos isso apenas por ser algo “da quebrada”. Tanto na quebrada como sei la, na universidade, existem uma série de preconceitos, e a questão em relação ao dependente de drogas – legais ou ilegais – , categoria que é (ou deveria ser) diferente da de usuário, é uma das mais reproduzidas atualmente pela grande mídia e pelo senso comum. Certamente vamos encontrar muita gente na quebrada que é homofóbica, aí vamos recomendar não abordar a questão da intolerância aos LGBT quando formos pra periferia? Me parece mais interessante tentarmos equilibrar o “respeito aos valores populares” preconizado pela autora com o combate aos preconceitos e opressões, seja em que região da cidade for.

    A própria escolha do termo VICIADO é tão ideológica quanto optar por invasão ao invés de ocupação – e como lembrado acima, também puta e não trabalhador(a) do sexo. É o mesmo que a grande imprensa vem fazendo ao classificar como ACOLHER a INTERNAÇÃO, o recolhimento, de supostos dependentes químicos, obviamente moradores de rua, e obviamente já tachados como viciados.

    Por fim, em relação especificamente a questão da descriminalização das drogas ser “mal vista” na periferia, como aponta Débora no comentário, também acho que é algo a, se não questionar, ao menos relativizar. Em primeiro lugar é só vermos o lugar que a maconha tem na música rap, expressão cultural importante dos “valores populares”. Em segundo, o alto e incontestável consumo entre os setores populares, e aí não só de maconha, de outras substâncias lícitas e ilícitas também – mesmo que para com crack haja sim forte desconfiança. Em terceiro, temos feito diversas atividades na periferia de São Paulo sobre drogas, e não tenho visto essa rejeição toda não. Cito não só a articulação com grandes nomes do RAP na Marcha da Maconha (como Sandrão, Rapppin Hood e Thaíde) como atividades como participações no Sarau do Binho e da Vila Fundão, junto a Amparar na Cohab Jardim Bonifácio, junto ao CEDECA Interlagos, no Jardim Ângela, etc – nestes lugares o consentimento em torno da necessidade de alteração das políticas de drogas é muito grande, e na minha opinião crescente.

    Assim, na minha opinião seria melhor problematizar alguns pré-conceitos do que simplesmente reproduzi-los.

    Abraços,
    Júlio

  41. Intrometo-me de novo neste debate para contar duas coisas, que talvez sejam úteis para quem ler com olhos de ler, como diz uma expressão portuguesa.
    A primeira passou-se no sul de Portugal, no Alentejo, em 1975, no auge da revolução. O proletariado agrícola alentejano ocupou os latifúndios não para fazer uma reforma agrária no sentido reivindicado por exemplo no Brasil, repartindo-os em pequenas propriedades, mas para os manter cultivados colectivamente. Foi a criação das Unidades Colectivas de Produção, uma das expressões mais avançadas da revolução portuguesa. Numa dessas UPPs as mulheres conseguiram introduzir nos estatutos um limite para o consumo de vinho por cada homem. A história era a de sempre, os homens embebedavam-se e, chegada a noite, não dava para fazer mais nada com as mulheres senão espancá-las. Pois sabem qual o limite que as mulheres fixaram como razoável? Note-se que a aguardente, o equivalente português da cachaça, não estava incluída. E note-se também que o vinho alentejano é muito forte, 14,5 graus, podendo chegar a 15 graus. O limite que as mulheres conseguiram impor a cada homem foi de cinco litros de vinho por dia.
    É com pessoas assim que se fazem as revoluções e não com figuras de cartão recortadas dos manuais nem com os fantasmas dos nossos desejos.
    Agora, a outra história. Quem a contou foi o genial poeta russo Aleksandr Blok no seu poema Os Doze, que não sei se está traduzido para português. Leiam o que quiserem sobre a revolução russa de 1917, leiam a série de volumes de E. H. Carr ou o livro de Trotsky ou qualquer das incontáveis obras sobre o assunto, mas, se seguirem o meu conselho, leiam tudo isso à luz do poema de Blok, e poderão começar a entender um pouco a função da religiosidade popular numa revolução de cujos comandos se apoderaram revolucionários ateus. Entre as muitas qualidades de Lenin contava-se a de não ser imbuído de preconceitos, e é interessante saber que durante a guerra, mas antes de Fevereiro de 1917, ele indicou a um sociólogo bolchevista, estudioso dos Velhos Crentes, que analisasse o fenómeno de Rasputin. No mesmo sentido da religiosidade popular deveria ler-se também um teórico marxista de renome, Ernst Bloch.
    Uma vez mais, é com pessoas assim que se põem as revoluções em andamento. Outra coisa é saber onde elas levam, e parece-me ser aí que entram os desejos de cada um de nós, quaisquer que sejam.

  42. Júlio,

    Eu desconfio que o público que você encontrou tão receptivo à discussão das drogas não seja igual ao de todas as quebradas! Por onde eu ando não vejo, de forma alguma, nenhuma mãe, tia ou avó relativizar o uso da maconha e, principalmente, do crack e do álcool por seus filhos, netos e familiares em geral. Da última vez que fui à Bahia, algumas pessoas da comunidade, numa cidadezinha onde cresci, expressaram certo pavor em relação aos meninos da própria vizinhança dependentes do crack; relataram que eles estavam pulando até mesmo os muros dos quintais para roubar caldeirões ou bacias de alumínio. Com isso eles vendiam ao ferro-velho e com o dinheiro obtido comprvam a droga, quando não roubam butijões de gás, tvs de suas casas para vender em troca das drogas. Notei também que muitas casas na rua de minha avó tinham grades nas portas – condição que alguns encontraram para tentar aplacar o medo. E, ainda, quem tem casos de dependentes químicos em casa sabe que não é nada tranquilo lidar com o problema, e, até mesmo por este motivo, muitos procuram as igrejas para conseguirem algum tipo de ajuda, já que o sistema de saúde não disponibiliza universalmente tratamentos aos dependentes e em qualquer região.

