Por Marcelo Lopes de Souza

 

Leia aqui a segunda parte deste artigo

Um exercício tipológico e sua(s) justificativa(s)

Uma questão básica por trás de qualquer exercício de construção tipológica é aquela referente à sua utilidade ou, mais especificamente, aquela concernente à famosa pergunta de Cícero: cui bono? Ou, em bom português: quem ganha com um tal exercício, e o quê?

A mim me parece que os libertários se conhecem a si próprios e o seu passado menos do que deveriam, e essa circunstância não contribui nem um pouco para fortalecê-los. A despeito de constituírem um universo heterogéneo, defenderei, aqui (como tenho defendido há muito tempo), que o pensamento e a práxis libertários — entendidos, de modo amplo, como não estando restritos ao anarquismo — formam, mesmo assim, um conjunto dotado de uma forte coerência à luz da história, ainda que nem sempre isso pareça evidente. O maior autoconhecimento dos libertários, ao se verem confrontados com uma proposta de interpretação que investe em uma unidade na diversidade (e sem sacrificar, realmente, nem uma coisa nem outra), é a primeira e maior justificativa para o exercício de construção tipológica que ofereço em seguida. A isso podemos acrescentar a sempre necessária reflexão sobre a conjuntura política, bem como o desejo, também sempre necessário, de apresentar o pensamento e a práxis libertários de uma maneira que seja inteligível para os “não iniciados”.

O moderno campo libertário, ou o campo libertário simplesmente (ou seja, deixando de lado esforços de duvidosa validade que insistem em apresentar certos pensadores de épocas pré-capitalistas como “libertários” ou mesmo “anarquistas” [1]), surge no século XIX com o anarquismo, muito especialmente com Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). [2] Aliás, pelo que consta, o adjetivo “libertário” (do francês libertaire) foi cunhado por um dos primeiros intelectuais libertários, Joseph Déjaque (1821-1864), em uma carta a Proudhon – o primeiro a reivindicar para si o qualificativo de “anarquista”. Todavia, acredito ser razoável dizer que, hoje em dia, e na verdade desde a segunda metade do século XX, o anarquismo dos clássicos (Proudhon, Mikhail Bakunin [1814-1876], Élisée Reclus [1830-1905], Piotr Kropotkin [1842-1921], Errico Malatesta [1853-1932] e outros), e que proponho chamarmos, doravante, de anarquismo clássico, não esgota, de modo algum, o pensamento e a práxis libertários. O neoanarquismo e o autonomismo, que serão apresentados e comentados mais adiante, devem ser vistos como manifestações mais ou menos distintas que, não obstante, preservam os traços essenciais do ethos libertário e do significado histórico do pensamento e da práxis libertários: o comprometimento simultâneo com a liberdade e a igualdade, com os direitos individuais e com os direitos coletivos, com o polo da autonomia individual e com o polo da liberdade coletiva; e, consequentemente, a “guerra em duas frentes” contra o binômio capitalismo + “democracia” representativa (corretamente identificada pelo filósofo autonomista Cornelius Castoriadis como uma “oligarquia liberal” [3]) e o “socialismo burocrático” (e suas raízes autoritárias no marxismo, chamado por Bakunin de “comunismo autoritário”). Tendo emergido na segunda metade do século XX, o neoanarquismo e o autonomismo surgiram em consonância com as especificidades de sua época; agir como se nada de realmente novo tivesse sido pensado depois de, digamos, Malatesta, equivaleria a negar a historicidade e congelar o pensamento. Assim, se é plausível que herdeiros (assumidos ou não) dos anarquistas do século XIX e da primeira metade do século XX tenham se afastado da herança clássica sem, apesar disso, deixar de ser libertários, é sensato admitirmos que o universo libertário vai além dessa herança. Acredito ser correto estabelecermos que o campo libertário, desde a sua constituição até os nossos dias, se tem feito representar por três grandes vertentes principais:

1) O anarquismo clássico, que foi a matriz fundadora. O anarquismo clássico, em si mesmo, já era bastante heterogêneo, em que pese nós podermos vê-lo, com o olhar retrospectivo e o benefício da distância no tempo, como estando costurado por toda uma série de convicções comuns, para além das diferenças entre mutualistas, coletivistas, anarco-comunistas e anarcossindicalistas: [4] entre outras, a crença na possibilidade de construção de uma sociedade sem “poder”, “leis” ou “autoridade”, crença essa que tem por base uma rejeição generalizante e um tratamento conceitualmente demasiado simplificado daquelas três ideias (excessivamente associadas ou reduzidas ao Estado e a instituições como a Igreja católica); e, também, uma certa obsessão pelo consenso e a desconfiança ou hostilidade em relação a decisões por votação e maioria (quase sempre vinculadas ou reduzidas à “democracia” representativa).

2) O neoanarquismo, que corresponde a uma revisão do legado clássico que, apesar de afastar-se desse legado em alguns pontos importantes, permanece, entretanto, reivindicando para si, explicitamente, a condição de ser um prolongamento dele. É o caso, por exemplo, de Murray Bookchin (1921-2006). Bookchin, mesmo tendo manifestado grande respeito pelo anarquismo clássico, em especial por Kropotkin, usou de seu direito de pensar com a própria cabeça, considerando as particularidades e exigências de seu tempo − o que o levou a discordar dos clássicos em alguns pontos importantes, como a propósito do uso muito restritivo (limitante e praticamente sempre negativo) do termo “poder” e no tocante às vantagens e desvantagens comparativas de “decisão por consenso” versus “decisão da maioria”.

3) O autonomismo, que, mesmo apresentando uma afinidade essencial com o anarquismo (a supramencionada “guerra em duas frentes” e toda uma série de convergências específicas), vai além do neoanarquismo em matéria de afastamento relativamente à herança clássica. No terreno filosófico, o mais importante formulador do “projeto de autonomia” foi, de longe, Cornelius Castoriadis (1922-1997). Castoriadis chegou mesmo, nas poucas vezes em que se referiu explicitamente ao anarquismo, a emitir opiniões um tanto injustas e demasiadamente simplificadoras, ainda que não de todo injustificadas (como aquela referente à “postura antiteórica” dos anarquistas, expressa em termos muito generalizantes por ele [5]). Convergente com a crítica bookchiniana da limitação anarquista clássica acerca da ideia de “poder”, a análise de Castoriadis, no entanto, é mais extensa e profunda que a de Bookchin, no tocante à construção de um conceito de poder suficientemente amplo a ponto de abarcar não somente o poder heterônomo mas, igualmente, o poder autônomo.[6] Para Castoriadis, a visão de uma sociedade sem nenhum poder e sem leis/normas é uma “ficção incoerente”; o que faz sentido, para ele, é empenhar-se na luta por uma sociedade sem dominação, sem assimetrias estruturais e sem hierarquias instituídas e sancionadas por um aparelho de Estado (cristalização de uma separação estrutural entre dirigentes e dirigidos). Seja lá como for, por mais que Castoriadis tenha avançado para além do anarquismo clássico em vários pontos − inclusive no que diz respeito a oferecer uma resposta suficientemente ampla, complexa e persuasiva ao marxismo também no plano teórico e filosófico −, é lamentável que, em parte por preconceito, em parte (e em decorrência disso) por desconhecimento, lhe tenham escapado inteiramente muitas das convergências (e mesmo antecipações embrionárias) dos anarquistas clássicos relativamente ao seu próprio pensamento.Uma tal tipologia, baseada em diversas variáveis específicas, em geral indicativas do grau de afastamento em face da herança clássica (por exemplo, a maneira como se conceitua “poder” e “lei”, a visão que se tem sobre o processo decisório ideal, a importância da ideia de “autonomia”, e assim sucessivamente), é, no entanto, apenas uma primeira aproximação. Além do mais, considera-se, aí, antes a evolução do pensamento libertário que o seu quadro atual, uma vez que, atualmente, o anarquismo clássico, via de regra, acaba sendo geralmente recuperado com alguma mediação imposta pelas lentes de nossa época. É conveniente, por conseguinte, complementar essa primeira aproximação.

Não posso, aqui, pretender dar conta de peculiaridades nacionais e muito menos locais, por falta de espaço ou, simplesmente, por desconhecimento em muitos casos, ao menos no que se refere aos detalhes. Talvez mais que qualquer outro campo do pensamento político (e da práxis), o libertário é extremamente variado (e notem que nem sequer estou a tratar daquilo que uma certa tradição estadunidense chama de right-libertarian, e que não passa, a rigor, de um ultraliberalismo, comumente bastante conservador e hiperindividualista [7]). A presente reflexão busca, em um nível bastante geral ou abstrato (mas nem por isso inútil, pelo contrário), ater-se aos traços mais característicos e predominantes que ressaltam da história de um pensamento e de uma práxis bisseculares. A despeito disso, e apesar de eu não poder incorporar particularidades e pormenores nacionais ou locais, é conveniente expandir, pelo menos um pouco, o quadro acima apresentado sob a forma de um trio, de modo a poder ter um panorama mais representativo da situação que temos especificamente hoje em dia, com isso logrando-se contemplar algumas vertentes particulares, determinadas divergências de detalhe e fenômenos que, por excelência, constituem ou correspondem a “zonas de transição”. Destarte, em uma segunda aproximação, o trio se transforma em um quarteto de categorias principais – que se desdobram, por sua vez, em subgrupos – e são complementadas pelos elementos que caracterizam, de modo bem menos claro, alguns outros fenômenos que, em sentido amplo, também parecem fazer parte da “nebulosa libertária” contemporânea:

1) Aqueles que retomam ou tentam retomar de maneira direta o anarquismo clássico: ainda que, aqui e ali, introduzam ou se vejam forçados a introduzir pequenas adaptações ou atualizações, muitos ativistas ainda buscam inspiração, basicamente, no anarquismo clássico. É o caso do chamado “anarquismo especifista”, por exemplo. Defendido pela Federação Anarquista Uruguaia (FAU) e recentemente um tanto influente também no Brasil, ele procura, bebendo sobretudo em fontes como os escritos de Bakunin e Malatesta, desenvolver um tipo de organização especificamente anarquista (daí o seu nome).

