Janeiro de 2013.

Quantas vezes uma patrulha nos parou na rua pelo crime de “ter um rosto” suspeito ou uma crista e depois de alguns tapas e sermos extorquidos nos deixam ir? “Repressão e criminalização”, Cruz Negra Anarquista-México, janeiro de 2013.

– E os jovens que agora mesmo vêem em ti um herói e um exemplo de pessoa que tem sido injustamente castigada por um sistema repressor?
– Que herói, nada. Herói é cada um dos jovens que todo dia sai pra rua a organizar-se e a mudar esta sociedade injusta e este sistema econômico, político. E se organizam, se defendem… Que não temam, que o medo vai mudar de lado. Alfonso Fernández, detido na prisão por causa do 14N, no Estado Espanhol, entrevistado por Shangay Lily, em Kaos na Rede. Janeiro de 2013.

“É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. (…) Agora bem, o sentimento de identidade se funda no ódio em relação aos que não são idênticos. Deve-se cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é amigo dos povos. Faz falta não ter quem odiar para sentir-se justificados na própria miséria. Sempre. O ódio é a verdadeira paixão primordial”. Umberto Eco. O cemitério de Praga.

Onde e quando começa a violência?
Vejamos.
Diante de um espelho, em qualquer calendário e em qualquer geografia…
Imagine que você é diferente das pessoas comuns.
Imagine que você é alguém bem diferente.
Imagine que você tem uma determinada cor da pele ou do cabelo.
Imagine que o desprezam e o humilham, que o perseguem, que o prendem, que o matam por isso, por ser diferente.
Imagine que desde que nasce, todo sistema lhe diz e repete que você é algo raro, anormal, doente, que deve se arrepender do que é e que, depois de culpá-lo por sua má sorte e/ou por justiça divina, deve fazer o que for possível para mudar esse “defeito de fabrica”.

E, claro, veja, temos exatamente um produto que, simplesmente, faz m-a-r-a-v-i-l-h-a-s com defeitos congênitos. Este pensamento o afasta da rebeldia e deste tão incômodo estar se queixando de tudo. Este creme muda a cor da pele. Esta tinta para cabelo lhe dá a tonalidade da moda. Este curso de “como ganhar amig@s e ser popular na rede” lhe dá o necessário para ser uma pessoa moderna. Este tratamento lhe devolverá a juventude. Este dvd lhe mostrará como se comportar à mesa, na rua, no trabalho, na cama, nos assaltos ilegais (ladrões), nos assaltos legais (bancos, governantes, eleições, empresas legalmente constituídas), nas reuniões sociais… o que? Oh! Não o convidam às reuniões sociais?… Ok, também lhe indica como fazer para que o convidem. Enfim, aqui você saberá o segredo de como triunfar na vida. Deixe bem para trás a Lady Gaga e Justin Bieber em número de seguidores no twitter! Inclui uma máscara a sua escolha. Temos todas! Também a de CSG… ok, ok, ok este foi um mau exemplo, mas temos uma para cada necessidade. Não vão mais olhá-lo com asco! Ninguém vai chamá-lo de índio de calças brancas, indi@, prole, negr@, região 4, zombie, filozapatista!

Imagine que, apesar de todos os seus esforços e boas ações, não consegue ocultar sua cor da pele ou de cabelo.

Agora imagine que se lança numa campanha para eliminar tod@s aquel@s que são como você.

Não é que vai ter um evento para dar o sinal de partida, ou uma lei que o estabeleça, mas você se dá conta que todo o sistema começa a andar e a se dirigir contra você e contra aqueles que são como você.

Toda a sociedade transformada em máquina cujo propósito principal é aniquilá-lo.

Primeiro há olhares de reprovação, asco, desprezo. Seguem insultos, agressões. Depois há detidos, deportados, encarcerados. Em seguida, mortos aqui e aí, legal e ilegalmente. Finalmente uma campanha propriamente dita, a máquina com toda a sua capacidade, para fazer desaparecer você e tod@s aquel@s que se lhe assemelham. A identidade daqueles que formam a sociedade se afirma com o ódio em relação a você. Sua culpa? Ser diferente.

– * –

Você ainda não vê isso?

Ok, imagine então que você é… (ponha você o masculino, o feminino ou o outro, conforme o caso)

Um indígena num país dominado por estrangeiros. Um bando de helicópteros militares se dirige a  suas terras. A imprensa dirá que a ocupação do parque eólico impedia a diminuição da contaminação ou que a selva estava sendo destruída. “O desalojamento era necessário para reduzir o aquecimento global do planeta”, secretário de governo.