  43. Oi, Simone,
    no meu comentário eu falei em relativizar a afirmação da Débora da defesa da descriminalização ser mal vista, não falei em negar isso. Concordo com você, há ainda grande preconceito em relação ao tema, sobretudo em relação ao crack – assim como há imenso preconceito contra homossexuais também, em todos setores sociais. Mas vejo também, por outro lado, que o debatem tem AVANÇADO bastante, sobretudo entre os jovens – não posso falar pelo conjunto das quebradas do Brasil, mas citei exemplos concretos em que estive presente, alguns inclusive gravados em vídeo.

    Concordo com você que não há tratamento gratuito de qualidade para as pessoas que dele necessitam, e que o tratamento da dependência muita vezes é penoso – ainda mais quando as únicas opções são as religiosas, que você lembra, as chamadas comunidades terapêuticas, que se pautam não só por práticas que violam os direitos humanos (tortura, laboroterapia, “cura gay”, conversão religiosa, etc) como são altamente ineficientes, é só ver o índice de reincidência dos pacientes nelas, tem gente que já foi internado 20, 25 vezes, e não adiantou nada – a não ser pros donos das clínicas, claro.

    Agora repare que tanto a sua abordagem sobre o crack em seu comentário quanto, de outra forma, a que permeia o texto que estamos comentando, estão permeadas pelo enfoque em apenas uma das facetas que envolve essa substância. Se por um lado é inegável que o crack é uma substância cuja dependência é bastante sofrida, por outro devemos lembrar não só que ela é mais danosa sobretudo entre setores de maior vulnerabilidade – nos levando à conclusão a meu ver óbvia de que o problema está na condição social mais do que na droga – como que qualquer pesquisa séria aponta que o índice de dependência no uso de crack não é majoritário, ou seja, há muita gente que usa e segue desempenhando sua vida social sem o menor problema. Esse lado do consumo fica invisível diante de abordagens que só se enfocam no VICIADO, o que me parece tão prejudicial quanto se falar DA DROGA sem pensar nos efeitos de sua proibição, sendo um deles, no limite, a própria existência do crack, ele mesmo um produto da proibição das drogas.

    Abraços,
    Júlio

  44. Júlio,

    Quando Débora diz que “viciados”, “putas” etc não têm “moral”/poder para iniciarem qualquer trabalho na quebrada, ela está dizendo que estes sujeitos não conseguem o respeito, a confiança precisamente porque a comunidade é permeada pelos, e reproduz também, preconceitos que cercam estas questões; a desconfiança moral nestes casos impediria qualquer aliança ou parceria para uma ação política. Dizer que deveríamos levar em consideração este ou aquele aspecto do tema é pouco elucidativo, pois o texto não levanta as exceções à regra. O texto apenas apresenta algumas constatações que podem parecer óbvias para alguns, mas que, para outros ou até os iniciantes do ativismo anticapitalista e popular, seria interessante conhecer e considerar estes aspectos caso queiram atingir algum êxito na construção de ações com/na comunidade. Portanto, no meu comentário, o entendimento é de que qualquer sujeito que cole para colaborar ou iniciar qualquer luta na quebrada precisa entender estas contradições.

    Abraços

  45. Como foi colocado em um artigo deste site o Brasil é o segundo maior consumidor do mundo em cocaína. Difícil imaginar que boa parte da militância, seja de classe média, ou da “quebrada” não a esteja consumindo. Vale o mesmo para o álcool, grande parcela dos militantes se reúnem em botecos para confraternizar.
    Concordo com o Júlio quando alerta para os perigos de tais generalizações preconceituosas. Desconheço militância na “quebrada” ou não que se consiga ir adiante com moralismos deste nível. E colocar as putas talvez seja a maior.
    Bem lembrada a questão do João Bernardo de que as lutas se fazem com as pessoas concretas com suas vícios, e o que se coloca é como ir adiante nos seus limites.
    Para tal Laércio toca em um ponto central, parcelas da esquerda tem se dedicado a ver na periferia e na “quebrada” a nova meca da classe revolucionária, tendo uma visão limitada porque ignorante e parcelada da luta de classes. A não ser que se queira entender a miserabilidade como este critério. Aí entra outra contradição e limitação deste pensamento e da esquerda de forma mais ampla que é não conseguir trabalhar com os caras mais fudidos neste sistema. Os moradores de rua (normalmente entendidos hoje como sinônimo de viciados ou lumpem), são totalmente ignorados pela esquerda, mas o serão também pela direita? Antes que me acusem, não digo que são o novo sujeito revolucionário.

  46. Depois do comentário acima eu fiquei curiosa para saber como os camaradas do Ocupa Sampa, por exemplo, lidaram com os usurários de drogas no acampamento, debaixo do Anhagabaú, em SP? Como os camaradas lidam com o tráfico em alguns lugares para conseguirem fazer trabalho social? Tenho curiosidade para saber também como os camaradas enfrentam os conflitos conjugais, o alcoolismo nos acampamentos e assentamentos dos movimentos socias em geral… Talvez, socializando essas experiências consigamos não escorregar em “moralismos”.