2) Neoanarquistas: os neoanarquistas compreendem autores e práticas bastante diferentes; se, parágrafos atrás, destaquei Murray Bookchin, seria, por outro lado, errado deixar de mencionar outros representantes, como Hakim Bey e Noam Chomsky. Cada um deles afastou-se da herança clássica de um modo particular, nem sempre muito consequente: Hakim Bey, a despeito de algumas ideias estimulantes e condizentes com nossa época (em sua flexibilidade e, também, em sua pirotecnia verbal, sem contar uma relativa incoerência), consegue mostrar-se um admirador de Fourier, Max Stirner e do “jovem Marx” (e de umas outras tantas coisas), em um ecletismo de fôlego curto; [8] Chomsky, brilhante e famoso linguista, também insiste em uma certa idealização do “jovem Marx” (decerto que parcialmente justificada), ao mesmo tempo em que não aprofunda muito a reflexão teórica de um ponto de vista especificamente anarquista (na verdade, as virtudes de seus escritos políticos são, acima de tudo, a clareza e o didatismo, mas sem grandes originalidade ou profundidade). [9] De todos os neoanarquistas mais conhecidos, Bookchin foi e ainda é o mais coerente, e também o que ofereceu contribuições particularmente produtivas em maior número, ainda que, às vezes, bastante controvertidas; entre elas, sua “ecologia social” (social ecology) e a sua polêmica estratégia do “municipalismo libertário” (libertarian municipalism).

3) Autonomistas: como tal podem ser entendidos tanto aqueles que, de um ponto de vista filosófico, refletiram sobre a ideia de autonomia em bases amplas e claramente libertárias (no sentido amplo que adoto para este adjetivo), quanto militantes (e pensadores-militantes) que, sem necessariamente cultivarem preocupações de ordem teórica, abraçam a “autonomia” como ideia-chave. No primeiro caso, temos o já citado Castoriadis; no segundo, ativistas de diversos movimentos sociais recentes ou contemporâneos (como os Autonomen alemães, que tiveram o seu apogeu na década de 1980; os autónomos espanhóis, que brilharam, sobretudo, na década seguinte; os [neo]zapatistas mexicanos, uma parcela dos piqueteros argentinos e outros tantos autonomistas latino-americanos). Infelizmente, o casamento entre teoria e prática esteve longe, ao menos até agora, de se consumar de modo satisfatório: enquanto Castoriadis, por razões cuja discussão extrapolaria os limites deste ensaio, praticamente abandonou o ativismo direto em favor de uma longa “pausa para reflexão” que se estendeu dos anos 1970 até sua morte (vale registrar que, entre os anos 40 e 60, ele foi, inquestionavelmente, um [pensador-]militante), na América Latina e na Europa das últimas décadas movimentos sociais que misturam referências e fontes anarquistas e marxistas, e às vezes dialogam com a própria obra de Castoriadis, têm reivindicado a ideia de “autonomia” em um sentido amiúde muito próximo do deste último, ainda que não raro permeado por algumas insuficiências e contradições. Ao mesmo tempo, muitos dos seguidores acadêmicos de Castoriadis se contentam com exegeses de seus textos e comentários às suas obras, “esquecendo-se” de dar a devida atenção aos movimentos que têm, certamente que com limitações e mil dificuldades, buscado defender, na prática, a autonomia.

4) Anarcopunks: os anarcopunks podem não ter uma grande relevância teórica (na verdade, o seu favorecimento de atitudes práticas e contundentes, frequentemente em detrimento do estudo sistemático das ideias e sua evolução, é proverbialmente conhecido), além de já não terem mais a mesma visibilidade que tiveram em outros tempos; ainda assim, por serem uma expressão libertária característica de nossa época, notadamente entre os jovens, merecem ser lembrados como uma vertente importante da práxis libertária. Versões diluídas ou repaginadas do movimento anarcopunk podem ser encontradas, hoje em dia, entre jovens que adotam (ainda que, às vezes, apenas vagamente) um discurso libertário, tendo assimilado, dos anarcopunks, alguns elementos estéticos e comportamentais. Contra esse ambiente, Murray Bookchin dirigiu as baterias de sua crítica, ao reprovar (em boa medida com razão, mas não sem uma certa rabugice) o que chamou de um “anarquismo de estilo de vida” (lifestyle anarchism), por ele contraposto ao “anarquismo social” (social anarchism). [10]

As quatro categorias acima delineadas possuem características bem distintas no que tange à nitidez, ao conteúdo programático ou, mesmo, à coerência interna. Enquanto eventuais remanescentes (no sentido, evidentemente, de simpatizantes ou aderentes extemporâneos) do anarquismo clássico são uma categoria que se refere a não mais que um resíduo, aqueles que retomam ou tentam retomar diretamente a herança dos clássicos, mas com algum tipo de preocupação de renová-la, não constituem, necessariamente ou sempre, um completo anacronismo (apesar de, em alguns casos, o grau de disposição para verdadeiramente repensar a herança clássica ou para dialogar a sério com os neoanarquistas e autonomistas ser pequeno). Parecem constituir, devido ao seu apego comum às referências clássicas, um grupo razoavelmente coerente. Os neoanarquistas e os autonomistas, em contraste, apresentam sérias diferenças internas, de tal maneira que, do ângulo da prática política, em vez de aproximação o que se tem é, na realidade, polêmica e afastamento (basta pensarmos nas duras críticas de Bookchin a Hakim Bey, bem como em outras polêmicas). Os anarcopunks, de sua parte, não formam propriamente um grupo distinto no que concerne ao pensamento libertário, dado que, para começo de conversa, sua contribuição, no terreno teórico ou da reflexão, como já disse, não foi expressiva; ao mesmo tempo, desenvolveram um estilo próprio – um estilo de vida e de ação sociopolítico-cultural -, e seria talvez injusto desprezar ou ignorar essa manifestação por conta, por exemplo, de uma crítica como aquela de Bookchin contra o lifestyle anarchism (crítica essa que, apesar de em grande medida válida e justificada, mostrou-se incapaz de compreender direito as angústias e potencialidades das manifestações do ethos libertário entre os mais jovens, no mundo das últimas décadas do século XX e deste início de século XXI).

Indo mais além dessas quatro categorias, encontraremos, em meio a vários movimentos sociais das últimas décadas, elementos libertários discursivos e práticos dispersos ou combinados com outros elementos, especialmente de origem marxista, conforme eu já tinha indicado parágrafos atrás. São os fenômenos de hibridismo que, de alguma forma, também precisam ser considerados como integrando ou impregnando a “nebulosa libertária”. Os movimentos sociais emancipatórios (ou, pode-se dizer também, as pessoas do povo que, por falta de oportunidade ou apetite, não cultivam preocupações de cunho teórico e tampouco têm interesse em perpetuar certas rivalidades históricas) têm sido, diversamente dos pequenos grupos de afinidade que gravitam em torno de organizações cristalizadas (em algumas situações, até mesmo petrificadas), um fascinante laboratório de experimentação para (re)aproximações entre elementos discursivos e práticos que costumamos, aqueles versados e interessados em teoria e história, a separar por meio de fronteiras nítidas – o que, especialmente nos dias de hoje, é, não raro, um exercício de ficção. Para o bem e para o mal, é preciso aceitar que, no que concerne ao universo dos movimentos sociais, as cartas são e vêm sendo reembaralhadas de um modo que, independentemente de ser deplorado ou saudado, não pode ser ignorado. Se, às vezes, seria desejável que houvesse mais aprofundamento e mais clareza quanto a origens, diferenças, pressupostos e implicações, por outro pode ser bastante saudável e promissor que ideias cuja génese foi distinta sejam postas em contato e, em meio a uma práxis, tenham a chance de se fecundar mutuamente.

No que diz respeito às aproximações (nem sempre conscientes) entre as “macrotradições” libertária e marxista (isto é, levando em conta a enorme heterogeneidade de ambos os campos), é preciso admitir, de toda forma, que sempre houve trocas e convergências. Não chego ao ponto de sugerir, como fez o neoanarquista Daniel Guérin, em seu valente (e não muito bem recebido) esforço para aproximar libertários (mais especificamente, anarquistas) e marxistas, que as polêmicas entre os dois grandes campos do pensamento revolucionário se baseariam, no fundo, em mal-entendidos (Guérin não reduz tudo a isso, é verdade, mas essa é a sua chave de interpretação privilegiada [11]); afinal, acredito ser imperativo reconhecer, até mesmo para benefício mútuo e honestidade no diálogo, as divergências reais que sempre existiram – e que subsistem ainda hoje, e que só deixarão de existir se um dos campos se dissolver. Mesmo assim, porque não reconhecer, como sugeriu Georges Gurvitch, a influência de Proudhon sobre Marx? [12] Ou a assimilação do materialismo histórico marxiano, a começar pelos ensinamentos de Economia Política, por Bakunin? [13] Os exemplos poderiam ser facilmente multiplicados: em seus últimos anos, Karl Korsch, um dos “conselhistas” (ou “comunistas de conselhos”) mais famosos, cogitava sobre uma espécie de fusão entre o marxismo e o anarquismo; e Murray Bookchin, que, assim como Castoriadis, teve origem no marxismo, rompeu com suas origens sem perder o respeito intelectual por Marx, como se pode ver pelo apreço revelado em um ensaio sobre o Manifesto Comunista. [14] Só que, com os movimentos sociais, não estamos mais testemunhando apenas esforços de aproximação ou diálogo, nem mesmo apenas “respeito intelectual e político” por uma tradição rival: o que há são, efetivamente, mesclas, nem sempre conscientes, resultando em hibridismos cujo valor, acima de tudo, deve ser determinado por sua produtividade histórica em meio a uma práxis. Tais hibridismos, tão bem representados pelos (neo)zapatistas mexicanos e por uma parcela dos piqueteros argentinos (e, também, por muitos Autonomen alemães, sobretudo nos anos 1980 e ainda nos anos 1990), são, seja lá como for, distintos dos exemplares e situações de oportunismo e “vampirização” do pensamento libertário que mencionarei no segundo artigo desta série, e que merecem ser criticados pela contrafação intelectual e política que, em maior ou menor grau, e com maior ou menor eficácia (confundindo e desarmando, até mesmo, não poucos libertários!), representam.

