Por Pablo Polese

 

Embora a formação social capitalista seja, tal como toda formação social quando considerada em sua escala histórica ampla, indubitavelmente transitória, do ponto de vista das forças sociais imediatamente engajadas na luta contra sua dominação implacável essa formação social está longe de ser transitória, pois o projeto socialista só pode se transformar numa realidade irreversível se os socialistas forem capazes de completar inúmeras “transições dentro da transição”, “revoluções dentro da revolução”. Assim, a superação do sistema do capital só poderá ocorrer por meio de um projeto de mediações concretas, pelas quais a estratégia final (a transcendência do Estado, capital e trabalho) seja progressivamente traduzida em realidade. O problema é como “reconhecer as demandas da temporalidade imediata sem ser por elas aprisionado”, e simultaneamente “permanecer firmemente orientado para as perspectivas históricas últimas do projeto marxiano sem se afastar das determinações candentes do presente imediato”. Por isso o labirinto a ser equacionado pelos revolucionários se define pelo paradoxo de que “já que para o futuro previsível os horizontes da política como tal não podem ser transcendidos, isso significa simultaneamente ‘negar’ o Estado e atuar no seu interior”.

Ora, o fenecimento do Estado durante o processo revolucionário impõe um desafio duplo a essa tarefa revolucionária “articuladora” das temporalidades imediata e de longo prazo. Isso porque, enquanto “órgão geral da ordem social estabelecida, o Estado é inevitavelmente predisposto a favorecer o presente imediato e resiste à realização das generosas perspectivas históricas da transformação socialista que postulam o “fenecimento” do Estado”. Ou seja, os próprios determinantes objetivos constitutivos do aparato estatal e suas articulações orgânicas com o sistema do capital impõem o duplo desafio de

(1) instituir órgãos-não-estatais de controle social e crescente autoadministração que [possam] cada vez mais abarcar as áreas de maior importância da atividade social no curso da nossa “transição na transição”; e, conforme permitam as condições; (2) produzir um deslocamento consciente nos próprios órgãos estatais – em conjunção com (1) e através das mediações globais e internamente necessárias – de modo a tornar viável a realização das perspectivas históricas últimas do projeto socialista. (ibid: 597)

Nesse sentido, transcender o Estado envolve a maturação de uma série de condições objetivas e subjetivas. Dentre as condições objetivas, toma destaque o desenvolvimento das forças produtivas, que permita a projeção de um “socialismo da abundância” e não um “socialismo da miséria”. Dentre as condições subjetivas, assume relevo não a conquista prévia de uma consciência de classe revolucionária e sim a criação dos órgãos sociais de poder popular capazes de reabsorver as atividades sociometabólicas hoje em dia cumpridas pelo Estado, uma vez que o Estado não só é um “órgão geral” de determinada sociedade como também articula objetivamente a sociedade particular com a totalidade social. O Estado é “mediação por excelência”, porque é ele que articula, ao redor de um “foco político comum”, a “totalidade das relações internas” (desde os intercâmbios econômicos até os laços estritamente culturais) integrando tal sociabilidade, em muitos sentidos, também à “estrutura global da formação social dominante” (op. cit). Tal mediação precisa ocorrer também e mais ainda durante a transição, em especial no que diz respeito ao caráter internacional da revolução, e a classe trabalhadora precisa criar órgãos mediadores à altura da tarefa.

O que torna o legado político de Marx insuficiente à análise do papel da política na transição para além do capital hoje em dia é o fato de que na época de Marx o capital não havia ainda se tornado um sistema efetivamente mundializado, dotado de uma estrutura geral de comando político sob a forma de um correspondente sistema de Estados globalmente interconectados – por isso seu caráter essencialmente mediador não pôde ser apreendido adequadamente por Marx. Mészáros sustenta que, devido a isso, não é “de modo algum surpreendente que Marx nunca tenha tido sucesso em sequer rascunhar os meros esboços de sua teoria do Estado, apesar de este receber um lugar muito preciso e importante no seu sistema projetado como um todo”.

