Por John McSweeney
Nos últimos dias a Turquia vem sendo tomada por perturbações sociais em larga escala do tipo que não se vê desde a desastrosa crise econômica de 2000-2001. Os protestos começaram no dia 28 de maio em Istambul, quando alguns ambientalistas e ativistas locais ocuparam o Parque Gezi, protestando contra a derrubada de um dos poucos grandes parques verdes na metrópole urbana em expansão que é Istambul — uma cidade de mais de 13 milhões de pessoas — para a construção de um shopping center.
No entanto, o que começou como um protesto de um pequeno número de pessoas se tornou uma crise a nível nacional após a circulação nas redes sociais de imagens da abordagem repressiva com que a polícia estava enfrentando os protestos. Fotos de tropas de choque totalmente equipadas jogando spray de pimenta e gás lacrimogênio em manifestantes pacíficos e desarmados, muitos deles mulheres, provocaram uma indignação generalizada e essa indignação resultou em uma cacofonia de “bastas” através do twitter e em outros lugares.
Os manifestantes tiveram a adesão de muitos jornalistas conhecidos, atrizes e atores famosos e também de cantores cuja popularidade ajudou a publicizar a brutalidade policial. Ser uma figura pública conhecida, no entanto, não oferece nenhuma proteção da brutalidade policial na Turquia. A polícia atacou a todos com igual vigor e então contas de twitter no país inteiro viram imagens do jornalista famoso Ahmet Sik com seu rosto coberto de sangue da repressão policial.
Blecaute midiático
A participação de envolvidos no mundo cultural turco – Taksim, a fonte inicial dos protestos, é o âmago cultural da Turquia – reflete um descontentamento crescente entre as classes liberais contra as intervenções cada vez mais autoritárias do governo na produção cultural. Medidas que vão desde a imposição de códigos de vestimenta nas novelas, a substituições de vozes críticas da TV e dos jornais até à colocação de administradores pró-governo para a elaboração de editoriais vêm causando queixas de que a mídia independente na Turquia está tendo o seu fim.
Na verdade, a extensão em que a mídia tem sido amordaçada nos últimos anos tem também gerado combustível para os protestos; de fato, enquanto estava claro para a maioria na cidade o que estava acontecendo na rua em Taksim, a mídia convencional simplesmente ignorou os acontecimentos – apesar do fato de a Haber Turk, uma das maiores estações de TV, estar literalmente na esquina do Parque Gezi! Esse “número” de ignorância fingida inflamou o senso de indignação popular em relação ao governo e à mídia dirigida pelo governo e confirmou os medos de muita gente de que o país está lentamente marchando de olhos fechados para um regime autoritário. Conta-se uma história engraçada de que um homem em Besiktas jogou sua TV pela janela do apartamento, frustrado porque, ao invés de estar falando da tropa de choque atacando manifestantes e enchendo o seu bairro de gás lacrimogênio, um canal importante da TV turca escolheu transmitir um programa sobre pinguins [veja aqui a quarta ilustração a contar de cima].
Mercantilização da cidade
O medo do governo autoritário que se sente entre a burguesia liberal de Istambul também é sentido de forma aguda pela classe operária organizada da Turquia, que há menos de um mês enfrentou uma repressão policial em larga escala durante os protestos anuais do 1º de maio. O governo decidiu impedir o protesto anual sob o pretexto de preocupações de “segurança” relativas ao trabalho nas construções. No entanto, poucas semanas depois, os fãs do clube de futebol Galatasaray puderam celebrar a vitória no campeonato no mesmo lugar que havia sido considerado “inseguro” para manifestações de massa algumas semanas antes.
Isso mostrou para muitos que o governo está deliberadamente fechando os espaços de dissidência na cidade, e a reconstrução da Praça Taksim é vista por muitos como o começo de um projeto mais amplo de despolitizar e aumentar a vigilância no centro da cidade e também como parte uma estratégia de reconstrução mais ampla para gentrificar e mercantilizar a região. A Praça Taksim tem um valor particularmente afetivo para os corações e mentes das forças progressistas na Turquia porque se trata do local em que ocorreu um massacre contra manifestantes do 1º de maio no fim dos anos 70.
O processo de mercantilização urbana é uma das principais características do desenvolvimento de Istambul, com a destruição de favelas e a sua substituição por construções multibilionárias para a elite de Istambul, a construção de arranha-céus de arquitetura modernista e a construção de uma ponte Bosphorus, que estão mudando dramaticamente a paisagem histórica de Istambul. Todas essas coisas forçaram o Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO a ameaçar classificar o patrimônio histórico de Istambul como “em perigo”. Os minaretes da arquitetura histórica da cidade estão sendo obscurecidos pelo desejo do governo municipal e de investidores de aplicar capital latente na construção de prédios cada vez mais altos e cada vez mais shopping centers – o que é irônico quando se pensa que o AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento, no governo] é considerado uma força conservadora e com raízes islâmicas.
