Por Stephanie Fenselau

“ (…) Somente a sorte de hoje é insegura e se a muda transformará sua sorte. Ao novo céu como a árvore forte, a colheita de ontem o transfigura (…)”

Poema de Luis Vidales [1]

Na noite de terça-feira, dia 11 de junho, mal sabia o que me esperava.

Depois de fugir das bombas de gás lacrimogênio e das balas de borracha disparadas pela Polícia Militar na Av. Paulista, corri para algum abrigo seguro com um amigo. Depois de um tempo, os semáforos indicavam a orientação e os carros cumpriam sua ordem. A situação se normalizava. Segui meu caminho, fui encontrar uns companheiros por volta das 22 horas na esquina da Av. Paulista com a Av. Brigadeiro. Logo quando cheguei a ROCAM (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) com mais de 10 homens da Polícia Militar montados em suas motos estacionaram exatamente nesse local. Como não devia nada a ninguém – principalmente ao Estado – fiquei conversando com uns camaradas que estavam à espera da abertura do metrô. Não demorou 2 minutos e esses polícias com seu aparato repressivo intimaram-nos: armas em punho, apontadas para a cabeça de um, nas costas, um chute na perna de outro. Revistaram todos. Reviraram minha mochila, só tinha roupas, um livro e documentos. Mantiveram-nos ali e nos interrogaram se estávamos na manifestação. Ficavam provocando: “O que você estava fazendo na manifestação?”; “Não tinha coisa melhor pra fazer?”; “Por que saiu de sua cidade pra vim pra cá?”; “Devia ter ficado lá.”; “Você é burra!”. Tentei responder uma e outra questão, mas não era isso que queriam. Quando levantaram a voz me mantive calma. Afinal, qualquer palavra atravessada era desacato de autoridade.

Manifestar é um direito garantido a custo de muitas lutas! Sim, estava na manifestação, mas já estava indo embora.

Quem dera! Os policiais não me deixaram telefonar para ninguém e sem saber exatamente o porquê me levaram para o 78° Distrito Policial no bairro dos Jardins.

Era a única mulher. Fiquei em pé um tempo considerável. Depois me colaram numa pequena sala onde lacraram meus pertences e uma policial foi me revistar. Fiquei totalmente nua, enquanto revistava as minhas roupas. Choveu durante a manifestação, então eu estava molhada e com essas roupas permaneci. Colocaram-me numa cela com apenas um vaso no chão, um lugar escuro e úmido. Detalhe: ainda não sabia qual o “crime” que tinha cometido. Estava presa sem saber por quê.

De madrugada me chamaram para depor. Somente nesse momento descobri que estava sendo acusada pelo Estado por formação de quadrilha e dano ao patrimônio público. E o pior, era flagrante!

Flagrante? Estar na Av. Paulista esperando colegas, conversando com pessoas era um crime? Formação de quadrilha? Com pessoas que conheci naquele instante? Ou participar de uma manifestação política para reivindicar direitos era o crime daquela noite? Alguma estranha semelhança com as narrativas da época da ditadura militar… No entanto, estamos vivenciando a plena democracia burguesa.

A história não para por aí. Sem noção das horas, depois de passar a noite na cela do 78° DP sem comer, com essa acusação absurda, fui levada no dia seguinte para o 89° Distrito Policial no Morumbi. Este é um lugar de trânsito, as presas ficam lá para depois serem encaminhadas aos Centros de Detenção. Fiquei incomunicável, tive que torcer para que alguém me encontrasse lá!

Na 89° DP muitas histórias, uma pior que a outra. É triste ouvir a narrativa de vidas sofridas, de mulheres trabalhadoras que estão condenadas a ficarem reféns de um sistema prisional falido, autoritário. Prende-se e depois pergunta-se o que fez! Enquanto isso deixam as pessoas mofando à mercê da violência policial carcerária. Além de parecer ser um negócio um tanto quanto lucrativo, haja em vista o processo de privatização dos presídios em curso no Brasil [2].

Naquela noite achei que o dia seguinte seria melhor e adormeci. Engano meu. O “bonde” chegou cedo. Um carro totalmente fechado com apenas uma ventoinha que faz barulho e aparentemente seria para circular o ar. No escuro, em alta velocidade, debatendo de um lado para o outro, algemadas uma no braço da outra fomos, até o CDP de Franco da Rocha. No meio do caminho passei muito mal, falta de ar, tontura, vontade de vomitar. Não fui a única, uma outra presa teve uma convulsão e ficamos batendo nas paredes e gritando para o guarda parar o bonde. Foi em vão. Não parou, a presa não foi medicada.