Segundo o filósofo húngaro, hoje em dia a situação é absolutamente diferente, pois o sistema global do capital, “sob uma variedade de formas muito diferentes” e, em verdade, contraditórias, encontra um “equivalente político na totalidade das relações interdependentes entre e no interior dos Estados”. Tal situação torna a elaboração de uma teoria marxista do Estado não só efetivamente possível e necessária, mas, em verdade, uma tarefa vital para que as estratégias socialistas se tornem viáveis.

Ainda assim, o núcleo fundamental da proposição política marxiana permanece mais atual que nunca. O projeto socialista advogado por Marx, segundo o qual “Os homens devem mudar de cima a baixo as condições de sua existência industrial e política, e consequentemente toda a sua maneira de ser” permanece sendo a direção fundamental estrategicamente necessária do projeto socialista. Segundo Mészáros, as derrotas sofridas no século XX pelos movimentos socialistas aconteceram fundamentalmente porque o verdadeiro alvo da transformação socialista, a superação do sistema do capital, constituindo-se a “nova forma histórica” de vida social, foi completamente abandonado, e os movimentos revolucionários seguiram a linha de menor resistência, se satisfazendo com as vitórias efêmeras contra alguns sistemas capitalistas nacionais. Sem o alastramento internacional da revolução, permaneceram prisioneiros dos imperativos alienantes e auto-expansivos do próprio sistema do capital, que demonstrou manter vitalidade mesmo em experiências pós-capitalistas, como por exemplo a experiência soviética pós-1917.

O fato de tais vitórias políticas revolucionárias terem se dado em países atrasados não é, segundo a análise de Mészáros, um determinante fundamental, pois mesmo que tais países fossem avançados economicamente a tarefa não teria sido facilitada. O filósofo húngaro afirma que o atraso econômico é apenas “um dos muitos obstáculos que devem ser superados no percurso para a ‘nova forma histórica’, mas de modo algum o maior deles”. Se os países pós-capitalistas fossem mais desenvolvidos, ainda assim a tentação de seguir a linha de menor resistência do capital teria se posto com muita força ou até mesmo de forma mais resoluta do que nesses países “atrasados” que efetivamente romperam com o capitalismo, mas não com o capital. Segundo a análise do autor de Para além do capital, passadas as piores condições da crise que precipitaram a explosão revolucionária, a “tentação de reincidir nos modos de funcionamento do sociometabolismo anteriormente estabelecidos em um dos antigos países ‘capitalistas avançados’ não pode ser subestimada”. Por isso, a reestruturação radical do sociometabolismo, “com suas multifacetadas e inevitáveis dimensões conflituosas internas e externas”, é viável apenas como um poderoso empreendimento histórico, a ser sustentado por décadas, numa revolução permanente. O filósofo húngaro alerta:

Seria tranquilizador pensar, como algumas pessoas de fato sugeriram, que uma vez que os países capitalistas avançados embarcassem na via da transformação socialista a jornada seria fácil. Contudo, geralmente se esquecem, nessas projeções otimistas, que o que está em jogo é um salto monumental da regência do capital para um modo qualitativamente diferente de controle sociometabólico. E, a este respeito, o fato de estar envolvido por uma malha mais aperfeiçoada de determinações estruturais e de práticas reprodutivas e distributivas do “capitalismo avançado” representa uma vantagem bastante duvidosa. (ibid: 598)

O imperativo de se ir para além do capital enquanto controle sociometabólico é uma condição compartilhada pela humanidade como um todo, pois o sistema do capital, por ser um modo de controle global, não pode ser historicamente superado exceto por uma alternativa sociometabólica igualmente abrangente, ou seja, ou se revoluciona todo o globo ou o capital se restaura nas experiências pós-capitalistas que pararam no meio do caminho da revolução internacional. Nesse sentido, qualquer tentativa de superar os limites de um estágio historicamente determinado do capitalismo nacional que esteja sendo revolucionado, devido aos determinantes objetivos internamente insuperáveis do sistema do capital, “está destinado mais cedo ou mais tarde ao fracasso, independentemente de quanto sejam ‘avançados’ ou ‘subdesenvolvidos’ os países que tentarem fazê-lo”.

