A dimensão erótica do discurso bocageano é a crise da razão. Mas o rompimento político com o projeto cartesiano procede de maneira estritamente tensa. Por Joacy Ghizzi Neto

A pretensão de perdoar e absolver Manuel Bocage devido a sua habilidade na “arte de fazer versos” é uma manobra, além de cooptadora, pretensiosa; propõe uma falsa aliança a fim de anular as contradições expostas pela sátira do “Maldito” em compensação pela sua lírica. Este “auto-elogio”, proposto por Olavo Bilac, é lembrado por Moisés (p. 63: 2001) de maneira oportuna; esta manobra narcisista é simplesmente inócua porque não há uma separação entre a lírica e sátira para e em Bocage; ambas são uma só manifestação de repúdio às estruturas sociais em decadência do século XVIII.

bocage2phpA guerra tácita declarada contra o seu tempo, ao absolutismo e seu aburguesamento, à mediocridade do arcadismo, não torna Bocage simplesmente “um homem a frente de seu tempo”. A resistência de Bocage ao concerto do mundo é aberta e conflituosa. Deslocá-lo simplesmente de seu tempo afasta o problema e da crise que gira em torno da ascensão e pretensões do século das Luzes. Bocage é um rebelde, com ou sem causa, que rompe com a idéia de uma História harmoniosa embutida no Absolutismo e ao conforto escapista do Arcadismo.

Bocage não está à frente de nada ou de ninguém, e muito menos pretende retornar a qualquer ponto. A resistência à Razão é travada numa crise diante da batalha “desigual” entre o Eu x Mundo. Esta dicotomia torna Bocage um estrangeiro dentro da “sua própria” casa. Porém nenhum dos pólos está disposto a ceder e a luta é também contraditória; a hábil disposição do status quo em assimilar seletivamente as já inevitáveis transformações do século XVIII e também um apelo ao sentimento de culpa encontrado, entre outros, no recorrente soneto:

Já Bocage não sou! . . . À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento . . .
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa! . . . Tivera algum merecimento,
Se um raio de razão seguisse, pura!

[…]

O “Eu” já não está mais em batalha contra o “mundo”. O conflito é também interno, quem está em crise é o próprio eu, assim como as estruturas sociais de sua época. Bocage refuta a episteme canônica, porém não encontra nenhuma outra para se amparar; é o homem sem porto dentro da “própria” Pátria. O mar de Bocage não possui um horizonte, é a profundidade que é explorada. A terra não é mais plana, são as suas dobras que lhe desguiam. Bocage não é um flâneur, pois não encontra nenhuma espécie de refúgio na multidão. Além da solidão, a multidão não oferece nenhum amparo o que o faz preferir a morte a qualquer conformismo:

bocage3php[…]

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

O desejo pela morte não é somente um desejo de morrer ou de cessar de existir. A refuta das vontades alheias, da multidão, demonstram a insubordinação do poeta que resiste ao espírito clássico para escolher o “eu” como ferramenta de transformação e nenhuma outra escola, moral ou instituição específica.

Erraste em produzir-me, oh Natureza
Num país onde todos fodem tudo
Onde leis não conhece a porra tesa!

Uma leitura “rápida” e descuidada poderia colocar Bocage então como uma aberração ou em algum caso patológico. Porém, acredito eu, que a inadaptação não vem só do poeta, mas mais uma vez do paradoxo entre o indivíduo deslocado e as estruturas arcaicas e hipócritas, que não reconhecem a própria realidade nas quais estão inseridas ou se inserem. Não é necessária uma vitimização de Bocage perante a moral, e nem uma busca por uma benevolência, que também não existe, da moral em relação ao poeta. A Liberdade tão clamada pelo poeta, que jamais pousa sobre a Lísia, é corrompida pelo despotismo.

É nesse desamparo e desencanto com o concerto do mundo que Bocage se encarna em Camões e rompe o seu silêncio erótico para propor uma espécie  de diálogo aberto:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo.

O fardo que Bocage já não suporta mais carregar, comparando e dividindo seu peso com Camões, se manifesta de maneira diferenciada em relação ao Amor. Não intento propor uma banalização entre amor carnal e espiritual, material ou metafísico, mas me parece que Bocage propõe uma outra relação erótica com o Amor. Enquanto Camões procura Vênus para elegê-la como protetora coletiva dos Lusos, Bocage coloca Vênus ao seu próprio dispor. A dimensão erótica do apelo aos deuses pagãos é rebaixada, não num sentido pejorativo, mas para servir o poeta em particular. O Deus dos deuses e Vênus entram no jogo amoroso de Bocage com sua amada:

Talvez o próprio Júpiter suspira!
Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois?… Sois de Vênus?
É mentira; sois de Marília, Sóis de meus amores
.

A dimensão erótica do discurso bocageano é a crise da razão. Mas o rompimento político com o projeto cartesiano procede de maneira estritamente tensa. Não existe a possibilidade de escolha pela Loucura em oposição à Razão sem um conflito latente. Esta tensão é encontrada em diversos sonetos:

bocage4phpImportuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

[…]

Se a Razão ainda persegue Bocage, é porque o poeta não está ainda livre da importuna. E provavelmente nunca esteve. Talvez seja este conflito uma das formas de manter o seu discurso – erótico – potente. Para Bataille, o erotismo só é possível diante do segredo e os extremos do erotismo e do sagrado são diferenciados porque o primeiro nos leva ao silêncio, para fora dos homens, enquanto que o segundo é passível de um discurso. Se a santidade e o erotismo estão em afinidades opostas, manter Bocage não-nu, como um santo, é “contraditoriamente” manter sua potencialidade erótica, é a possibilidade de manter as fissuras do Terremoto de 1755 ativas. O tremor agora é constante.

De acordo com a definição de Bataille, na qual o vício poderia ser representado como uma arte dedicada de maneira maníaca ao sentimento da transgressão (p. 403, 2004), Bocage, com meu acordo, pode ser então um viciado. Não pela sua filiação a vida boêmia, que pode também ser uma desculpa para sua obra corrosiva, mas pela potência erótica do cruzamento entre a lírica e sátira de sua vida e obra.

REFERÊNCIAS:

Bataille, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
Bocage. Sonetos e outros poemas. São Paulo: F.T.D., 1994.
Camões, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
Moisés, Carlos Leite. O desconcerto do mundo. São Paulo: Escrituras, 2001.

Ilustrações: Johann Heinrich Füssli, dois quadros representando O Pesadelo

1 COMENTÁRIO

  1. Desejo carnal(Soneto erótico)

    O meu cantar sinto-me em êxtase do gozo,
    Depois tira o roupão,torna a sentir-me nua
    Como a luz delirante da paixão,meu amor
    Bebo-a dentro do leito,bebo-a contigo!

    Ó minha carne,como a noite voluptuosa…
    Se és minha amante fatal do prazer;
    Lambo os teus contornos todo o corpo,
    O alarde do vosso palor em leito.

    O talhe do vosso carinho,meu amor…
    Delira-me o ser fatal e ereto,amor!
    Os afagos sensuais do prazer e fogo.

    Hás de sentir-me a tesão profunda,meu amor
    O dulçor luxuriante,beija-me fortemente!
    E tu quiseras beber-me a volúpia do amor!…

    AutorLucas Munhoz

    Também fiz um soneto bem erótico e ardente! Não é uma pornografia nem vulgaridade em meu bom soneto para você,um grande sonetista e poeta Bocage! kkkkk

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