Controvérsias internas e divisionismo

Os libertários têm hoje, diante de si, um manancial de possibilidades, considerando que se concretiza perante seus olhos uma constelação favorável como não se concretizava desde os anos 1930, em meio à Guerra Civil Espanhola (mesmo levando-se em conta a criativa e confusa atmosfera de fins da década de 1960 e início da década de 1970): ao mesmo tempo em que o projeto neoliberal já vem mostrando, há muito, os seus limites práticos e a sua verdadeira e horrenda face antipopular, em meio a uma crise do capitalismo que atualiza as velhas contradições deste, o marxismo entrou, também ele, em uma crise não apenas prático-política (apressada, embora não propriamente iniciada com a implosão do “socialismo burocrático”), mas também de vitalidade teórica e filosófica. Não obstante isso, os libertários não parecem muito mais unidos, hoje, do que estavam no passado; de certo modo, estão até menos, a julgar pela proliferação de correntes e subcorrentes, pouco acompanhada de diálogos sérios e de investimentos de peso na construção de visões de conjunto, de articulações e de convergências intelectuais e estratégicas/táticas. Estariam os libertários aquém do momento histórico? Ou seria ainda prematuro oferecer um juízo assim tão severo?

Seja como for, é inegável que muito resta por ser feito − e os passos parecem ser, ainda, muito tímidos. Um interesse renovado pelas obras e biografias dos autores e lutadores do período clássico (de um Proudhon a um Kropotkin ou um Reclus, de um Bakunin a um Malatesta ou a uma Emma Goldman) pode ser constatado, no Brasil e em muitos outros países, e isso é um alento, já que o conhecimento dos clássicos é uma duradoura fonte de inspiração; por outro lado, me parece que, o mais das vezes, leem-se, sobretudo, pequenos fragmentos ou excertos, o que não propicia uma visão de conjunto sólida sobre as ideias e a sua história. Além do mais, é um pouco preocupante que a atitude perante os clássicos seja, muitas vezes, menos a de um necessário respeito que a de uma perigosa idealização, o que costuma ser a antessala do dogmatismo e do obscurantismo. Esquece-se que os clássicos, se merecem continuar a ser lidos e debatidos depois de muitas gerações (por isso mesmo são clássicos), não deixam, por essa razão, de ser homens e mulheres de seu tempo − como somos, de resto, todos nós, se me for permitido o truísmo −, e portanto com as limitações impostas pelo horizonte e pelas condições de sua época. Abster-se de apontar as diferenças entre eles e nós é tão anistórico quanto criticá-los sem levar em conta o contexto no qual escreveram, viveram e lutaram.

Há controvérsias internas que, caso não sejam enfrentadas e abraçadas como tarefa coletiva, mais podem envenenar que ajudar no autoaprimoramento. Para citar alguns exemplos: quais as relações possíveis (e necessárias?) entre “ação direta” e “luta institucional”, de acordo com a conjuntura? [15] Que tipo de relação se deve tentar estabelecer com o marxismo (aliás: com qual marxismo, deve-se precisar), atualmente − diálogo cauteloso, cooperação, confrontação ou o quê? Como evitar que o pensamento e a práxis libertários sejam vistos como, fundamentalmente, “coisa de gente jovem”, tal como hoje frequentemente ocorre, ao menos na prática (como se as ideias, atitudes e transformações pudessem ser circunscritas aos interesses de uma única faixa etária)? Como contribuir para aprofundar as análises teórico-conceituais e filosóficas (dos problemas econômicos à reflexão sobre a gestão e o planejamento das cidades) sem, todavia, resvalar para o teoricismo livresco e academicista, que tanto caracterizou grande parte do “marxismo ocidental”?

Não são muitos os que me parecem estar propondo essas e outras questões de modo explícito e abrangente, e também evitando um excesso de posições preconcebidas. É bem verdade que vários debates vêm acontecendo, mas tenho a impressão de que ainda falta muito para que certos dilemas e certos limites sejam verdadeiramente enfrentados, entre os quais eu desejo salientar a persistente fragmentação do campo libertário, cujas fraturas não raro são continuamente realimentadas por intolerância, exclusivismo e sectarismo. Enquanto isso, portanto, pululam as reflexões autorreferenciadas, isto é, que dialogam muito pouco (isso quando dialogam…) com outras tradições do próprio pensamento libertário. Dá testemunho eloquente desse divisionismo a maneira excessivamente severa com que Murray Bookchin foi tratado devido à ousadia de sua abertura para com a “luta institucional”, sob a forma de sua estratégia chamada de “municipalismo libertário”; amargurado diante de incompreensões e objeções feitas em tom nem sempre respeitoso, o grande libertário estadunidense preferiu, em seus últimos anos de vida, declarar-se rompido com o anarquismo, passando a denominar o seu enfoque de “comunalista”… [16]

Da minha parte, já me estendi, sobre a primeira das questões supramencionadas − quais as relações possíveis (e necessárias?) entre “ação direta” e “luta institucional”? −, em outra ocasião, [17] e ao lidar com a última questão venho tentando, há quase três décadas, dar alguma contribuição. Na continuação deste artigo, vou me concentrar na segunda daquelas questões: que tipo de relação se deve (ou se pode) tentar estabelecer com o marxismo, atualmente?

Notas

[1] Caso de Peter Marshall, autor de um volumoso livro sobre a história do anarquismo: Demanding the Impossible: A History of Anarchism. Londres e outros lugares: Harper Perennial, 2008 (1992; edição revisada em 1993).

[2] Não considero a obra de William Godwin (que recebeu uma grande atenção por parte de George Woodcock, em seu conhecido livro sobre a história do anarquismo), nem de longe, um marco histórico tão relevante como a vida e a obra de Proudhon. (Não custa lembrar que o livro de Woodcock em questão é Anarchism: A History of Libertarian Ideas and Movements. Peterborough e outros lugares: Broadview, 2004 [1962], reimpressão baseada na edição revista de 1986. A edição brasileira intitula-se História das idéias e movimentos anarquistas, tendo sido publicada, em 2002, em Porto Alegre, pela L&PM, em dois 2 volumes. A tradução apresenta problemas em várias passagens, mas a edição brasileira apresenta, como única vantagem em face da edição em língua inglesa de 2004, a presença do Post-Scriptum de 1973, não incluído nesta última.)

[3] Vide “Quelle démocratie?”, in: Figures du pensable – Les carrefours du labyrinthe VI. Paris: Seuil, 1999 (a tradução brasileira foi publicada, em 2004, pela editora Record, do Rio de Janeiro).

[4] Sobre essas diferenças ver, por exemplo, de George Woodcock, Anarchism: A History of Libertarian Ideas and Movements, op.cit.

[5] Já bem cedo Castoriadis endereçou esse tipo de crítica aos anarquistas: vide a sua contribuição, intitulada “Socialisme ou Barbarie”, para o número inaugural da revista Socialisme ou Barbarie (Organe de Critique et d’Orientation Révolutionnaire), publicado em 1949 (vide pp. 7-46).

[6] Sobre a ideia de autonomia, vale a pena reproduzir esta passagem de Castoriadis: “Autonomia: autos-nomos, (dar-se) a si mesmo, as suas leis. […] Em que sentido pode um indivíduo ser autônomo? […] A autonomia do indivíduo consiste em estabelecer uma outra relação entre a instância reflexiva e as outras instâncias psíquicas, assim como também entre o seu presente e a história por meio da qual ele se fez tal como ele é, permitindo-lhe escapar à servidão da repetição, refletir sobre si mesmo, sobre as razões de seus pensamentos e sobre os motivos de seus atos, guiado pela intenção do verdadeiro e pela elucidação de seu desejo. […] Posso dizer que estabeleço eu mesmo a minha lei – uma vez que vivo necessariamente sob a lei da sociedade? Sim, em um caso: se eu puder dizer, reflexiva e lucidamente, que essa é também a minha lei. Para que eu possa dizer isso, não é necessário que a aprove: é suficiente que eu tenha a possibilidade efetiva de participar ativamente da formação e do funcionamento da lei. A possibilidade de participar: se eu aceito a ideia de autonomia como tal (não somente porque ela é ‘boa para mim’), o que, evidentemente, nenhuma ‘demonstração’ pode me obrigar a fazer, nem tampouco pode me obrigar a colocar de acordo as minhas palavras e os meus atos, a pluralidade de indivíduos pertencendo à sociedade leva imediatamente à democracia, como possibilidade efetiva de igual participação de todos, tanto nas atividades instituintes como no poder explícito […].” (tradução livre; cf. “Pouvoir, politique, autonomie”, in: Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III. Paris: Seuil, 1990, p. 131-4; uma tradução brasileira de Le monde morcelé foi publicada em 1992 pela editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro). O poder autônomo, assim, e em contraste com o poder heterônomo (manifestação com a qual estamos, em geral, habituados, por ser muito mais frequente na história), admite ser entendido por nós como aquele que é exercido por uma coletividade que, na ausência de assimetrias estruturais de poder (separação entre dirigentes e dirigidos), e consciente do processo de autoinstituição social das regras/normas (isto é, sem atribuir a legitimidade das regras/normas a alguma fonte extrassocial, seja ela divina ou natural), estabelece e reabre constantemente, de maneira livre, o debate e o processo decisório em torno dos fins e dos meios (da gestão, do planejamento, dos rumos e propósitos da vida coletiva) naquela sociedade específica.