A ideia de que, uma vez que a relação de forças entre os países capitalistas e os pós-capitalistas tenha mudado em favor dos últimos, a via da humanidade para o socialismo será uma jornada tranquila, é na melhor das hipóteses ingênua. Foi concebida na órbita da “revolução enclausurada”, atribuindo os fracassos do sistema do tipo soviético a fatores externos (até quando falava da “sabotagem interna pelo inimigo”). Nela ignoram-se, ou se deseja descartar, os antagonismos materiais e políticos, necessariamente gerados pela ordem pós-capitalista de extração forçada do trabalho excedente, tanto sob Stalin como depois dele. É a dinâmica interna do desenvolvimento que decide finalmente a questão, decidindo potencialmente pelo pior, mesmo sob as mais favoráveis relações externas de forças. (ibid: 599)

Veja bem: o segredo da transição está na dinâmica interna e não na correlação de forças internacionais, ainda que uma correlação internacional desfavorável possa, sob a forma da contra-revolução que vem de fora, sufocar o início da transição que esteja ensaiando-se em determinada região ou país. É por isso que a transformação socialista deve se tornar irreversível : sua dinâmica interna de desenvolvimento (do microcosmo da família e do chão de fábrica até os Estados nacionais) deve superar as determinações estruturais do capital como modo de controle sociometabólico, o que só se efetivará se a transformação abarcar plenamente as três dimensões do sistema: capital, trabalho e Estado. Tal transformação revolucionária apenas se tornará possível quando o trabalho se tornar não apenas formalmente encarregado do processo sociometabólico, tal como nas sociedades pós-revolucionárias, mas efetiva, genuína e substantivamente no controle do sociometabolismo – através da autogestão do trabalho.

Segundo Mészáros, o processo de transformação socialista “é concebível apenas como uma forma de reestruturação progressiva do poder das mediações materiais herdadas e progressivamente alteradas”.

Desse modo, “desconcertantemente, a ‘expropriação dos expropriadores’ deixa em pé a estrutura do capital”, podendo no máximo realizar uma mudança no tipo de personificação do capital, mas não na própria necessidade de tal personificação existir, seja na forma do capitalista privado, seja na forma do gestor estatal.

Mészáros analisa a sociedade soviética sob esse prisma: segundo ele, a significativa persistência da existência de um “pessoal de comando” na economia e no Estado pós-revolucionário, bem como os movimentos de restauração pós-soviética em toda a Europa Oriental, onde o pessoal de comando mudava para permanecer o mesmo “por assim dizer, [mudando] apenas a carteira de filiação ao partido”, apenas demonstra que as três dimensões fundamentais do sistema do capital (capital, Estado, trabalho) são materialmente constituídas e interligadas, sendo a base política (a qual foi revolucionada, na URSS) apenas uma esfera não-determinante e, portanto, passível de mudanças sem que tais mudanças interfiram profundamente no próprio sistema do capital, que permanece de pé, entificando novas personas do capital. Ou seja,

nem o capital, nem o trabalho, nem sequer o Estado, podem ser simplesmente abolidos, mesmo pela mais radical intervenção jurídica. Não é, portanto, de modo algum acidental que a experiência histórica tenha produzido abundantes exemplos de fortalecimento do Estado pós-revolucionário, sem dar sequer o menor passo na direção de seu “fenecimento”. O trabalho pós-revolucionário, no seu modo imediatamente viável de existência, tanto em antigas sociedades capitalistas avançadas como em países subdesenvolvidos, permanece diretamente atado à substância do capital, isto é, à sua existência material como a determinação estrutural vigente do processo de trabalho, e não à sua forma historicamente contingente de personificação jurídica. A substância do capital, como poder determinante do processo sociometabólico, materialmente encastoado, incorrigivelmente hierárquico e orientado-para-a-expansão, permanece o mesmo enquanto este sistema – tanto em suas formas capitalistas como nas pós-capitalistas – puder exercer com sucesso as funções controladoras do trabalho historicamente alienadas (ibid: 600).