Em Franco da Rocha novamente fui revistada duas vezes. Novamente nua, agora com um agravante, agachar no espelho, abrir a vagina e fazer força. Essa era a ordem. E passei, como todas que ali vão parar, por essa humilhação. Depois, levaram-me para uma cela e lá permaneci. Achei que dormiria naquele lugar frio, úmido, mofado, com bastante água no chão. Apesar das adversidades, sabiam onde eu estava.

As coisas complicaram de noite. Estava jantando quando uma policial me disse pra trocar de roupa e jogar a comida no lixo. Eu me troquei rapidamente, cheguei a pensar que iria embora. Nada! Levaram-me para uma viatura ambulância. Perguntei para onde estava indo, não me responderam. Questionei se meu advogado sabia que estava saindo de lá, sem resposta. Mandaram-me entrar no vagão, me deram um comprimido que disseram ser plasil e me vi indo sei lá para onde.

E agora? O que vão fazer comigo? Para onde estão me levando? Por que me deram um remédio? Queriam me dopar? Uma sensação horrorosa. Estar totalmente a mercê do Estado. Atada. Eles têm armas, têm a legitimidade e o monopólio oficial do uso da violência e sabemos bem que a polícia usufrui desse poder sem pestanejar, como são os diversos casos, noticiados (ou não) nas periferias das grandes cidades [3].

No meio da noite cheguei em Tremembé, no Vale do Paraíba, presídio feminino de segurança máxima. Nossa! Que crime gravíssimo eu cometi! Estava em uma manifestação e vim parar no presídio de criminosos que não podem se misturar com presos comuns! Será que sabem onde estou? Como vão me encontrar aqui? Quem me transferiu para esse lugar? Ordem do diretor de Franco da Rocha? Do secretário de Segurança? Por quê? Muitas perguntas sem respostas.

No dia seguinte as carcereiras me perguntavam se eu sabia por que estava lá. Imagine só, se elas não sabiam, eu não fazia ideia. A cela era individual, totalmente fechada, apenas uma janela e na porta uma pequena abertura onde passava a comida. As horas não passavam, a angústia aumentava!

No final da tarde vieram me chamar! O juiz concedeu a liberdade provisória. Nossa! Que alívio poder sair da prisão! Foram os três dias mais longos da minha vida!

No entanto, as coisas ainda não estão resolvidas. Liberdade provisória com restrições de saída do domicílio. O Estado tenta, com suas garras jurídicas e institucionais, amarrar os militantes que lutam por seus direitos, criminalizar a luta dos trabalhadores. No dia em que fui presa, mais 20 manifestantes também foram, e na quinta-feira mais de 200 pessoas foram detidas. Ao mesmo tempo, pelo Brasil, diversas manifestações são reprimidas por denunciar os crimes dos megaeventos, como os despejos que antecedem a Copa do Mundo e as fortunas injetadas nos bolsos do empresariado da construção civil.

A luta continua e não podemos esmorecer! Não é apenas o aumento da tarifa, são os jovens, os trabalhadores que gritam pelo direito à cidade. Nossa indignação se volta para a necessidade de repensar a estrutura econômica, política, jurídica, militar que sustenta o Estado democrático de direito. Indago: direitos para quem?

Notas

[1] Poema: Ao Lutador. Luis Vidales (1900-1990) é um poeta colombiano. Tradução de Jeff Vasques.

[2] Em uma rápida pesquisa pode-se ter contato com alguns dados: http://www.brasildefato.com.br/node/11838; http://www.brasildefato.com.br/node/10833

[3] Podemos citar o movimento das Mães de Maio, que tiveram seus filhos mortos pela chacina promovida por policiais e paramilitares em 2006, e infelizmente se repete quase diariamente nas periferias das grandes cidades.