[7] Nos Estados Unidos, o qualificativo libertarian é reivindicado por duas correntes de pensamento político com orientações muitíssimo diferentes: de um lado, a tradição anarquista e seus desdobramentos, o que é denominado enfoque left-libertarian; de outro lado, uma forma extremada de liberalismo, individualismo e privatismo, denominada right-libertarian. Esta última, a rigor, não outra coisa que um ultraliberalismo. Infelizmente, essa tendência é, nos Estados Unidos, bem mais forte que a influência dos left-libertarians. Nos países onde são faladas línguas neolatinas, e mesmo na Alemanha (e até mesmo, em grande medida, na Inglaterra), o problema praticamente não se coloca, pois libertaire (francês), libertário (espanhol), libertario (italiano) e libertär (alemão) se referem, quase sempre, à tradição iniciada com o anarquismo.

[8] Ver, de Hakim Bey, as seguintes edições brasileiras: Tempos modernos e oceano de limonada & outros escritos. Porto Alegre: Deriva, 2010; TAZ  Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2011.

[9] Ver, de Noam Chomsky, entre numerosos escritos, Notas sobre o anarquismo, publicado em São Paulo, em 2011, pela editora Hedra.

[10] Vide Murray Bookchin, Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: An Unbridgeable Chasm. Oakland e Edimburgo: AK Press, 1995 (uma tradução brasileira foi publicada, em 2011, pela editora Hedra, de São Paulo).

[11] Consulte-se, de Daniel Guérin, L’anarchisme: De La doctrine à la pratique [seguido de Anarchisme et marxisme]. Paris: Gallimard, edição revista e aumentada, 2009 (1965-1981, 1976).

[12] Ver, de Georges Gurvitch, (1980 [1964]), Proudhon e Marx. Lisboa: Editorial Presença e Martins Fontes, 1980 (1964).

[13] Sobre a influência de Marx sobre Bakunin no terreno da Economia Política consulte-se, inicialmente, claro, o próprio Bakunin; e, para começar, note-se que é sintomático que em um panfleto que contém acerbas críticas e sérias objeções ao marxismo, ele não obstante assim se expresse, em termos elogiosos que nada têm de irônicos: “Karl Marx, the undisputed chief of the Socialist Party in Germany − a great intellect armed with a profound knowledge, whose entire life, one can say it without flattering, has been devoted exclusively to the greatest cause which exists to-day, the emancipation of labour and of the toilers − Karl Marx who is indisputably also, if not the only, at least one of the principal founders of the International Workingmen’s Association, made the development of the Communist idea the object of a serious work. His great work, Capital, is not in the least a fantasy, an ‘a priori’ conception, hatched out in a single day in the head of a young man more or less ignorant of economic conditions and of the actual system of production. It is founded on a very extensive, very detailed knowledge and a very profound analysis of this system and of its conditions. Karl Marx is a man of immense statistical and economic knowledge. His work on Capital, though unfortunately bristling with formulas and metaphysical subtleties which render it unapproachable for the great mass of readers, is in the highest degree a scientific or realist work: in the sense that it absolutely excludes any other logic than that of the facts.” [Tradução livre: Karl Marx, o chefe incontestável do Partido Socialista na Alemanha  um grande intelecto armado com um conhecimento profundo, cuja vida inteira, pode-se dizer sem querer ser lisonjeiro, tem se dedicado exclusivamente à maior causa que existe atualmente, a emancipação do trabalho e dos trabalhadores ; Karl Marx, que é também, indiscutivelmente, se não o único fundador, pelo menos um dos principais fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, fez do desenvolvimento da ideia comunista o objeto de um trabalho sério. Sua grande obra, O capital, não é de modo algum uma fantasia, uma concepção ‘a priori’, chocada em um único dia na cabeça de um jovem mais ou menos ignorante das condições econômicas e do sistema real de produção. Ela se baseia em um amplo e muito detalhado conhecimento e em uma análise muito profunda do sistema e de suas condições. Karl Marx é um homem de conhecimento estatístico e econômico imenso. Seu trabalho em O capital, embora infelizmente afetado por conta de fórmulas e sutilezas metafísicas que o tornam inacessível para a grande massa de leitores, é, no mais alto grau, um trabalho científico ou realista: no sentido de que ele exclui absolutamente qualquer outra lógica de não a dos fatos.] (Extraído do livro organizado por K. J. Kenafick, originalmente publicado em 1950, Marxism, Freedom and the State, disponível na Internet em 12/01/2002 )

[14] Sobre Korsch, vale a pena ler o artigo “Karl Korsch: A Marxist friend of anarchism”, de A. R. Giles-Peters; disponível na Internet em 20/04/2013. Quanto a Murray Bookchin, ver “The Communist Manifesto: Insights and Problems”; disponível na Internet em 16/01/2010 (publicado originalmente em New Politics, vol. 6, no. 4 (new series), whole no. 24, Winter 1998).

[15] Em um texto anterior, sintetizei desta forma o conceito de “luta institucional”, após explicar o significado da “ação direta”: “Ação direta é como (principalmente) os anarquistas têm denominado, há gerações, a atividade de luta armada, mas também de propaganda, agitação e organização, com a finalidade de promover a revolução social e eliminar a exploração de classe e o Estado que lhe dá respaldo. Houve época em que, entendida como ‘propaganda pela ação’ e privilegiando-se o enfrentamento armado, a ‘ação direta’ foi confundida com o emprego da violência, tendo sido, às vezes, até mesmo reduzida ao terrorismo. Felizmente, mesmo entre aqueles que não rejeitaram ou rejeitam, na qualidade de último recurso ou amiúde como estrita necessidade, a resistência armada, a ação direta passou a merecer uma definição bem mais abrangente. Neste texto, consoante essa linha interpretativa, ela designa o conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra o Estado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais. De sua parte, a luta institucional significa o uso de canais, instâncias e recursos estatais, tais como conselhos gestores, orçamentos participativos ou fundos públicos. Aqui, entretanto, estabelece-se já uma distinção entre uma posição marxista-leninista e uma postura compatível com o campo libertário: a luta institucional abordada neste texto é uma luta institucional não partidária, ou seja, que não tem como pressuposto a criação de partidos políticos ou a filiação a partidos políticos por parte dos ativistas.” (cf. Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (1.ª Parte)”; disponível na Internet em 27/04/2012, páginas não numeradas.

[16] Quanto às posições e à irritação e amargura de Bookchin no final de sua vida, consulte-se, por exemplo, seus livros Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: An Unbridgeable Chasm, op.cit.; e Social Ecology and Communalism. Oakland e Edimburgo: AK Press, 2007. Também há vários textos (retirados de seus livros) disponíveis na Internet, como na página dos Anarchy Archives organizados por Dana Ward. Sobre as reações a Bookchin, pode-se exemplificar com a coletânea O bairro, a comuna, a cidade… espaços libertários! (São Paulo: Imaginário, IEL e Nu-Sol, 2003). Note-se, ainda, que eu mesmo tenho algumas ressalvas a propósito da estratégia de Bookchin (vide o meu artigo “Which right to which city? In defence of political-strategic clarity”, publicado em 2010 em Interface: A Journal for and about Social Movements, 2(1), pp. 315-333 (disponível na Internet em 27/05/2010); ao mesmo tempo, no entanto, certas críticas me parecem demasiado dogmáticas.

[17] Vide “Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (1.ª Parte)”, op. cit.; e “Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (2.ª Parte)”, disponível na Internet em 04/05/2012.

25 COMENTÁRIOS

  1. Há algo que me separa de muitos daqueles que se chamam a si próprios anarquistas que é a ideia da necessidade da união daqueles que se chamam anarquistas para derrubar o poder e para depois praticar o anarquismo. Este foi a orientação e a estratégia mais comum durante o sec XX (desde a Rússia a Espanha) que é na minha opinião contraditória com os princípios do anarquismo pelos seguintes motivos: A união pela identidade política que é a base do partido político leva embora que informalmente a organizações com os mesmos vícios; o exclusivismo que pressupõe conduz ao elitismo, à arrogância, confrontação e violência; a união pela identidade (ser anarquista) e não na prática implica a criação de doutrinas a que alguns anarquistas chamaram o catecismo anarquista às vanguardas, por exemplo Durruti dizia frequentemente que “Los Solidarios” era uma vanguarda revolucionária formada para liderar o povo na revolução social (o Durruti tinha uma série de tiradas mais atribuíveis ao Stalin que ao Bakunin). Neste contexto, acho que a identidade não é a melhor ferramenta para a transformação social nem para encontrar formas não autoritárias de organizar a sociedade tanto na esfera pública como na esfera privada. É sabido que muitos anarquistas dentro de casa se esquecem dos princípios anti-autoritários. Na minha opinião a melhor ferramenta para a transformação são a promoção das economias participativas, a auto-gestão, as moedas locais, a auto-governação e auto-organização. As relações entre as pessoas têm de mudar para não se reproduzir o patriarcado. Para isso é necessário construir sobre o mundo que existe e não sobre um mundo apoderado pelos anarquistas através de confrontação e pela tomada do poder.

    “The State is a condition, a certain relationship between human beings, a mode of behaviour; we destroy it by contracting other relationships, by behaving differently toward one another… We are the State and we shall continue to be the State until we have created the institutions that form a real community.”
    ― Gustav Landauer

  2. “A mim me parece que os libertários se conhecem a si próprios e o seu passado menos do que deveriam, e essa circunstância não contribui nem um pouco para fortalecê-los”.

    Não só isso. Conhecem pouco do passado e do presente do capitalismo, bem como de ideias e movimentos anti-capitalistas. Também demonstram conhecer pouco do pensamento e das práticas políticas autoritárias e fascistas e, pior ainda, chegam a reproduzi-los sem assumir que estão sendo autoritários. Não recuo em dizer que a onda de idolatria bakuninista é uma mostra do que é o historicismo fascista e da prática autoritária.