Desse modo, as formas político/jurídicas de personificação do capital, “por meio das quais os imperativos objetivos reprodutivos do sistema do capital continuam a ser impostos ao trabalho, podem e devem variar em consonância com as mutáveis circunstâncias históricas”. Isso ocorre justamente porque o sistema precisa mudar a fim de “remediar algumas perturbações importantes” e evitar ou postergar a crise do sistema no interior de seus próprios parâmetros estruturais. Segundo Mészáros, isso “é verdade não apenas nos casos historicamente raros de mudança dramática de uma forma de reprodução sociometabólica capitalista para uma pós-capitalista”, mas mesmo se pensarmos nas historicamente menos raras variações de Capitalismo politicamente regulado de forma “democrático-liberal” para Capitalismo regulado de forma “militar-ditatorial”, em acordo com as necessidades internas do sistema. Por isso,

através dos séculos, a única coisa que deve permanecer constante, no que diz respeito às personificações do capital em todas essas metamorfoses do pessoal de controle, é que sua identidade funcional deve ser sempre definida em contraposição ao trabalho. (ibid: 600)

Devido à inseparabilidade das três dimensões do sistema do capital plenamente articulado, é inconcebível emancipar o trabalho sem simultaneamente superar o capital e o Estado, justamente porque “o pilar material fundamental de suporte do capital não é o Estado, mas o trabalho em sua contínua dependência estrutural do capital”. Como bem lembra Mészáros, na sequência da Revolução de outubro, Lênin frisou a necessidade de “esmagar o Estado burguês” como “tarefa imediata da ditadura do proletariado”. Entretanto, a dificuldade está em que conquistar o poder de Estado não significa assumir o controle sociometabólico da produção/reprodução e, por isso, embora seja possível em muitos sentidos esmagar o Estado burguês pela conquista do poder político, é “absolutamente impossível ‘esmagar’ a dependência estrutural herdada do trabalho em relação ao capital, já que esta dependência é assegurada materialmente pela divisão estrutural hierárquica do trabalho estabelecida”. A superação dessa dependência, ou seja, a reapropriação dos poderes socioprodutivos do trabalho, historicamente usurpados pelo capital por meio dos processos históricos de subsunção formal e real do trabalho ao capital, só se torna possível pela “reestruturação radical da totalidade do processo sócio-reprodutivo, isto é, por meio da reconstrução progressiva do edifício herdado em sua totalidade”. Ou seja:

Enquanto as funções controladoras vitais do sociometabolismo não forem efetivamente ocupadas e exercidas autonomamente pelos produtores associados, mas deixadas à autoridade de um pessoal de controle separado (ou seja, um novo tipo de personificação do capital), o próprio trabalho continuará a reproduzir o poder do capital contra si mesmo, mantendo materialmente e dessa forma estendendo a regência da riqueza alienada sobre a sociedade. (ibid: 601)

Segundo Mészáros, é isso que torna “totalmente irrealista o palavrório pós-revolucionário acerca do ‘fenecimento do Estado’”. As experiências pós-capitalistas, depois de “expropriarem os expropriadores” e instituírem um novo pessoal de controle, necessariamente foram forçadas a estabelecer politicamente a autoridade de tal pessoal de controle, um controle imposto “na ausência de um direito jurídico anterior para controlar as práticas produtiva e distributiva com base na posse da propriedade privada”. Devido a isso,

o fortalecimento do Estado pós-revolucionário não ocorre simplesmente em relação ao mundo exterior – o qual, após a derrota das forças intervencionistas na Rússia, era de fato incapaz de exercer um impacto importante no curso dos desenvolvimentos internos –, mas sobre e contra a força de trabalho. E tendo em vista a máxima extração politicamente regulada do trabalho excedente, esse fortalecimento se transforma numa perversa necessidade estrutural, e não numa “degeneração burocrática” mais ou menos facilmente corrigível a ser retificada no plano político graças a uma nova “revolução política”. (ibid: 601)