    Abraços

  47. Uma classe social certamente tem os limites de sua práxis traçados pela sua posição de classe, isto é, pela posição que lhe é imposta pelo ordenamento jurídico-político que normatiza o modo de produção no qual ela se insere. Mas dentro destes limites existe todo um terreno aberto no interior do qual apresentam-se opções, as quais são colocadas diante da classe social – com maior ou menor eficácia –, pelas tradições culturais de seu tempo, para a sua apreciação e para a sua adesão. Este terreno aberto só pode ser o ideológico, o amálgama de ideologias que compõem o universo cultural da classe social em questão. Se, por um lado, o próprio ordenamento jurídico-político da sociedade é já uma ossificação de determinada ideologia, por outro lado, tal ideologia dominante não chega a ser a única existente: ou porque ela se ossificou na estrutura jurídico-política da sociedade sem conseguir eliminar por completo ideologias rivais, que são a marca de um passado que se recusa a ser passado; ou porque ela não alterou as relações sociais fundamentais do modo de produção, estimulando, nos indivíduos, a busca – nas tradições culturais vivas ou por reviver – de ideologias que sirvam de fundamento para a práxis que eles estão se esforçando para desenvolver; ou porque a sociedade intercambia com outras sociedades, de onde provêm novas ideologias, vistas com bons ou maus olhos, dependendo da situação.

    Uma classe social, portanto, apesar de ter seu comportamento restringido por restrições jurídicas e políticas – que, se transbordadas pelo indivíduo, colocam-no noutra classe, e, se transbordadas pela classe, deixa ela de existir – pode optar por uma, dentre várias, estratégias de comportamento. A questão é: qual será a tradição cultural na qual o proletariado buscará suporte para a práxis que ele se esforça por desenvolver? O ser humano é criador, mas ele cria através da remanipulação do que já foi criado, noutro tempo, do que já foi criado e que manteve seus vestígios, por vezes ocultos, nas tradições culturais ainda vigentes. Quanto maior é a base sobre a qual o ser humano se coloca para começar a criar, tanto maior será a sua capacidade de criar o novo, já que é maior a quantidade de elementos a seres remanipulados. Quanto maior é o conhecimento de uma classe a respeito da práxis que foi por ela desenvolvida historicamente, maiores serão as chances de ela inovar esta práxis de um modo que a capacite a criar novas formas de luta, novas estratégias, novas formas de organização, que sejam eficazes para pôr, em seus termos, um termo à sua própria luta. A questão é, novamente: qual é a fonte da qual beberá a classe operária, para criar o novo?

    A meu ver, a função da vanguarda é ser portadora do conhecimento que pode ser transformado, pela classe, em autoconhecimento e, assim, em princípio de ação. Sua função é manter viva a memória das diversas tradições de luta, das diferentes teorias revolucionárias, das divergentes concepções de organização, das apreciações dos erros e acertos – além, claro, de procurar se apropriar da herança intelectual das classes dominantes, as de ontem e as de hoje, filtrando o que há de útil para enriquecer este autoconhecimento (o que não é pouca coisa). A revolução se faz com pessoas que possuem vícios, preconceitos e limites, certamente, mas a função da vanguarda – que são os elementos mais avançados da classe social, ou os elementos originários de outras classes que aderiram à luta desta classe social – é podar-lhe os vícios, preconceitos e limites, orientando-as para a superação destes vícios, preconceitos e limites. Sua função é reapresentar a classe à sua própria história, reapresentá-la às promessas do passado, colocando-as como possibilidades do presente e do futuro. É buscar a sua adesão a um projeto, que é promessa não cumprida, mas que se pode cumprir.

    Não existe um tipo de comportamento, nem um modo de se ver as coisas, “da quebrada”. O que existe é uma multiplicidade de modos de se ver as coisas, os quais condicionam os comportamentos, e que nem sempre se originaram na “quebrada”. A questão é: irá a vanguarda desempenhar o seu papel, de intervenção intelectual ativa, ou desempenhará uma função meramente contemplativa, passiva perante as correntes intelectuais ali ativas e os comportamentos que elas condicionam, os quais permeiam o universo da “quebrada”? As pessoas que passam suas noites na “quebrada”, passam também o seu dia, muitas vezes, fora dela, no centro de uma metrópole, convivendo com um universo bastante diverso do da “quebrada”, colaborando, no trabalho e em outros locais, com pessoas que não são da “quebrada”, compartilhando com elas formas de pensar e agir. Um proletário, portanto, tem diante de si uma multiplicidade de opções. A esquerda que se recusa a colocar-lhe uma opção a mais – venerando os modos de ver, pensar e agir deste proletário, nos seus momentos ocasionais de conflito com a ordem – presta-lhe, assim, um desserviço. Trata-se de uma alternativa a menos. Apresentar alternativas tem sido, neste site e em outros lugares, confundido com (tentar) exercer controle ou (tentar) usurpar protagonismos.

    Se as novas formas de organização “espontâneas” não se generalizaram e não levaram a luta ao seu termo, isto se deve, creio, ou ao fato de que as opções, as alternativas, não estavam completamente claras, para aqueles que protagonizaram a luta. Ou, então, ao fato de que aqueles que deveriam resignar-se à posição de coadjuvantes começaram a pretender exercer o protagonismo da luta, apresentando isto como a única alternativa. Como podemos impedir que isso ocorra novamente? Definindo-nos, enquanto vanguarda, como coadjuvantes de uma luta cujo protagonista é, inegociavelmente, o proletariado, e estabelecendo permanentemente, institucionalmente, nossa posição de coadjuvantes. Agora, renunciar ao papel de apresentar alternativas e combater as existentes é inaceitável.