  3. Em 1997 participei num seminário organizado por alunos da USP — na altura eram alunos, agora envelheceram e são professores — intitulado Autogestão e Socialismo, do qual depois resultou um livro (Democracia e Autogestão, São Paulo: Humanitas – FFLCH/USP, 1999). Numa das sessões falou um anarquista e quando da sala alguém lhe perguntou por que motivo o anarquismo tinha tão poucos adeptos, ele respondeu que a doutrina anarquista requer uma tal perfeição moral que só num estágio futuro da humanidade é que a grande maioria das pessoas conseguirá elevar-se ao plano em que já estão eles, os anarquistas. Enquanto eu pensava o que sucederia se me levantasse e desse um par de murros na cara daquele sujeito que nos estava a insultar a todos, considerando-nos moralmente inferiores a ele e aos seus amigos, o público homenageou-o com uma salva de palmas.

  4. Curioso, senão lamentável,
    que a partir de um texto que busca uma análise ampla, breve, do campo libertário, esboçando entre outros um diálogo histórico e atual acerca da possibilidade de “marxismo + anarquismo” dentro de um campo libertário de luta, tenha como resposta de João Bernardo uma tentativa – via anedota – de descaracterizar e menosprezar o anarquismo, devido a arrogância/prepotência de um anarquista, seja lá quem for (em 97 na USP). Como se simplesmente não existissem exemplos históricos – mais relevantes do que uma intervenção moralista em um seminário – para descaracterizar o marxismo a partir da intervenção de um marxista, seja lá quem for.

  5. Um bom pontapé para esse esforço de diálogo e articulação. É sempre bom ser jogado na nossa cara o quão desarticulados estamos. Mas, mas…

    Compartilho das inquietações do Pedro com relação a qual critério a ser utilizado para escolher com quem conversamos e sobre o quê. A luta identitária anarquistas assim como facilitador de reconhecimento de possíveis resistentes, muitas vezes foi um entrave para o diálogo. Segundo o autor, isso se daria por uma não disponibilidade ao diálogo e ao reconhecer o outro, porém não me foi convincente a unidade da teoria e da práxis libertária que daria uma coesão aos grupos acima analisados. Acho que se a articulação é feita entre especifistas e autonomistas (e não nego que esse esforço deve ser realizado), ela é muito mais facilmente realizada com outras coletividades resistentes que não configuram o campo libertário.

    Interessante o esforço tipológico, mas ficou confuso para mim quem são esses libertários. Por mais que seja fora do escopo do texto localizar grupos e locais desse campo, acho que a tipologia mostra uma certa confusão da definição. Umas horas aparece que os analisados são os exemplos clássicos e contemporâneos do Norte (aí a predominância de Bookchin e Castoriadis), depois os anarcopunks são colocados como um grupo a ser observado (que pelo que sei cada vez menos têm uma projeção tanto no norte quanto no sul). Acho que seria interessante adicionar os que pensam em termos de autonomia e de insurreição como um subgrupo a ser levado em consideração.

    Trazendo essa análise para o Brasil, foi difícil para mim visualizar nos meios que ando essa tipologia como sendo representativa. Quem aqui pensa seguindo os passos de Bookchin e Castoriadis? O que não significa que eles/nós sejamos movimentos sociais pouco críticos (como deixou transparecer no texto), mas apenas que os referenciais teóricos do campo libertário é muito maior.

    Pode ser que eu morda minha língua na continuação do texto, mas as críticas são mais para continuar as construções conjuntas. Que o debate continue!

  6. Um dos principais problemas da identificação anarquista hoje em dia é que ela funciona como máscara cínica de recusa: ao recusar todas as demais práticas e posturas, me torno anarquista! Hoje uma pessoa pode falar um monte de asneiras e dizer-se anarquista, e isso ocorre porque são muitas poucas pessoas que a irão confrontar. Se uma pessoa publicamente se declara marxista e adota posturas incoerentes, muitos são os que poderão contradizê-la ou criticá-la. Mas quem irá criticar o anarquista que fala qualquer coisa? Não estaria ele apenas praticando sua própria corrente anarquista-individualista? Para além do mal-caratismo, é fato que não ter uma corrente de pensamento bem consolidado ajuda o anarquismo a sofrer deste tipo de mal.

    Pessoalmente me pergunto qual é o valor de se ater ao “anarquismo” como identidade. Seria apenas uma forma de rechaçar o marxismo? Bem, o marxismo tem uma expressão mais bem científica e outra mais bem política. Por que a necessidade de “criar uma teoria econômica anarquista”, como já ouvi alguém sugerir? Por que não simplesmente avançar na teoria econômica em geral, com o viés classista e libertário que já está expresso em Marx? As vezes parece ser muito mais uma necessidade de autoafirmar a identidade do que um interesse epistemológico e político. E insisto nisso pois infelizmente em nossa época cínica a verdade é que a identidade anarquista se mostra como muito bem adaptada ao discurso de sujeitos cínicos, pois formados nesta sociedade, e esta identidade acaba se revelando uma das grandes causas de porque a classe média combativa (a grande maioria dos que hoje reinvindicam tal identidade) não consegue se engajar nas lutas classistas com maior organicidade, uma vez que mal consegue organizar-se ela própria. Pródiga em grupos de “divulgação ideológica”, creem ser o anarquismo um grau tão elevado de pureza ideológica e racional que com apenas espalhando as idéias anarquistas (ou pichações de As pelos muros) estão empenhados num duro trabalho de construção da consciência social.

    Apesar destas minhas críticas, creio que o texto é um esforço muito salutor justamente por tentar solidificar uma diálogo e uma linha de pensamento libertário/anarquista, que ao meu ver combate essas noções e posturas cínicas qeu se apoiam justamente na frouxidão e no discurso fácil e sem compromisso de quem encontra no anarquismo uma identidade fácil para poder criticar todos os outros sem ter que se comprometer com nada.

  7. Pois é, João Bernardo. Dar dois socos na cara de alguém é o que eu sinto vontade de fazer quando vem um Kathedermarxist qualquer afirmar que o anarquismo não passa de uma ideologia pequeno-burguesa. Nunca devem ter ouvido falar em anarco-sindicalismo… O tal orador de que você fala não passava, manifestamente, de um idiota, como há muitos no movimento. De todos os tamanhos, formas e feitios. Não soube responder e mandou uma «boca», mas quem faz questão de andar à porrada não deixa deslizar pretextos.

  8. Tendo a concordar com o comentário de Pedro Alípio. Do texto proposto à reflexão, gostaria de chamar a atenção para o seguinte: às tantas afirma-se que só a diluição de um dos campos pode limar clivagens entre os que se inscreveram na tradição marxista e os que se inscreveram na tradição libertária, o que supõe uma concepção da relação entre os dois campos como sendo não cooperativa, crispada e organizada para a vitória de um sobre o outro, afirmando assim a acção política como fundamentalmente identitária: cada campo procurando projectar a sombra da sua bandeira sobre todo o campo político, sobre todas as dimensões da existência. Em minha opinião, essa atitude é também compositória da fragmentação do campo político, quer exterior quer interior. A atitude fortemente identitária em relação ao exterior do movimento libertário alimenta uma atitude fortemente identitária no interior – a luta pelo domínio de todo o campo político potencia a luta pelo domínio no interior. É a composição do comum numa praxis comum que pode conduzir à desfragmentação do campo político (igual por dentro e igual por fora). Não há desfragmentação apenas para dentro!

  9. A radiografia será sensivelmente a que foi feita, já quanto aos desafios do campo libertário também destaco, como outro comentador fez (embora não pelos mesmos motivos), a seguinte frase:

    “A mim me parece que os libertários se conhecem a si próprios e o seu passado menos do que deveriam, e essa circunstância não contribui nem um pouco para fortalecê-los.”

    Penso que os libertários se conhecem pouco a si próprios e conhecem pouco a práxis libertária, o que é certamente um problema espantoso, dado que essa práxis ou existe ou então simplesmente não se pode chamar de libertária, será outra coisa qualquer. Ao contrário do que disse outro comentador, aos marxistas é permitido muita coisa, até declararem-se pró-capitalistas sem ninguém se incomodar, mas quanto aos libertários o que ele diz é verdade e não deveria ser assim. Existe um princípio estrutural (e aqui estou a referir-me particularmente ao anarquismo) que alinha os meios com os fins, que é daqueles que é definidor da práxis libertária, e que conforma a identidade libertária.

    Assim, o desafio seria encarar o problema que é o desconhecimento do princípio estrutural libertário da adequação entre os meios e os fins, que é o que se traduz, na prática, na escolha pela acção directa em detrimento da acção política ou institucional, ou na recusa liminar de comportamentos autoritários, graves e recorrentes, dentro do movimento, coisa que não acontece na actualidade. Quando, para mais, vivemos um tempo histórico em que as ideias libertárias penetraram de forma relevante nos movimentos sociais um pouco por todo o mundo, e se assiste a uma grande falta de capacidade dos próprios libertários conseguirem influenciar positivamente esses movimentos de uma forma muito mais contundente.

  10. Os leitores que se incomodaram com o episódio verdadeiro que eu narrei procederam a uma interessante definição de irrelevância. Uma verdade da qual não se gosta é irrelevante.
    Incorreram também numa curiosa distracção, já que a lição do episódio não são os dois murros que eu podia, ou devia, ter dado no palestrante — que aliás era um sindicalista anarquista e tinha conduzido uma greve com ocupação de que muito se falou — mas a coda, o facto de ele ter sido aplaudido pela assistência.
    Essa historieta pretendia ilustrar duas questões, de maneira discreta não fosse a incompreensão de alguns leitores. Por um lado, um tema que foi corrente entre os anarquistas pelo menos no final do século XIX e no primeiro terço do século XX, seduzidos pelo evolucionismo e expressando-se, como é hábito no anarquismo, no plano moral. Por outro lado, a facilidade com que um público, mesmo convocado à reflexão, aceita sem reflectir. Tudo considerações muito pertinentes a propósito do artigo do Marcelo.

  11. Um comentário bem pontual:

    A caracterização do ‘anarquismo clássico’ me soou muito estranha e muito distante da realidade.

    “Obsessão pelo consenso”? Sinceramente, já li muito sobre o anarquismo dito clássico, tanto sobre experiências práticas quanto textos dos autores clássicos. Não vejo nada, de forma alguma, que induza a se pensar em “obsessão por consenso”.