A referência à degeneração burocrática e à esperança de uma revolução política que recolocasse a revolução socialista “nos eixos” é, claramente, direcionada às interpretações trotskistas. Segundo Mészáros, dado o poder estatal enormemente fortalecido na URSS, era muito mais provável que ocorresse uma contra-revolução política de cima do que uma revolução política de baixo, como forma de corrigir as contradições da ordem estabelecida. E pior: mesmo que a proposta política trotskista viesse a ser posta em prática e uma “nova revolução política das massas pudesse prevalecer por um momento, ainda assim a tarefa real de reestruturar fundamentalmente o sistema do capital pós-capitalista permaneceria a ser cumprida”. [1]

Portanto, em síntese, a transição socialista exige a superação do tripé que sustenta o sistema, e o “fenecimento do Estado” é inconcebível sem o “fenecimento do capital” como regulador do processo sociometabólico e sem “a autotranscendência do trabalho da condição de subordinado aos imperativos materiais do capital imposta pelo sistema prevalecente da divisão estrutural/hierárquica de trabalho e poder estatal”.

O círculo vicioso que, por um lado, prende o trabalho à dependência estrutural do capital e, por outro, o coloca em uma posição subordinada no que concerne à tomada política de decisão por um poder estatal estranho, apenas pode ser quebrado se os produtores progressivamente cessarem de reproduzir a supremacia material do capital. Isto eles só podem fazer desafiando radicalmente a divisão estrutural hierárquica do trabalho. (op.cit)

O fortalecimento do Estado pós-capitalista decorreu da permanência da dependência estrutural do trabalho em relação ao capital. Segundo Mészáros, mesmo que sob uma forma nova, essa determinação contraditória do trabalho sob o comando continuado do capital “se afirma apesar do fato de que o capital sempre foi – e só pode ser – reproduzido como a corporificação do trabalho em forma alienada e autoperpetuadora”. Contudo, como a determinação antagônica em questão é inerente à estrutura de comando material do capital (que é apenas complementada e não fundada no Estado enquanto uma estrutura abrangente de comando político do sistema), o problema da autoemancipação do trabalho não pode ser enfrentado apenas ou principalmente ao nível da política. Como bem lembra Mészáros, “através da história moderna, as incontáveis ‘revoluções traídas’ fornecem evidências dolorosamente abundantes a respeito”.

O “fenecimento do Estado”, portanto, só tem sentido se for praticamente implementado no próprio ambiente material (econômico) do sociometabolismo. Não basta uma revolução política. A revolução necessária é a Revolução social, aquela que se efetivará no longo prazo por meio do curto prazo, num trabalho progressivo cotidiano de apropriação de todas as funções de controle do sociometabolismo, que passam aos poucos a ser positivamente exercidas pelos produtores associados e não como são hoje: sob formas de regência do capital que se transubstanciam em estruturas de comando político de alienação dos poderes de tomada de decisão. Assim, o afastamento das personificações do capital deve se dar não apenas de forma político-jurídica, através da “desapropriação dos expropriadores”, mas de forma material, substantiva, pela reabsorção dos poderes produtivos e de decisão historicamente usurpados do trabalho, reabsorção dos “poderes sociais” que só é possível por meio da constituição de uma “nova forma histórica”, um genuíno sistema de autogestão (ou autoadministração) capaz de reestruturar o sociometabolismo com base nas necessidades humanas, eleitas e operadas horizontalmente, pela democracia o mais direta possível.

Nota

[1] Do mesmo modo, segundo Mészáros, a perestroika da era Gorbachev não poderia reestruturar absolutamente nada no domínio hierárquico/estrutural do controle sociometabólico dado: “Sua proclamação da “igualdade de todos os tipos de propriedade” – ou seja, a restauração jurídica dos direitos da propriedade privada capitalista para benefício de alguns – operada na esfera das personificações do capital apenas tornava hereditariamente “justificado” (em nome das prometidas “racionalidade econômica” e “eficiência de mercado”) o que eles já controlavam de facto. Instituir mudanças legal-políticas no plano da titulação de propriedade é uma brincadeira de criança comparada à tarefa penosa e prolongada de superar o modo pelo qual o capital controla a ordem sócio-reprodutiva”. (ibid: 601)

Referências

MÉSZÁROS, I. (2002). Para além do capital. SP: Boitempo.