  48. Juro que eu gostaria de ver o Fagner Enrique fazendo trabalho de base na quebrada, mas enfim…
    Não são as vanguardas que devem portar o conhecimento, ou atuar “filtrando o que há de útil para enriquecer este autoconhecimento”. Meu Deus, já ouvi isso na história.
    A religião é uma visão de mundo problemática, concordo, mas não se supera uma doutrina se lhe opondo outra doutrina, senão ficaremos para sempre no embate do mercado das idéias. Eu prefiro acreditar que as pessoas se formam nos processos de luta. As situações concretas – de luta – pelas quais elas vão passando é que permitirão a elas por em xeque os seus preceitos ideológicos, não é nenhum estudante metido a sabichão falando no ouvido delas (não me refiro a ninguém em específico).
    Mas é claro que, para que se dê tempo de isso acontecer, os processos de luta precisam ser mais constantes e duradouros, e para que eles se iniciem, não tem como chegar com purismo ateísta onde quer que seja. Aliás, militância ateísta, por definição, não existe. O que existe é pregação ateísta. Pregação contra pregação, rarará!
    O papel da vanguarda é favorecer as situações de luta, só isso
    É claro que, numa situação hipótetica em que a luta tomou uma dimensão social taõ longa e profunda, ao produzirem as suas novas visões de mundo, as pessoas farão uso dos elementos ideológicos todos que permeiam a sua cultura. E o que resultaraá daí não nem o que diz Fagner, nem Paulo, nem Pedro, nem Cristo, nem Marx, nem Bakunin, nem nada disso. Ou é tudo isso junto e mais alguma coisa que, dentro da estreiteza das nossas experiências e dos nossos marcos ideológicos, é impossível de imaginar.

    Mas o que não pode é achar que se anula uma pregação opondo-se a ela outra pregação.

  49. Antônio,

    Você já reparou que morador de rua é basicamente uma coisa de centro, que quase não tem morador de rua na quebrada? Sim, a esquerda não resolve a questão do morador de rua – se bem que morador de rua não tá muito afim de esquerda – mas a quebrada dá um jeito. Aperta aqui, aperta ali, e arrumam um barraco. Na casa de professor da USP é que ninguém vai ser aceito, certo? Nem nos hotéis da Apeoesp. A propósito, me lembro do escândalo que foi, certa vez, quando universitários acolheram um jovem morador de rua e o colocaram para morar numa moradia estudantil.

    Eu não disse em nenhum momento que não se fazia uma luta com viciados, putas. O que disse é que tais pessoas não possuíam a carreira moral necessária para chamarem os outros pra luta. E não sou eu que o desejo assim, são as quebradas que colocam certas regras. Ou seja, isso era somente um comentário a um texto e eu quis apenas mostrar que aquelas pessoas que assumiam as lutas, além de ter que enfrentar um monte de coisas, passavam anteriormente pela análise da quebrada. Eu quis justamente mostrar como é difícil organizar luta na quebrada e muito mais fácil nas universidades, onde além de uma base mental e material melhor, certos preconceitos são menores.

  50. Falou muito bem, Paulo: “os processos de luta precisam ser mais constantes e duradouros”. Mas Paulo coloca toda a sua fé na suposição (ou será na certeza?) de que “as pessoas se formam nos processos de luta”, o que demonstra que, para Paulo, de pouca valia é o conhecimento das tradições de luta do passado. Eu, particularmente, não tenho tanta certeza sobre isso. Paulo supõe que da luta cotidiana concreta emergem os projetos mais amplos de transformação social. Digo eu que isso não ocorre. O que ocorre é o proletariado, ao mesmo tempo em que luta concretamente, proceder à adesão a este ou àquele projeto mais amplo, a esta ou àquela alternativa à sua disposição. O proletariado está a aderir aos projetos de outras classes, ao mesmo tempo em que luta concretamente por interesses imediatos. O problema talvez seja enfocar exclusivamente as tais lutas concretas da “quebrada”, ignorando a práxis do proletariado em outros momentos e locais: o mesmo proletariado que luta por moradia, transporte etc., é aquele que, por exemplo, nas eleições, escolhe como representantes políticos a direita e a esquerda neoliberais; e, mais importante, é aquele para quem democracia é o que está a vigorar no Brasil, é aquele para quem a palavra democracia não possui outros sentidos, pois não concebe outras variantes de democracia (É interessante notar como muitas revoluções, senão todas, começaram como revoluções democráticas: a revolução dos cravos é um exemplo. Mas, aí, democracia tinha uma multiplicidade de sentidos também.). Se o capital é totalitário, no sentido de dominar a totalidade dos aspectos da vida social, e no sentido de “recuperar as lutas”, a luta contra o capital, se se quiser que seja vitoriosa, só pode ser, ela também, abrangente. Alguns acham que podemos esperar mil anos, até que, das lutas imediatas da “quebrada”, surjam projetos abrangentes de transformação social, levados adiante pelo proletariado. Que pena.

  51. Fagner,
    Eu não disse que as lutas do passado não têm importância. Somente não creio que a instância depositária desta tradição seja uma instância ideológica. A memória das lutas passadas, o sentimento de pertença a uma história, a uma classe, só pode ser ativado nos processos de lutas. Uma vanguarda, enquanto tal, enquanto guardiã de uma tradição, é puramente estéril.