    Pelo contrário, foi entre “neoanarquistas”, uma juventude anarquista ou autonomista das últimas décadas, que pude observar algo que se poderia se chamar de “obsessão pelo consenso”.

    Mas talvez minha principal discordância em relação à caracterização do ‘anarquismo clássico’ se refira a:

    “a crença na possibilidade de construção de uma sociedade sem “poder”, “leis” ou “autoridade”, crença essa que tem por base uma rejeição generalizante e um tratamento conceitualmente demasiado simplificado daquelas três ideias (excessivamente associadas ou reduzidas ao Estado e a instituições como a Igreja católica)”.

    Eu não caracterizaria um anarquismo clássico por uma suposta tal crença. Mas de toda forma a crença na possibilidade de uma sociedade comunista era a mesma dos socialistas autoritários em geral ou dos marxistas em específico. O que diferenciava os anarquistas e marxistas era basicamente os meios e não os fins. Portanto essa mesma caracterização dos anarquistas clássicos serviria também para os ‘socialistas autoritários clássicos’ em geral.

    Minha discordância principal e profunda e inconciliável é com a caracterização do anarquismo clássico como associando ou reduzindo ‘lei’, ‘poder’ e ‘autoridade’ à Igreja e Estado.
    Uma vez que as divergências com o marxismo e com os socialistas centralistas ou autoritários entes de Marx se deram muito em torno da questão do Estado, criou-se historicamente essa visão fora da realidade e dos fatos.

    Interessante notar que o primeiro livro em que alguém se intitulou como ‘anarquista’, sequer tratava de Estado ou Igreja. Trata-se da obra ‘O que é a Propriedade?’ de Proudhon. Antes de tudo os anarquistas clássicos viam a base do poder e da autoridade (ilegítima)nos fatos econômicos, na propriedade.
    Acho que Bakunin resume bem a questão quando numa passagem de um texto seu (que não vou achar a referência agora de modo algum) afirmava, discordando de Marx, que esse entendia que o Estado era uma consequencia das relações econômicas porém não conseguia compreender que uma vez havendo Estado, ele reproduziria essas relações econômicas, por isso seria necessário destruir tanto a propriedade privada quanto o Estado simultaneamente.
    A ênfase que muitas vezes aparece nos anarquismo clássico numa contraposição ao Estado se dá por ser esse o elemento básico de divergência entre as correntes socialistas, e não pelos anarquistas reduzirem ‘poder’ e ‘autoridade’ ao Estado.

  12. Eu achei a tipologia bastante inadequada. Acho que o correto é pensar em termos de meio social, quem está se assumindo como tal.

    O anarquismo morreu no Brasil depois de Vargas, perdeu força. O que existe hoje são grupos de estudos acadêmicos, grupos de pregação moral e grupos juvenis que se vestem espiritualmente de anarquismo. Os grupos acadêmicos servem para carreira, há bolsas, empregos, e os melhores – intelectualmente, socialmente, esteticamente- arrumam um bom emprego na universidade pública – sonho de todos. Já os grupos juvenis são como as drogas, trazem o prazer momentâneo. Permitem aquela liberdade para experimentar sexo e tantas outras outras coisas. Os grupos de pregação moral são associação de pessoas que se julgam moralmente superiores às demais e que, portanto, possuem um papel na regeneração moral da humanidade. Trata-se de fanáticos que possuem o anarquismo como religião, dele extraem uma ética e disciplina moral. Percebam que para os religiosos anarquistas o mal é sempre uma coisa da qual o anarquismo está ausente.

    O anarquismo não possui o menor impacto nos meios populares. É uma força de classe média. É como pronunciar Nietzsche no Capão Redondo. Mas possui uma certa magia, uma certa atração no meio artístico e cultural. A influência ficou na música, nos filmes, no teatro.

    * autor foi mal ao reduzir o autonomismo a Castoriadis. Isso quando Tragtenberg foi a maior referência no Brasil

    * o texto traz a velha preocupação boba dos anarquistas de ficar provando validade dos velhos autores.

  13. Houve um tempo em que:
    as sutilezas não tinham de ser óbvias;
    a ironia não cobrava um pedágio de explicação.
    A pieguice velhaca e a velhacaria piegas ainda não ostentavam o badulaque contrarrevolucionário do ‘politicamente correto’.

  14. Muitos comentários acerca do anarquismo, poucos (senão nenhum) com um mínimo de base fundamentada (na verdade vi muitos preconceitos, se trocarem os comentários da revista VEJA pelos os daqui, creio que de fundo, pouca coisa mudará). Os comentários, me perdoem os comentadores mais sérios, parecem conversa de botequim (tendo na cabeceira desta “mesa”, João Bernardo e sua “anedota” rancorosa do anarquista de palestra, clap, clap, clap).

    A proposta do autor é boa, mas a tipologia tem problemas, concordo com as ponderações realizadas acima por alguém, que me esqueci o nome que apontou a questão rapidamente. Parece que esta primeira parte foi escrita sem a tarefa de casa de “ler a bibliografia básica do tema” antes de opinar.

    O inventário tipológico do autor parece um manual de história das ideias políticas com todos os seus equívocos tradicionais, tem pouco fundamento na realidade do que é realmente o anarquismo (espero que os próximos artigos melhorem a péssima impressão que tive deste primeiro artigo). Procederia melhor o autor, do ponto de vista metodológico, se fizesse um estudo mais sério da composição do anarquismo, ao invés de uma tipologia que me parece muito limitada, conceitual e no fim, guarda uma impressão de que o autor é um taxidermista político.

    Procederia melhor o autor se saísse às ruas também para “encontrar” os anarquistas (o estudo de campo, tão necessário a graduandos e pelo visto, também a doutores) para compensar o peso excessivo, dado a um campo “autônomo” ou correntes que só existe em meia dúzia de comentadores e na cabeça do autor, pois no texto, os pesos dados na “vida real” (fora das anedotas de bar, do mundo restrito dos currículos lattes) possam ser desproporcionais ao tipo ideal. Isso ajudaria também a evitar o sectarismo e as “fraturas” de análise, tão prejudiciais, quanto o sectarismo de posição política.

    Fora isso, lerei os próximos textos com atenção, talvez cambiem meus pré-conceitos para com o artigo.

  15. Ora, Leandro, você vem dizer que alguns comentários são conversa de botequim e acusa assim sem mais nem menos o autor de nunca ter encontrado os anarquistas na rua??

  16. Macerlo, creio que seu esforço de discutir o pensamento e a ação libertários são muito importantes. Entretanto, creio que incorre em muitos problemas, principalmente quando trata do anarquismo, muitos dos quais ligados às “histórias do anarquismo” conhecidas, como essa do Woodcock que você cita. Creio que a maneira do como se vêm produzindo as discussões teóricas e históricas do anarquismo possuem muito, mas muitos problemas mesmo e precisam ser melhoradas.

    – Creio que para qualquer análise histórica contemporânea, é fundamental abandonar a história vista de cima que leem o anarquismo — um fenômeno global e muito amplo nas lutas sociais — por meio da história de um ou outro teórico; quando você fala que esse campo libertário “surge” com Proudhon, creio que seria relente investigar as relações dele com os movimentos populares de seu tempo. Da maneira como eu entendo, a expressão do pensamento de Proudhon tem muito vínculo com os trabalhadores da seda lioneses (canuts) que protagonizaram insurreições em 1831 e 1834. Eu particularmente, vejo o surgimento do anarquismo associado à Primeira Internacional, particularmente entre 1868 e 1869, quando os anarquistas, muitos dos quais vinculados à Aliança da Democracia Socialista estabelecem um sindicalismo de intenção revolucionária em países como Espanha, Itália, Portugal, Suíça, México e outros.

    – A divisão das correntes anarquistas dessa maneira que vem sendo coloca pela maioria dos estudos de referência, também devem ser questionadas. Por exemplo, um militante como o Neno Vasco defendia o sindicalismo (não era anarco-sindicalista, mas sindicalista revolucionário) e ao mesmo tempo o comunismo como perspectiva de sociedade futura (distribuição de acordo com as necessidades). Esses exemplos são infindáveis e colocam em xeque essas definições. Essas definições “clássicas” se sobrepõem e não explicam muito do que foi o anarquismo desde seu surgimento ao presente. A corrente “anarco-comunista” uniria anarquistas como Malatesta e Luigi Galleani, que, em termos estratégicos, possuem pouco em comum.

    – Discordo de você sobre a questão do poder nos anarquistas pois, nesse caso, mais do que a forma, é preciso debruçar-se sobre o conteúdo. Os clássicos, quando discutem “poder” estão falando de dominação e/ou de Estado e assim devem ser lidos. A discussão do poder no anarquismo é rica, mas ela tem de extrapolar a terminologia utilizada nas diferentes épocas.

    – Sobre o consenso e votação por maioria, nem falo. Mas senão todos os clássicos, pelo menos a maioria, incluindo Bakunin, Malatesta, Kropotkin e outros, não defendem o consenso. Isso apareceu no anarquismo, de maneira mais significativa, com a “nova esquerda”, dos anos 1970 em diante.

    – A diferença fundamental de Bookchin com os clássicos não está, principalmente, na utilização do termo poder ou na crítica do consenso, mas no questionamento da centralidade do trabalho e na defesa da mobilização exclusiva por local de moradia, posição bastante heterodoxa no anarquismo.

    – As posições de Castoriadis e Chomsky sobre o anarquismo, com todo respeito a esses dois grandes pensadores, são baseadas em leituras muito superficiais de pouquíssimos autores. Assim, devem ser lidas com cuidado. Eu mesmo traduzi essa compilação do Chomsky, mas se você ver, ele leu um pouco do Bakunin, um pouco do Rocker e mais uns 2 ou 3 anarquistas.

    – Sobre Hakim Bey, também nem falo. Não há nada, além da auto-identificação, que o ligue ao anarquismo.