Velhas divisões e novas solidariedades
As raízes “islâmicas” do AKP são um argumento utilizado frequentemente para tentar falar do conflito na Turquia como se este fosse determinado por uma guerra cultural entre os kemalistas “secularistas” de antigamente e as classes médias islâmicas emergentes. Essa narrativa é popular em um largo segmento dos apoiadores do CHP (Partido Republicano Popular) – o maior partido de oposição parlamentar na Turquia.
De fato, a percepção dessas divisões não foi melhorada quando na última semana o AKP decidiu impor uma nova legislação, banindo a venda de álcool após as 10 horas da noite, sem uma discussão mais ampla. Adicionalmente, revelou-se que a terceira ponte a ser construída teria o nome de um sultão otomano, Yavuv Sultan Selim – um sultão infame pela sua perseguição aos Alevitas do Império Otomano.
Essa narrativa também interessa ao AKP porque permite unir os seus apoiadores pela lembrança constante do tratamento discriminatório que os muçulmanos de fé sofriam antes da ascensão do AKP ao poder. Ela cria uma forma de distrair a atenção da sua atitude relaxada em relação ao capitalismo financeiro e a sua tentativa de disfarçar o desenvolvimento neoliberal com uma faceta islâmica como uma forma de manter uma hegemonia neoliberal.
Trata-se, então, de uma narrativa conveniente tanto para o AKP quanto para o CHP mostrarem as divisões na sociedade turca nesses termos. É verdade que muitos dos slogans e a linguagem usada por uma parte significativa dos manifestantes de sábado (1 de junho) tiveram inspiração kemalista, mas talvez mais importante do que isso foi o fato de os protestos não serem totalmente conduzidos por uma narrativa kemalista. Isso faz com que as agitações atuais tenham uma diferença qualitativa dos últimos protestos generalizados, organizados em 2007 pela elite kemalista contra um plano de Erdogan se manter como presidente. Os protestos atuais, em contraste, foram constituídos principalmente por pessoas jovens sem filiação política e, portanto, mais afins às formas de protesto a que nos acostumamos nos últimos anos na Europa e aos protestos Occupy nos Estados Unidos.
O mais significativo de tudo, no entanto, para um país que é muito patriarcal, é o fato das mulheres serem uma parcela enorme dos manifestantes. Portanto, uma generalização clara que pode ser feita dos protestos é que eles são pluralistas, refletindo muitos setores diferentes da sociedade turca. Nacionalistas turcos marchando ao lado de nacionalistas kurdos, liberais marchando com socialistas, héteros e gays, homens e mulheres, ambientalistas e sindicalistas. E, talvez o mais interessante de tudo – em um país em que as paixões pelo futebol criam divisões profundas de acordo com o time apoiado – veem-se cenas de fãs de clubes rivais se ajudando a proteger frente à repressão policial.
Para quem trabalha ou passa algum tempo andando por Istambul, uma das primeiras coisas a que tem que se adaptar é a luta diária para se enfiar no sistema de transporte público lotado. É um caso de luta corporal em que nenhuma trégua é dada. Trata-se de empurrar e passar por cima ou ser empurrado e passado por cima. Mas, nos protestos, a solidariedade está em todo lugar. E ela corta através de todas as divisões, com as pessoas das casas próximas oferecendo comida e abrigo, estudantes de medicina oferecendo ajuda médica na hora e lojas abrindo suas portas, moradores abrindo suas redes WiFi para que os manifestantes possam contornar o fechamento da rede 3g pelo governo.
Ainda continua por saber se essa agitação pode se desenvolver para se tornar um movimento sério que possa construir uma oposição efetiva, aberta e progressista ao projeto neoliberal do AKP. Essa é uma questão que não é exclusiva da Turquia, mas também de outros países da Europa e no Oriente Médio. Com a presença de tantos partidos velhos de oposição, manchados pelos excessos do passado, será uma tarefa difícil criar uma visão totalmente nova. Mas uma coisa é clara: após a libertação do Parque Taksim e do Parque Gezi, enquanto as pessoas sentavam naquela grama de parque preciosa e recentemente retomada, qualquer um andando no meio das multidões teria, numa atmosfera carnavalesca, a sensação clara de que algo mudou na Turquia.
Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original aqui.
Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas,
tanto do Brasil como de Portugal.
Happiness is a warm gun
O problema com a esperança é o seguinte: ela é a última que morre. Ou seja, o esperançoso morre antes.
Aliás, no mito de Pandora, o único “dom” que não escapou foi ela. Quem? A esperança, com a qual os gregos antigos não tinham muita afinidade…