    Outra questão é a seguinte. As experiências de luta passadas só terão validade nas do presente se os erros e os acertos das primeiras forem balanceados. E tenho pra mim que a crença desmedida numa entidade portadora do conhecimento das lutas passadas conta-se entre os piores erros das lutas do passado.

    Quanto a “enfocar exclusivamente” nas lutas da quebrada, bom, isso não diz respeito ao que eu disse. Mas já que me é dada a oportunidade, eu apoio e sou entusiasta das lutas das quebradas apenas na medida em que é la onde vive grande parte da classe trabalhadora; nem mais nem menos do que isso. Mas é claro que há outras lutas por aí, tão importante quanto, que não passam necessariamente pelas “quebradas”.

  52. Sobre a discussão sobre a dependência de drogas dentro dos movimentos, lembrei do relato publicado aqui no PP sobre o autogoverno em Cherán, no México, e a forma como eles lidam com isso:
    “A entrada de veículos é permitida somente até as 20h e durante todo esse tempo imperou a lei seca, que proíbe a ingestão de bebidas alcoólicas. Exagero, pergunto a outro comuneiro: “Não, não! Se os talamontes de outras comunidades ou os próprios cartéis da droga nos pegam bêbados, nos espancam e conseguem informação valiosa. Bêbados ficamos muito vulneráveis”.”
    http://passapalavra.info/?p=57142

  53. Débora,
    Sem negar a existência desse espírito de solidariedade na quebrada, não se poderia dizer, entretanto, que as milícias armadas que muitas vezes ali existem também “contribuem” para a inexistência de moradores de rua – eliminando-os?
    De acordo com relatos de moradores de quebradas que conheço, fico com a impressão de que essas milícias desempenham um verdadeiro processo de limpeza social, para além dos objetivos de lucro imediato – até para se revestirem do papel de agentes de alguma “lei” – a deles, por suposto, mas também a da comunidade da qual usurpam o título de “protetores”, passando a “representá-la” paternalísticamente.

  54. Bem, sei que para você, Paulo, as coisas são diferentes… mas, para mim, a memória das lutas se preserva em instituições (fundadas antes, durante ou depois de lutas determinadas), e se preserva nas publicações dos lutadores e em sua produção intelectual, se preserva em documentos. Por se preservar em coisas desprovidas de vida própria, documentos, é preciso que alguém se disponha a dar-lhe vida, não lutando por isto ou por aquilo, mas tornado estes documentos matéria-prima para uma produção intelectual que se pretende contribuir à luta por isto ou aquilo. Que eu saiba, quando uma população, muito legitimamente, se mobiliza em prol da diminuição da tarifa tal ou em prol da pavimentação da rua tal etc., os populares não resolvem pensar como é que se organizavam as pessoas que lutavam pela diminuição do preço do pão na revolução francesa, algo que lhes seria muito útil. É lógico que tal memória só pode ser ativada no processo de luta – afinal, é a luta que coloca tudo mais em movimento –, mas tal ativação prescinde da mediação de pessoas já engajadas, ou que então começam a se engajar, no esforço de reconstituição histórica das lutas (e de refundação de um programa abrangente de lutas)? Reconstituição esta que se preocupa com o balanceamento dos erros e acertos. Não se trata de “uma entidade portadora do conhecimento das lutas passadas”, trata-se, isto sim, de várias entidades, que não são absolutas no tempo e no espaço, mas que estão sujeitas, elas também, ao fluxo cambiante das transformações sociais. E não se trata – digo novamente – de estas pessoas, que chamamos de vanguarda, serem as protagonistas da luta, mas sim os coadjuvantes (e, para tanto, a vanguarda deve conceber-se desde o começo como coadjuvante, definir-se institucionalmente como coadjuvante e declarar-se publicamente como tal). Ademais, já disse eu que as lutas não podem atingir o cerne do capitalismo sem sua vinculação com amplos movimentos democráticos de massa. O projeto socialista em si não é mais do que uma tentativa de dar continuidade ao projeto democrático, abrangente, levando-o às suas últimas consequências (sobre isso recomendo uma leitura: Artur Rosenberg, Democracia e Socialismo, São Paulo: Global, 1986). E quem é que tem consciência do que é a democracia hoje, do que foi ela no passado e do que pode vir a ser ela no futuro? Amplos contingentes do proletariado?

  55. Indicações que não só são úteis para a luta nas quebradas, mas também para as lutas de trabalhadores em gerais. Essa questão da carreira moral e “do clima de união e paz”, principalmente, são dados importantes. Reproduzo aqui um trecho de uma entrevista que estou a traduzir sobre um grupo de resistência de trabalhadores no McDonald’s para enriquecer a discussão:

    “Como começou?

    No passado eu respondia a essa pergunta me referindo a acontecimentos específicos que nos encorajaram a se organizar. Acontecimentos como a gerência voltando atrás nas promessas de pagar o bônus, ou a vez que um cliente morreu e nós mandaram continuar trabalhando (os outros clientes andavam em volta do corpo). Mas como esses acontecimentos dificilmente se repetirão e como, de qualquer forma, eles não necessariamente (ou mesmo logicamente) geram motivação para se organizar, eu tentarei responder de forma diferente. A demografia do nosso lugar de trabalho era provavelmente favorável para a organização; eram principalmente estudantes da escola ou que tinham acabada de sair, garotos que ainda não haviam sido completamente socializados em seus papéis produtivos. Também haviam estudantes universitários que lutavam para levantar da cama, e trabalhadores com baixa qualificação, muitos dos quais estavam acostumados com mudar de emprego constantemente. Ninguém trabalhava lá “por escolha” ou achava que era “um bom trabalho”.