Um negro numa nação dominada por brancos. Um juiz WASP vai ditar a sentença. O jurado o declarou culpado. Entre as provas apresentadas pela promotoria há uma análise da pigmentação da sua pele.

Um judeu na Alemanha nazista. O oficial da Gestapo fixa o olhar nele. No outro dia o informe dirá que a raça humana foi depurada.

Um palestino na Palestina atual. O míssil do exército israelense aponta para a escola, o hospital, o bairro, a casa. Amanhã a mídia dirá que foram abatidos alvos militares.

Um imigrante do outro lado de qualquer fronteira. Aproxima-se uma patrulha da polícia que controla os migrantes. No dia seguinte não aparecerá nada nos noticiários.

Um padre, freira, secular que optou pelos pobres, em meio à opulência do Vaticano. O discurso do cardeal será dirigido contra aqueles que se intrometem nas coisas terrenas.

Um vendedor ambulante num centro comercial exclusivo numa área residencial exclusiva. O caminhão da tropa de choque estaciona. “Defendemos o livre comércio”, declara o delegado do governo.

Uma mulher sozinha, de dia ou de noite, num transporte público cheio de homens. Uma pequena variação na porcentagem da “violência de gênero”. O agente policial dirá: “é que são elas que provocam”.

Um gay sozinho, de dia ou de noite, num transporte público cheio de machos. Uma variação mínima na porcentagem de “violência homofóbica”.

Uma trabalhadora do sexo numa rua estranha e em esquina alheia… uma patrulha se aproxima. “O governo combate com rigor o tráfico de mulheres brancas”, dirá a imprensa.

Uma punk, um rastafari, uma skatera, um cholo, uma metaleira, na rua, de noite… outra patrulha se aproxima. “Estamos inibindo as condutas anti-sociais e o vandalismo”, diz o chefe de governo.

Um grafiteiro “riscando” o World Trade Center… outra patrulha se aproxima. “Faremos o necessário para manter uma cidade bela e atraente para o turismo”, diz qualquer funcionário.

Um comunista numa reunião do partido fascista de direita. “Somos contra os totalitarismos que tanto dano causaram no mundo”, o presidente do partido.

Um anarquista numa reunião do partido comunista. “Somos contra os desvios pequeno-burgueses que tanto dano fizeram à revolução mundial”, diz o secretário geral do partido.

Um programa de notícias “31 minutos” na barra de informação da CNN. Túlio Triviño e Juan Carlos Bodoque se olham desconcertados, não dizem nada.

Um grupo alternativo de música tratando de vender seu disco num concerto de Lady Gaga, Madona, Justin Bieber, ele ou ela que for. Os tiras se aproximam, os fans gritam descontroladamente.

Uma artista dançando fora do grande centro cultural onde se apresenta a função (se-de-gala-só-com-convite-sentimos-muito-senhorita-você-está-estorvando), do Ballet Bolshoi. A segurança procede a restabelecer a tranqüilidade.

Um ancião numa reunião presidida pelo ministro das finanças japonês Taró Asó (estudou em Stanford e há pouco pediu as pessoas maiores de idade “que se apressem em morrer” porque sai muito caro que continuem vivos). Corta-se ainda mais o gasto social.

Um Anonymus criticando o “copyright” num grupo de acionistas da Microsoft-Apple. “Um perigoso Hacker atrás das grades”, sublinham os meios de informação.

Um jovem Mapuche que, no Chile, reivindica o território de seus predecessores enquanto vê se aproximar os blindados e o verde ofensivo dos carabineiros. A bala que o fere mortalmente nas costas continuará impune.

Um jovem e/ou estudante ou desempregado numa blitz do exército-polícia-guarda civil-carabineiros. A última coisa que ouviu? “Atirem!”

Um comunheiro nahua no escritório de uma empresa mineradora transnacional. Uniformizados o seqüestram. “Estamos investigando”, dizem os respectivos governos.

Um dissidente diante dos muros cinza metal, enquanto do outro lado a classe política mexicana engole o sapo de mais uma imposição. Recebe o golpe de uma bala de borracha que lhe faz perder um olho ou lhe quebra o crânio. “Chama-se à unidade para o bem do país. Hora de deixar os ranços para trás”, dizem as manchetes dos noticiários.

Um camponês diante de um exército de advogados e policiais ouvindo que a terra que trabalha, onde nasceram e cresceram seus pais, seus avós, seus tataravôs, e assim por diante até que o tempo se confunde, é agora propriedade de uma empresa imobiliária e é você que está expropriando os pobres empresários de algo que lhes pertence por direito. O cárcere.