    Em suma, creio que diversos pontos podem ser questionados. Sem qualquer arrogância, como sei de seu interesse de pesquisas nesse campo, indico para leitura um trabalho que produzi recentemente, e que ajusto o texto neste momento para transformá-lo em um livro, e que está disponível no link abaixo. Tentei reformular a discussão e fazer um “o que é anarquismo” sem esses e muitos outros problemas pelos quais passam os estudos de referência. Espero que goste.

    http://ithanarquista.wordpress.com/2013/01/14/felipe-correa-rediscutindo-o-anarquismo-uma-abordagem-teorica/

    Um abraço,
    Felipe

  17. Como o texto é sobre o movimento libertário hoje fui dar uma olhada na parte da dissertação do Felipe Correa que trata da atualidade. Está na página 261 e possui o subtítulo “anarquismo hoje”.

    Lá está escrito que “a mensagem anarquista é universal”, “que se manteve coerente e intacta em termos de espaço e tempo”, e que é “uma alternativa ideológica viável”.

    Universal??? Intacta no tempo e coerente??? Viável? Mesmo com tantos insucessos?

  18. O texto é muito ruim. A caracterização do “anarquismo clássico” é bastante equivocada, como comentou o Leo Vinicius. Essa do “neoanarquismo” então, nem se fala, sem critério algum agrupar Bookchin, Chomsky e Bey no mesmo grupo. Aliás, atribui-se um peso exagerado aos anarcopunks e autonomistas, além de que considerar Hakim Bey anarquista seja um grande equívoco. Em relação aos continuadores do “anarquismo clássico”, é um absurdo dizer não há uma atualização teórica consistente. Basta vermos produções como “Black Flame: The Revolutionary Class Politics of Anarchism and Syndicalism”, dos companheiros sul-africanos da Zabalaza, o documento FAG-FAU “Wellinton Gallarza e Malvina Tavares – Por uma Teoria Política Libertária”, “Huerta Grande: a importância da teoria”, “A Teoria da Interdependência Estrutural das Três Esferas”, as considerações de Jose Antonio Gutierrez Danton sobre o programa anarquista e a política de alianças, e uma infinidade de outras produções. Sobre a tipologia, para ser mais propositivo pensamos numa divisão em termos da necessidade da organização ou não (dividindo os anarquistas em anti-organizacionistas e organizacionistas – estes divididos em sintetistas e especifistas/plataformistas) e ou termos estratégicos entre um anarquismo de massas e um anarquismo insurrecionalista. Isso para não falar muito mais dos problemas do artigo e da proposta apresentada.

  19. Caro Marcos, se você tivesse dado uma olhada um pouco mais atenta, veria que o trabalho não é sobre “anarquismo hoje”, ao qual dedico três parágrafos de mais de 250 páginas. Outra questão é que o trecho que você coloca é uma citação do Michael Schmidt; eu, provavelmente, teria escolhido outros termos. Ainda assim, creio que as afirmações são válidas. Universal no sentido da possibilidade de generalização. Intacta e coerente no sentido de que os princípios foram em grande medida conservados nos quase 150 anos de história entre as deferentes correntes anarquistas e demonstram coerência. Viável, pois eu, pelo menos, acredito que essa ideologia tem muito a dizer, apesar do que diz o senso comum e outras correntes da esquerda que têm falado de anarquismo conhecendo pouco ou nada. Do ponto de vista histórico, nenhuma corrente da esquerda conseguiu chegar àquilo que preconizou a Primeira Internacional: a emancipação dos trabalhadores, que deveria ser obra dos próprios trabalhadores, apesar dos significativos esforços. Certamente muitas autocríticas poderiam ser feitas; do meu ponto de vista, principalmente em termos estratégicos. Entretanto, meu caro, para isso precisamos ler a história sem as lentes ideológicas tão comuns na esquerda. Na parte de história (quinta onda) tem algumas coisas (superficiais, entretanto) sobre a história recente do anarquismo. Se quiser conhecer propostas anarquistas contemporâneas, posso indicar.

  20. Em defesa do autor e discordando do Khaled, não vejo problema em se agrupar Hakim Bey, Chomsky e Bookchin como “neoanarquistas” da forma feita do texto.
    O autor deixa claro a diversidade do pensamento entre eles. O que o autor diz é que eles foram além do “anarquismo clássico”, e por isso foram considerados ‘neoanarquistas’ no texto. O que há de errado nisso?
    O autor não faz juízo de valor sobre as teorias de Hakim Bey, Bookchin ou Chomsky, e se o ‘ir além’ de cada um significa um avanço ou retrocesso, ou um conflito entre eles.

  21. Leo, você, como sociólogo, sabe que para criar uma categoria, ela deve ter aspectos em comum (quais são os pontos em comum entre eles para além da auto-identificação, critério a meu ver insuficiente para definir uma categoria, que poderiam sustentar que “neoanarquismo” constituiria uma categoria?) e ser capaz de diferenciar-se de outras. Ou seja, para que serve uma categoria que reúne elementos que não possuem nada em comum e que não consegue se diferenciar de outras?! Para mim, não há critério possível capaz de inserir Hakin Bey entre os anarquistas. Seria a mesma coisa que um cara falar que é marxista e negar a centralidade do trabalho, falar que não existem classes e luta de classes, sustentar que o Estado representa toda a sociedade, defender que uma atuação sem perspectiva classista, ser defensor do trabalho assalariado etc., mas, ao fim e ao cabo falar, “sou marxista”. Esse cara é marxista?!

  22. Respondendo ao comentário do Leo, a crítica que fiz à tipologia apresentada se baseia em achar de certa forma incoerente usar critérios distintos ao agrupar as vertentes principais do campo libertário: enquanto os “anarquistas clássicos” são agrupados pela afinidade em determinadas posições, os “neoanarquistas” são agrupados de forma totalmente heterogênea, tendo como único critério determinadas discordâncias em relação às posições do “anarquismo clássico”.

  23. Nisso eu concordo com este último comentário do Khaled. Os ‘clássicos’ foram agrupados por uma convergência, e os ‘neo’ foram agrupados por diferenciação aos clássicos. Isso pode trazer alguma incoerência na análise? Não sei, talvez as outras partes do texto nos digam.

    Felipe,
    Nunca se chegará a uma conclusão objetiva, universal, se Hakim Bey é ‘anarquista’ ou não, ou se Antonio Negri é ‘marxista’ ou não. Pois isso parte do que cada um entende do que é a essência ou o essencial, o que define um ‘anarquista’ e um ‘marxista’. E essas identidades ou conceitos são algo em aberto, que se modificam com a história, mudam de acordo com as crenças e valores de cada um.

    Esse “relativismo” não significa que qualquer coisa é passivel de ser aceito em qualquer grupo, categoria, identidade. Se alguém colocar Stalin ou o Papa Francisco no grupo dos ‘anarquistas’, talvez possamos chamá-lo de louco, pois não existe qualquer traço no campo das idéias ou linha histórica que possa colocá-los nesse grupo.
    O próprio Bookchin não nega que Hakim Bey seja anarquista, apenas se afasta e discorda visceralmente do anarquismo do Hakim Bey. Eu particularmente não consideraria o Hakim Bey anarquista também. Mas não vejo a principio nenhum problema metdológico em agrupá-lo como neoanarquista, a menos que estivesse muito bem definido o que é ser ‘anarquista’ e nessa definição estivesse claro alguns atributos que não fazem parte do pensamento do Hakim Bey.

    O fato é que Hakim Bey exerceu algum influência em práticas de um campo libertário nas últimas décadas, e provavelmente mais do que o Bookchin e o Chomsky. Goste-se ou não disso.

    Acho que essa discussão toda só existe porque o autor do artigo usou uma palavra muito cara, identitária, para um campo político: “anarquista”. Se usasse ‘neolibertários’, ou ‘neoantiautoritários’ talvez ninguém se importasse tanto.

    Felipe, para responder à sua pergunta: a categoria ‘neoanarquista’ no texto está diferenciando esse grupo do grupo dos ‘anarquistas clássicos’. Se essa diferenciação é útil ou não, acho que só no final dos artigos saberemos.

  24. Antes de tudo parabéns pela iniciativa do autor. Os estudos sobre o campo libertário e também do anarquismo são sempre escassos, toda iniciativa permanece válida neste cenário.

    Acho também que a discussão entre ação direta e luta institucional é interessante, ainda que ao meu ver não sejam centrais, mas contribuem sobremaneira para as estratégias do campo libertário (nesse sentido amplo descrito pelo autor).

    Eu não sou geógrafo nem sociólogo, sou da história e como tal vou fazer uma crítica a primeira parte do texto como historiador (ainda que não tenha lido as próximas partes do artigo que ainda vão sair eu creio). As críticas serão feitas aqui de maneira fraterna e num debate que é mais do campo da ciência do que da “política”, ainda que eu saiba que as duas coisas estão interligadas.

    Me incomoda do ponto de vista metodológico, que o estudo do anarquismo fique sempre restrito a um inventário, um catálogo tipológico e pouco traga as práticas sociais dos anarquistas. O problema deste método é “errar na mão” e dar muito peso (como alguns comentadores disseram acima e concordo com quase todos sobre esse ponto) a autores que não tem tanta importância do ponto de vista político. A simples negação do estado não é suficiente para caracterizar um autor como anarquista. A auto-identificação, como bem apontado pelo Felipe C. acima também não.

    Outro incômodo é que o anarquismo seja sempre tratado do ponto de vista identitário, ignorando sua trajetória histórica, suas estratégias e o pior, ignorando suas práticas sociais. É como começar uma pesquisa lendo os livros que os anarquistas supostamente lêem e traçando à partir daí todo um parâmetro de indentificação. Isso pode ser enganoso. Os sindicalistas revolucionários do início do século XX no Brasil liam entre outros autores, Nietzsche e Stirner, mas em suas práticas sociais eram profundamente classistas e estavam envolvidos com entidades de classe.