    Teria sido bem mais difícil começar algo igual em outro McDonald’s. Por exemplo, no cume da nossa luta eu tive o privilégio de conversar com trabalhadores se organizando numa loja em Londo e eles eram principalmente imigrantes recentes, muitos deles ilegais. Obviamente que teria restrições severas no seu potencial organizativo.

    Outra coisa que nos ajudou a começar foi que antes de qualquer organização explícita, os trabalhadores no nosso restaurante tinham laços sociais fortes. Todo mundo ia ao bar no dia do pagamento e muitos e nós nos tornamos amigos ou namoramos. Então quando alguém disse, “nós devíamos realmente fazer algo sobre isso”, não pareceu tão louco quando poderia parecer, e a rebelião se espalhou pelo nosso pequeno mundo incestuoso como uma doença venérea.

    Outro fato importante foi que aqueles que formaram o núcleo do MWR eram os melhores e mais experientes trabalhadores do restaurante (no McDonald’s você pode ser um trabalhador experiente depois de mais ou menos uma semana). Trata-se de um negócio de alta pressão, que opera com custos laborais muito restritos. A pressão é repassada nos níveis inferiores da hierarquia, de modo que os nossos gerentes imediatos frequentemente dependiam de nós para manter seus chefes felizes. Isso ajudou a criar um certo espaço.

    Eu suponho que o ponto crucial é um pouco axiomático: nós começamos por causa da agitação de pessoas que eram respeitadas no seu lugar de trabalho. Essa é provavelmente uma precondição para todo movimento de trabalhadores que já aconteceu ou acontecerá. E nenhum teorização marxista no mundo vai mudar isso.”

    Fonte: http://libcom.org/library/interview-with-mcdonalds-workers-resistance#footnoteref1_4oh3j5c

  56. A chamada de atenção da Débora é importante, mas não levaria tudo ao pé da letra. Primeiro porque existem as diversas situações, como fica claro na discussão sobre drogas. Segundo porque existe a diferença entre se pautar irrestritamente a uma moral estabelecida (na quebrada ou fora dela) e se adequar, dialogando criticamente, com esta moralidade. Não se deve essencializar os valores da quebrada como se fossem dados, como se só restasse se adequar totalmente a eles, mesmo quando se voltam contra mulheres, homosexuais ou pessoas (mais) marginalizadas, por exemplo. O que se deve é ter cuidado ao se questionar esses valores, saber dialogar, saber quando se deve ou não confrontar. Mas acho que o principal do texto não é o que deu os maiores debates nos comentários, e sim o que está no comentário acima que fala dos trabalhadores do Mc Donalds:

    “Eu suponho que o ponto crucial é um pouco axiomático: nós começamos por causa da agitação de pessoas que eram respeitadas no seu lugar de trabalho. Essa é provavelmente uma precondição para todo movimento de trabalhadores que já aconteceu ou acontecerá. E nenhum teorização marxista no mundo vai mudar isso.”

    Quer dizer, pra ter “moral”, pra ter respeito importa o que se faz no dia a dia e na totalidade da prática social. Isso passa por valores morais questionaveis (como dito acima), mas passa principalmente por aquilo que é quase (veja bem, estou dizendo quase!) universal para ser digno de confiança: honrar compromissos, não usar as pessoas, não se isentar de responsabilidades, não fugir do trabalho, não fingir ser o que não é, não ser inconsequente… Todo mundo sabe reconhecer essas coisas, dentro e fora da quebrada. E pra se construir uma militancia social não basta intevir pontualmente, é preciso ser parte orgânica de uma rede que não distingue papel político de sociabilidade privada. Não sei se fui claro, mas enfim, a discussão é boa e dá o que pensar.

  57. É interessante confrontar o trecho transcrito pelos outros dois comentadores com outros trechos que talvez eles tenham preferido eludir, como o trecho no qual o entrevistado diz que, no fim, o grupo MWR “falhou espetacularmente” em atingir os objetivos básicos de: dar suporte aos outros trabalhadores da companhia, independentemente de etnicidade, sexualidade etc.; organizar-se não hierarquicamente; e manter a “crença na ação e na confrontação direta”. Outro trecho interessante de se ler é aquele no qual o entrevistado diz que sem proteção legal a posição do grupo era muito precária. Igualmente esclarecedores são os trechos no qual o entrevistado reclama da cobertura dada pela imprensa à luta do grupo, que começou a diminuir, e no qual ele aponta as armadilhas da organização anônima e sectária. Num dos trechos, o entrevistado chega à conclusão das razões do fracasso: o envelhecimento e o cansaço dos lutadores, a diminuição do contato do grupo com a força de trabalho, a resolução de deixar de trabalhar no McDonald’s. Mas poderíamos também apontar outros trechos que nos permitem perceber outras razões do fracasso, como os seguintes: “nunca pudemos organizar algo como uma conferência”; “toda a coisa do anonimato se tornou um pouco um jogo […] acho que começamos a nos sentir como o Zorro […]”. Noutro trecho, diz o seguinte: “qualquer luta aberta teria resultado em sermos todos imediatamente demitidos. Ficou aparente que para levar as coisas adiante teríamos que organizar na força de trabalho como um todo. Neste ponto eu suponho que deixamos de ser um grupo prático para ser um grupo ideológico. Quero com isso dizer que a escala do desafio a nos confrontar era tanta que o esforço colocado na organização era improvável de ser recompensado com qualquer ganho material”. Tudo isso reforça o que tenho defendido no debate. Por mais que os princípios práticos de organização sejam lindos, eles “falham espetacularmente” se não se consegue, através do movimento, construir uma hegemonia ideológica alternativa. Isso significa que o grupo em luta fica vulnerável à falta de proteção legal, à falta de cobertura da imprensa, à ameaça de demissão etc., além de ser vitimado pelo desânimo e pelo cansaço dos lutadores, pela perda de contato com a força de trabalho etc. O grupo organizado representa, do ponto de vista da hegemonia estabelecida, desde o início, uma contra hegemonia em potencial, a ser combatida de todos os lados, de modo que todo o esforço empreendido na organização torne-se incapaz de levar a luta adiante, pois não se consegue transformar o movimento num movimento de massa. Não se consegue suscitar pressões sociais a favor do movimento, dando novo fôlego ou renovando o fôlego de outros movimentos. O ponto de partido até foi dado: o grupo chegou a realizar publicações, a articular-se online e a tentar estabelecer contatos internacionais. O problema é que, com a não criação de um projeto abrangente de lutas, ou com a não articulação do movimento com um tal projeto, o grupo capacitou-se a entrar para a memória das lutas fracassadas, “espetacularmente”. O grande ganho do capitalismo, na passagem do século XX ao XXI, foi a desagregação de todo e qualquer projeto abrangente de transformação social (não só aquele sustentado pelos partidos autoritários). Outro grande ganho do capitalismo foi que parte da esquerda quase que saudou o capitalismo por ter tido sucesso nesta empreitada e não só disse adeus aos projetos abrangentes de transformação social, como disse: “já vão tarde!”.