13 COMENTÁRIOS

  1. Revoltante parece cena de filme de suspense. Necessário divulgação ampla deste relato.

  2. Companheira Sthefanie, quando soube da sua prisão imaginei algo como você descreveu. Você em algum lugar da manifestação sendo presa por nada. Isso porque sei das suas convicções políticas e sei que enfrentamento gratuito com a polícia não faz parte delas. Angustiada pela prisão de companheiros, desde a algum tempo, me pergunto: o que fazer diante da possibilidade de ser presa? Todos nós, manifestantes ou não, estamos diante condição, cada vez mais indiscriminada. E pensava, vou ler Gramsci, quem sabe, do cárcere, talvez, possa ter alguma idéia. Não precisou ir tão longe, ao fascismo italiano. Ali mesmo, na Av. Paulista, vindo de uma companheira próxima, me veio a resposta depois de suas 68 longas horas… Diante da barbárie, responder com dignidade de lutar e não esmorecer, mesmo que o medo, o frio e a escuridão nos espreitem. Um forte e quente abraço de militante.

  3. Este é o retrato do sistema prisional, dá para entender o porque de muitas questões do cotidiano ligadas à segurança pública.
    Isso é uma indústria de revoltados. Pessoas revoltadas se inteligentes fazem a sua revolta trabalhar ao seu favor… dai ?

    Solidariedade com a Stephanie Fenselau, sua dor é nossa também.

  4. Stephanie, não sei bem o que dizer num momento como estes, apenas me solidarizo com você na luta… como foi dito acima, “sua dor é nossa também”.

  5. Stephanie, senti profundamente (com certeza não com a mesma intensidade que você) a narrativa. Vendo isto me vem diversas sensações, a única que consigo identificar ser “boa” é que não podemos deixar o sofrimento seu e de outros companheiros passar em vão. Necessitamos acabar com esse estado repressor fantasiado de “democracia”. Dou-lhe todo meu apoio para que precisar.
    “A sua dor é nossa também!”

  6. Infelismente, cara Stephanie e demais cidadãos que lutam pelo direito legítimo do povo,
    Isto é algo já adotado há muito na chamada “democracia”. Veja o (des)exemplo da prisão de Guantánamo, feita pela autoproclamada “maior democracia do planeta”.
    A diferença é que hoje, no Brasil, é feito a mando e com apoio do “Partido dos Trabalhadores”. Afinal, este nome serve apenas de fachada para esconder os interesses das elites, grupo da qual hoje fazem parte as pessoas que outrora foram também lutadores pelas causas sociais. Hoje lutam pelas causas econômicas!

  7. É um grande absurdo… Absolutamente lamentável que atrocidades pelas quais você passou, tantas outras pessoas passaram, passam e passarão. A polícia brasileira não está preparada para lidar com o crime, nem sabe a diferença entre crime e direito do cidadão. Que vergonha ter que conviver com aberrações como esta que são alimentadas pelo próprio Estado. Sinto muito pelo ocorrido, que não seja em vão…

  8. Só posso me solidarizar e divulgar. É o mínimo que posso fazer para enfrentar esse absurdo, semelhante à época a ditadura. Cadê a Anistia internacional e a OAB que não se manifestam?

  9. Li muita coisa desde semana passada. Aprendi o que é Ministério Público, PEC e como as empresas de ônibus disfarçam sua contabilidade. Atentei para os perigos da direita e esquerda. Tudo impressionante. Nada tanto quanto esse depoimento. Se houvesse uma reivindicação apenas, não tenho dúvidas: PAREM A ARBITRARIEDADE POLICIAL.

  10. Não sei se o comentário acima sobre o aprendizado dos últimos dias, do Frederico, é em tom metafórico ou literal. Em ambos os casos é importante. Mas, se for literal, temos um exemplo que ilustra bem o caráter pedagógico desse fantástico movimento que tomou as ruas. Os momentos inssurrecionais sempre promovem saltos históricos, aceleram o tempo, aproximam espaços. Por isso tantas declarações e depoimentos de perplexidade, dúvida, excitação, emoção, raiva, dor, etc. É difícil processar tudo o que está ocorrendo de uma vez só. Ao mesmo tempo, temos a tarefa de tentar fazê-lo, para que possamos interferir no rumo das coisas, sem sermos simplesmente levados a reboque. Somos todos “Fredericos”, aprendendo a cada minuto com a história, sendo escrita neste exato momento…

  11. oi pessoal, fizemos uma tradução em francês do relato da pacata para divulgar nos meios internacionais a arbitragem policial que está acontecendo no Brasil… querem publicar no passa palavra?

  12. Diana Helene,
    O Passa Palavra está a organizar uma secção onde publicaremos todos os artigos traduzidos. Por favor, envie-nos o texto pelo endereço do contacto para o incluirmos nessa secção. E muito obrigado.
    Cordialmente,
    o colectivo do Passa Palavra

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