    O uso de categorias é “relativo” como bem apontou o Leo Vinicius, isso é uma condição sine qua non da ciência, até aí tudo bem. Deste ponto de vista, todas as pesquisas são “equivalentes” e a ciência e sua multiplicidade métodos também. O que podemos dizer, dentro do campo científico para não cairmos numa aporia que imobilizaria o debate (do que é ou não válido no uso de uma categoria) é que o que diferencia uma boa categoria de uma ruim é sua capacidade explicativa e sua base de fundamentação. Incluir o papa francisco como anarquista seria ruim não só porque se o incluíssemos ampliaríamos demais a categoria anarquista e teríamos de incluir outros casos, mas porque uma categoria construída precisa estar ancorada em fontes (o que o historiador Jorn Rüsen, chama de fundamentação metódica)e não há em lugar nenhum creio eu, alguma fonte que indique que o novo papa é anarquista. O pesquisador precisa ancorar suas hipóteses em fontes (pelo menos do ponto de vista da história isto é extremamente válido). Se afirmo que os romanos foram anarquistas no século V, preciso indicar não apenas a categoria que utilizei para classificá-los desta maneira, mas que fonte utilizei para “reivindicar” esta posição. Isto pra mim, separa a boa ciência da má. Separa também a noção de ciência como “mero discurso” e ciência como algo que está ancorado em métodos e uma base de fundamentação clara. É óbvio que uma fonte está interligada a um conjunto de hipóteses em que ela pode funcionar (Bourdieu), mas isso não significa que qualquer hipótese justifique qualquer coisa ou que ao contrário, no corolário positivista as hipóteses “estejam nas fontes”. Mas que é preciso certa coerência no uso das categorias.

    – E por falar em Bourdieu, creio que faltou o método de análise do que o próprio chama de “campo”. Um campo é constituído por seu conjunto de relações e práticas. Ao contrário, o autor não cita nenhuma prática social, tampouco das relações que os que constituem o campo “libertário” estabelecem, ficando demasiadamente restrito à determinada literatura. Se eu quero entender o sindicalismo revolucionário no início do século não posso apenas ler os supostos teóricos do sindicalismo revolucionário (Sorel e Bakunin), mas tenho de partir do campo estabelecido (os sindicalistas revolucionários, suas relações, sua literatura militante, suas entidades de classe, seus jornais, enfim, suas práticas).

    – Sobre o neoanarquismo: acho totalmente incoerente esta categoria. Em que momento histórico os anarquistas deixaram de se reivindicar anarquistas para se reivindicar neo-anarquistas? Foi uma mudança de paradigma realmente relevante ou é mais de dois ou três escritores que por decreto resolveram “sepultar” o anarquismo “clássico”? Com que base o autor afirma que houve realmente esta mudança? Aí não podemos comprar o gato por lebre. Bem, se pegarmos o estudo dos sulafricanos sobre o anarquismo (e aí reside certa fragilidade deste argumento do texto), veremos que as práticas dos anarquistas tiveram uma continuidade inegável. O que é chamado de neo-anarquismo, é um fenômeno completamente marginal (e literário restrito diga-se de passagem). Não nego que Hakim Bey, Bob Black e outras “influências burguesas sobre o anarquismo” para utilizar um termo de Lucce Fabri não tenham sido lidas por muitos setores, mas cabe dar relevo: foram influentes a tal ponto de se constituírem como uma corrente própria? Se foram, quais são os fatos que fundamentam tal afirmação? Qual é o alcance de sua atuação? Neste ponto acho que o autor comprou um mito historiográfico que alguns autores estão revendo (como Michael Schmidt). O que vemos é que o anarquismo longe de desaparecer e ser resgatado pelo Maio de 68 (um mito historiográfico que reforça a tese e a força do “autonomismo” e do neo-anarquismo) teve continuidades e permanências (na Europa, na América Latina e em outras regiões), ainda que sua força se comparada aos períodos anteriores realmente tenha sofrido um decréscimo.

    – Sobre o especifismo acho que o especifismo é muito mais do que “apenas um retorno aos clássicos”. Olhar o especifismo apenas como um retorno aos clássicos (e novamente o olhar tipológico e estritamente político atrapalha o aprofundamento do artigo) é ignorar as questões históricas que o definiram. O especifismo sem dúvida alguma é a maior força do anarquismo na América Latina, mas no texto, o especifismo ganha o mesmo “peso” que o neoanarquismo e o autonomismo. O especifismo está envolvido em práticas sociais e entidades de classe, mas é tratado pelo texto como um mero “retorno aos clássicos”. A impressão que temos é que os anarquistas se movem e se dividem de acordo com suas preferência literárias ou autores que rejeitam, o que não é correto.

    – Castoriadis foi citado recorrentemente pelo autor como um teórico do autonomismo. Mas Castoriadis é lido e utilizado pelos especifistas e outros setores do anarquismo, seriam os especifistas também autonomistas? As fronteiras não me parecem claras.

    Por fim creio que o que traz problemas ao texto é a metodologia de definir o anarquismo identitariamente, como identidades políticas perfeitamente separadas e estáveis, à partir de autores, ignorando as práticas sociais, as estratégias, a relevância social e o mais importante, os setores da classe que os anarquistas estão inseridos. Outro problema é classificar como anarquista setores que se “auto-identificam” como tal. A auto-identificação não é um parâmetro muito adequado. A negação do estado tampouco. Esse último parâmetro é supervalorizado demasiadamente à partir da comparação com o marxismo. O anarquismo sempre foi comparado ao marxismo (ou tratado como sua negação). Isso tornou obtuso seu estudo, pois a negação do estado foi evidenciada muito mais do que os outros fatores históricos que o constituíram (classismo, ação direta, estratégias de massas, etc.).

    Creio que para fazer uma análise do campo libertário poderíamos proceder ao inverso da proposta do autor, partir das práticas. Isso não ignora portanto a “literatura militante” que o autor discorreu brevemente. Mas articula o que os anarquistas lêem com o que eles fazem (o que a pesquisadora Simona Cerruti chama de análise êmica). Escrevi algo sobre isso num artigo crítico A E. Hobssbawm (que à propósito de alguns comentários “terríveis” citados acima, Hobsbawm compara sem nenhum fundamento o anarquismo a uma espécie de irracionalismo, de fascismo). Segue o link do artigo: http://ithanarquista.wordpress.com/2013/02/20/rafael-v-da-silva-os-revolucionarios-ineficazes-de-hobsbawm/

    À propósito da colocação anterior isto é uma tendência que sinceramente me incomoda em determinados estudos sobre o tema: ou o anarquismo é estudado pelos discursos políticos de determinados autores (como foi feito pelo artigo) escolhidos pelo parâmetro da “negação do estado” ou o anarquismo é estudado apenas por suas práticas (ignorando a literatura militante que “abastecia” estes). Não há uma única linha por exemplo no artigo, sobre a prática militante.

    Outro comentário que eu acho necessário é que o autor dá muita ênfase “às disputas internas do anarquismo”. Nesse ponto o anarquismo não é diferente de nenhuma corrente política. Não acho que os anarquistas estejam totalmente fragmentados. Olhando para os processos políticos contemporâneos, temos por exemplo no Brasil a Coordenação Anarquista Brasileira que reúne nove organizações (e mais duas ou três em processo de ingresso) num país que é continental (ainda que possamos questionar o tamanho e a presença política dos anarquistas, mas isso é outra coisa). Na América Latina temos um processo interessante de aproximação política e na Europa a tendência também caminha neste sentido “de unificar” e não fragmentar. Creio que o autor generaliza situações particulares ou é apenas uma impressão pessoal (novamente recorro aos argumentos anteriores, com que base o autor faz esta afirmação de que o campo libertário está acometido pela fragmentação, pelo sectarismo e exclusivismo?).

    Sobre os comentários acima, tirando as intervenções propositivas há pouco de fundamento nas afirmações (umas mais descabidas que as outras). Li e me horrorizei com tanto desconhecimento e preconceito reunido em afirmações das mais superficiais (um comentador acima compara o anarquismo ao fascismo!).

    Ninguém é obrigado a ter simpatias com o anarquismo, mas numa discussão o que se pede é o mínimo de rigor e conhecimento, se não os preconceitos vem à tona e terminam o debate.

    Enfim não vou me prolongar porque o debate é amplo. Tentei contribuir da melhor maneira possível, de modo crítico e fraterno. Vou ler as próximas partes do artigo. Recomendo o livro “Black Flame” para o autor, onde os sulafricanos desconstróem muitos mitos sobre o anarquismo que ajudariam na proposta de pesquisa do autor.

    Abraços e boa sorte.

  25. Apesar da necessidade de valorizar o esforço contido nesse texto em organizar algumas ideias importantes para refletirmos sobre o “campo libertário hoje”, até essa parte do artigo, pelo menos, quase nada de substantivo sobre o assunto foi tratado.

    Inclusive, a tipologia, essencialmente literária e livresca, restringiu muitos aspectos que atestam a grande diversidade do campo “teórico” anarquista e libertário. Que dirá então do campo “prático”!? Aliás, esse foi o mote da crítica de muitos compas aqui e fundamentalmente me parece o cerne da questão: não se pode ensaiar um exercício de esquematização do campo libertário sem atentar para a dimensão que é mais cara para tal campo: sua prática sócio-política. Do contrário, teremos pouco menos que outro exercício de “história das ideias libertárias”, não menos válido e interessante, mas nada tão longe do “campo libertário”.

    Por fim, apenas uma impressão que tive e que me incomodou muito, sobre uma possível valoração evolucionista e autocentrada do autor, ao apresentar sua tipologia das “três grandes vertentes libertárias”:

    Anarquismo clássico (o “nascimento da ideia”) – Neoanarquismo (“revisões necessárias da idea”) – Autonomismo (o “amadurecimento da ideia”: curiosamente, posição onde se encontra o autor).

    Tenho acompanhado e lido muitos textos do Marcelo Lopes de Souza, e não apenas aqui no PP. Aprecio seu trabalho, e muito. No entanto, e até aqui onde parou, esse artigo é um verdadeiro desastre.

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