  58. Talvez o Fagner Enrique também não tenha lido a entrevista inteira, pois em determinado ponto esta parece responder também no sentido contrário da solução apresentada em seus comentários aqui. Copiei e colei o trecho inglês, por falta de capacidade e tempo para traduzir (esperamos que o Grouxo Marxista termine a versão portuguesa, e torcemos para que o PP a publique, pois é bastante interessante hehe):

    “Given MWR was an explicitly revolutionary grouping, I’m interested to know where you stand on the tension between small groups with strict politics and large groups (or groups that would like to be large) such as are advocated by anarcho-syndicalists and revolutionary syndicalists?

    Well the explicitly revolutionary statements were issued by the Glasgow branch specifically, and they were issued at a stage when our numbers had declined and we had gone from being a practical grouping with a significant influence at one restaurant, to being a propaganda group more focused on communicating with the wider workforce. It’s important not to get the two things confused.

    Those were our ideas and we didn’t want to hide them. I think it would have been dishonest and patronising not to have declared publicly what we thought the future should look like. But we never asked anyone else to agree with these statements. We asked for a basic level of agreement on practical tactics of immediate concern to the form of struggle adopted and how workers related to their colleagues.

    I think it’s important that workers publish and argue their ideas on the strictest political analysis they can. But they shouldn’t want the rest of the workforce to become like them. Perhaps you remember the article ‘Give up activism,’ which was popular (though maybe not applied), during the ‘anti-capitalist movement’? One of the points it made was that activists think the world would be sorted if only everyone would become like them. Well, I think class struggle anarchists do something similar. I think the revolution will be made by workers collectively challenging economic relationships that impoverish our lives. That won’t come about by magic, it will need the conscious effort of radicalised sections of the class, but it will also involve workers who go to the Mosque, wear mascara, prefer Middlemarch to Marx, believe in new age mysticism, say Grace before meals or… collect antiques. So I don’t see any inconsistency between arguing a coherent revolutionary politics and organising with whomever you have every day interactions with, whether their sandwiches are kosher, vegan, or even toasted in a ciabatta.

    So, on organisation, do you think people like us who are libertarian revolutionaries or anarchists should try to organise as such – as anarchists – or just with our fellow workers where we are?

    I think that in these depressing times people who share a political analysis should get together and support each other. They should have group hugs and cry into their pints. And sometimes it’s worthwhile for them to cooperate on publishing projects or organise themselves in ways that can potentially assist the other sort of group, the groups that are grounded in everyday life. Because those are the only structures that can transform society. And most of the time organising as anarchists means going to some crap meeting before you can go to the pub. I think the world would be a better place if there were no such meetings, and comrades who wanted to hang out together found a more honest excuse. Bingo nights or cinema trips or something.”

    Essa trecho não só me parece muito bom para responder o Fagner, como serve para, num outro extremo, lançar um novo tipo de interpretação sobre o artigo “Abandone o Ativismo”, que quase sempre é lido (pelo menos aqui no Brasil) como um chamado para desistência ou para se assumir um “estilo de vida” libertário.