Um opositor à fraude eleitoral que vê como são exonerados os 40 ladrões e seus lambe-botas. A gozação: “deve-se virar a página e olhar em frente”.

Um homem ou uma mulher que se aproxima para ver do que é o barulho e é logo “encapsulada” pelas forças da ordem, enquanto a ou o empurram, golpeiam e chutam para levá-la à patrulha, você chega a ver que as câmaras do conhecido canal de televisão estão apontadas para outro lado.

Um indígena zapatista no presídio do mau governo (PRI-PAN-PRD-PT-MC) há vários anos. Lê-se no jornal: “por que o EZLN aparece agora que o PRI voltou ao Poder? Muito suspeito”.

– * –

Consegue nos seguir?
Agora…
Sente a certeza de estar fora de lugar?
Sente o medo de ser ignorad@, insultad@, golpead@, burlad@, humilhad@, violentad@, encarcerad@, assassinad@ só por ser quem você é?
Sente a impotência de não poder fazer nada para evitá-lo, para se defender, para ser ouvido?
Você amaldiçoa o momento em que se meteu neste lugar, o dia em que nasceu, a hora em que começou a ler esse texto?

– * –

Vários dos exemplos acima mencionados têm nome, calendário, geografia:

Juan Francisco Kuykendall Leal. O companheiro Kuy, da Sexta, professor, dramaturgo, diretor de teatro. Crânio destroçado em 1º de dezembro de 2012 por um disparo das “forças da ordem”. Planejava fazer uma peça de teatro sobre Enrique Peña Nieto.

José Uriel Sandoval Díaz. Jovem estudante da Universidade Autônoma da Cidade do México e integrante do Conselho Estudantil de Luta. Perdeu um olho na repressão de 1º de dezembro de 2012, depois do ataque das “forças da ordem”. Planejava resistir à imposição de Enrique Peña Nieto.

Celedonio Prudêncio Monroy. Indígena Nahua. Seqüestrado em 23 de outubro de 2012 pelas “forças da ordem”. Planejava resistir à expropriação das terras nahuas por parte das mineradoras e das madeireiras.

Adrián Javier González Villareal. Jovem aluno da Faculdade de Engenharia Mecânica e Elétrica da Universidade Autônoma de Nuevo Leon, México, assassinado em janeiro de 2013 pelas “forças da ordem”. Planejava graduar-se e ser um profissional bem-sucedido.

Cruz Morales Calderón e Juvêncio Lascurais. Camponeses tomados prisioneiros em Veracruz, 2010-2011, pelas “forças da ordem”. Planejavam resistir à expropriação de suas terras por parte das empresas imobiliárias.

Matias Valentin Catrileo Quezada. Jovem indígena Mapuche, assassinado em 3 de janeiro de 2008, no Chile, América Latina, pelas “forças da ordem”. Planejava resistir à expropriação da terra mapuche por parte do governo, latifundiários e empresas transnacionais.

Francisco Sántiz López, indígena zapatista, preso injustamente pelas “forças da ordem”. Planejava resistir à contra-insurreição governamental de Juan Sabines Guerrero e Felipe Calderón Hinojosa (1)

– * –

Agora… não se desespere, estamos quase terminando…
Agora você imagine que não tem medo ou que o tem sim, mas o controla.
Imagine que você vá e, diante do espelho, não só esconde ou maquia sua diferença, mas a reforça.
Imagine que você faz do seu ser diferente um escudo e uma arma, se defende, encontra outr@s como você, se organiza, resiste, luta, e, sem se dar conta, passa do “sou diferente” ao “somos diferentes”.
Imagine que não se esconde por trás da “maturidade” e da “sensatez”, por trás dos “não é hora”, “não há condições”, “devemos esperar”, “ é inútil”, “não há remédio”.
Imagine que não se vende, que não claudica, que não se rende.
Pode imaginar isso?
Bom, então, ainda que nem nós nem você o saibamos ainda, somos parte de um “nós” maior e ainda a ser construído.

(continuará…)

De qualquer lugar, em qualquer dos mundos.

SupMarcos.
Planeta Terra. Janeiro de 2013.

*
Escute e veja o vídeo que acompanha este texto (este vídeo foi censurado pelo youtube devido ao seu conteúdo):

M.I.A, Born Free from ROMAIN-GAVRAS on Vimeo.

(1) Francisco Sántiz López será libertado, por falta de provas, em 25 de janeiro de 2013, dia da publicação deste comunicado pelo La Jornada, após 13 meses e meio de prisão.

Publicado originalmente no jornal mexicano La Jornada, 25/01/2013.

Tradução de Emílio Gennari.

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