  59. Não só li a entrevista inteira, como pretendi criticar a posição do entrevistado. Que muitas de suas afirmações vão na contramão do que tenho defendido, isto é meio que óbvio. A meu ver, a revolução será feita, sim, por pessoas que costumavam pedir graças antes das refeições, que costumavam ir à mesquita, que costumavam acreditar no misticismo da Nova Era. Só não será feita por pessoas que não conseguem deixar de pedir graças antes das refeições e não conseguem deixar de perceber que a refeição de cada dia é produto de seu próprio trabalho, e não de um desígnio divino. Também não será feita por pessoas que concebem a ordem do mundo em que vivem segundo o misticismo da Nova Era. Nesse sentido, sou radicalmente contra a ideia de que o marxismo é algo meramente acessório para a revolução, algo desnecessário mesmo. Pode até ser para as lutas sociais, mas o será para lutas sociais que não conseguirão levar à vitória da revolução. Para que a revolução seja vitoriosa, é preciso que os jogadores conheçam as regras do jogo no qual foram lançados sem aviso prévio, é preciso que eles conheçam os jogadores, e é preciso que eles conheçam o estágio no qual o jogo que se encontra. O marxismo é a teoria que explica as regras do jogo… sim, ele é “a” teoria (não tenho escrúpulo algum em afirmá-lo), pois explica o mecanismo da sociedade capitalista, a lei do valor. O marxismo é a teoria que explica o estágio no qual o jogo se encontra, pois explica as trajetórias já percorridas por esta sociedade, governada por aquele mecanismo. O marxismo esclarece quem são os jogadores (boa parte dos leitores deste site estão acostumados a não considerar o capitalismo como um jogo de dois jogadores principais, burguesia e proletariado, mas como um jogo de três jogadores principais, isto é, burguesia, proletariado e tecnocracia/gestores). Não sei quanto ao resto dos debatedores e leitores, mas, para mim, trata-se de um jogo no qual as classes dominantes estão a ganhar, já há um tempo, e no qual as classes dominantes gozam de uma considerável vantagem, já que elas investem no treinamento de seus jogadores com base nos recursos produzidos pelo seu adversário, pois elas acumularam experiências, pois elas são capazes de fazer o jogador do time adversário jogar segundo suas regras, segundo sua estratégia, segundo seu modo de ver o próprio jogo e suas regras, as regras que elas mesmas elaboraram e reelaboram, sem tocar na regra-mãe (a lei do valor e da sua reprodução ampliada no capitalismo, a mais-valia). Isto se chama “hegemonia”, algo que vale a pena estudar, ao invés de se encarar com preconceitos intelectuais infantis. Todos sabemos que quando um jogador entra num jogo sem conhecer as regras do jogo, sem conhecer os jogadores e sem conhecer o estágio no qual o jogo se encontra ao começar ele a jogar, o seu desempenho será, no mínimo, bastante negativo: sofrerá para marcar pontos e não conseguirá impedir com eficácia que o adversário marque os seus. Eu, particularmente, não gosto de entrar num jogo no qual não tenho chances de ganhar, menos ainda num jogo que insisto em não examinar, como se deve, jogando às cegas. É algo meio que suicida, e masoquista. Ninguém gosta, pelo menos é o que eu pensava antes de entrar em debate, aqui, com outros comentadores. Aliás, todo o debate no qual me inseri começou com uma indagação que fiz à autora, mediante a qual pretendi colocar em dúvida se os religiosos não constituem jogadores do campo oposto ao campo proletário. Daí vieram outras coisas, mas foi aí que tudo começou. Mas, voltando ao marxismo: eu não creio que todo proletário é marxista, nem que todo proletário o deva ser, no sentido de um intelectual sem vínculos com a luta prática do cotidiano, seguro de si em sua posição. Creio, isto sim, que qualquer projeto que se pretenda revolucionário, isto é, que pretenda ser feliz em inverter a correlação de forças entre as classes sociais, transformando o proletariado em classe dominante, deve ser baseado no marxismo – não nos dogmas marxistas, mas no método marxista de se examinar o terreno de luta e de se projetar uma estratégia de luta. Querendo ou não, o proletariado, ao aderir a um tal projeto, sustentá-lo e levá-lo adiante, será, cada vez mais, “marxista”, tal como a burguesia foi aprendendo a ser, cada vez mais, “liberal”, para dar um exemplo. Todos os trabalhadores precisam ler O Capital? Seria bom (melhor do que ler a Bíblia, com suas passagens machistas, suas apologias à violência, à escravidão, à subserviência etc.), mas o que é realmente necessário – pelo menos num momento, como o atual, de recuo das lutas e dos projetos abrangentes de luta – é que eles sejam convencidos por pessoas que o leram, e que souberam extrair apontamentos úteis à luta proletária, de que a estratégia de luta A é melhor do que a estratégia de luta B. Estas pessoas são a vanguarda, e me lembro de tê-la definido como coadjuvante da luta, não como protagonista. Aliás, a vanguarda, a meu ver – poderíamos acrescentar –, deve, não só definir-se institucionalmente como coadjuvante, mas prever, também institucionalmente, a sua própria dissolução, tão logo o objetivo de direcionar a luta para esta ou aquela direção já tenha sido atingido, tornando-se ela dispensável. Aliás, os próprios partidos ou as próprias organizações deveriam saber se dissolver, na medida em que cumprem seus objetivos iniciais ou na medida em que são incapazes de cumpri-los, perdendo, portanto, sua utilidade. É, então, que chega o momento de revisão da estratégia, de reorganização do movimento e de retorno à luta, um retorno enriquecido pela trajetória já percorrida. A valorização do ideológico não é, como disse um dos meus interlocutores, a razão do esvaziamento dos movimentos de base. Ela é na verdade a preocupação de pessoas que gostariam de ver os movimentos de base “cheios”, mas que percebem que eles estão “vazios” porque as mentes do proletários estão “cheias” de atitudes mentais próprias das classes dominantes, as quais condicionam o esvaziamento dos movimentos de base, mas não o esvaziamento das igrejas. É a preocupação daqueles para quem o capitalismo é como a esfinge: ou o proletário o decifra ou será por ele devorado, mais uma vez, todo dia, até sempre.

  60. Não conheço muito do Ferréz, vida ou obra, mas quando o vi nesta entrevista falando sobre religião não pude deixar de lembrar deste post. Se por um lado fala que tem crescido sua espiritualidade, por outro ataca a religião como instituição humana de maneira muito clara.
    http://youtu.be/sAW6vWVU11E?t=4m10s

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