Esta série inclui os seguintes artigos:

1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão

1 COMENTÁRIO

  1. Estimado Pablo

    Estava esperando ansiosamente por este ultimo artigo da sua série para tecer alguns comentários. Genial!

    Primeiro queria explicitar minha satisfação de ler um conteúdo tão bem articulado e com questões de extrema relevância, na perspectiva das lutas emancipatórias.

    Nessa perspectiva, se me permite, gostaria que você (como também o PP e seus leitores), conhecessem nossa modesta iniciativa (pequeno grupo), advindos do campo do trabalho associado e das tentativas de autogestão (situados inicialmente na economia solidária e na reforma agrária), porém analisando criticamente e dialeticamente tais movimentos, a luz das problemáticas, apontadas por Mészáros (igualmente como tu colocaste de forma brilhante), da reversão e superação do capital (ou mais especificamente, das suas mediações de segunda ordem por novas mediações, adequadas ontologicamente a um projeto efetivamente libertário), e o principal obstáculo para isso, à alienação sobre o trabalho.

    Essa iniciativa, que está formando um coletivo de luta, chamamos Via SOT (http://viasot.wix.com/autogestao).

    Em síntese vemos, talvez, uma possibilidade histórica de iniciar a construção de novas mediações e instituições societais, nas próprias tentativas atuais de autogestão do trabalho associado, nesses dois elementos potenciais de transformação: de negar a alienação sobre o trabalho (inclusive o Estado), e afirmar um novo sistema sociometabólico que aponte o horizonte libertário de um sistema comunal dos trabalhadores livremente associados, numa processualidade densamente “qualitativa” (novas mediações como ponto inicial de luta), e do ponto de vista de transição, “quantitativa” (no sentido de inúmeras lutas pela re-apropriação de recursos e meios de produção, e, principalmente, da “associação” dos trabalhadores, antes dependentes de formas alienadas – assalariadas de trabalho, desde um ou vários pontos iniciais de ruptura ou primeiras comunas até um sistema comunal global).

    Claro que é uma proposta em construção, uma alternativa a ser (ou não) colocada em movimento, uma opção de luta conforme as condições históricas e o engajamento concreto dos trabalhadores. Trata-se de um projeto, mas um projeto alicerçado nas múltiplas problemáticas de transição, aonde simultaneamente haja o fenecimento do Estado, e a superação das mediações de segunda ordem do capital.

    Se eu entendi bem, creio que as questões que a proposta da Via SOT esta colocando convergem perfeitamente com o que me parece ser a tese central que defendeu nessa séria, a de que o Estado deve ser, simultaneamente, enfrentado e enfraquecido pela luta política (negação do capital), mas pari passu a tal enfrentamento, é necessário promover ou viabilizar a sua substituição por um outro sistema sociometabólico (afirmação do trabalho associado).

    Sem dúvida ambos os movimentos então (ou precisam estar) intimamente relacionados. Ou como Mészáros enfatiza, trata-se de múltiplos e combinados ataques. A chave que destacamos é entendermos porque, até o presente momento, as tentativas de autogestão não lograram um processo histórico de efetiva ampliação e aprofundamento da sua materialização societal, e essa chave, reforçando o que colocaste, está justamente nas mediações de segunda ordem do capital. Como Mészáros insiste em vários momentos da sua produção teórica, é necessário constituir novas mediações e instituições que suportem um processo concreto de transformação societal. É justamente aqui que argumentamos que a armadilha das atuais tentativas do trabalho associado é que o mesmo ainda está “capenga” dessa sustentação ontológica, continuando a reproduzir o intercâmbio mercantil (e a lei do valor), bem como a propriedade privada (disfarçada de propriedade social de grupos), logo, toda a ambiguidade de ideologias e práticas capitalistas, típica da alienação capitalista ou do capital. Se não me engano, João Bernardo também ressalta essa ambiguidade de lutas políticas tendo como base material produtiva o trabalho assalariado, logo, uma luta por parcelas de mais valia, e não pela superação da própria sociabilidade capitalista.

    Nossa proposta inicial, posta para o debate (do coletivo Via SOT) é justamente a de substituir a propriedade de grupos para uma forma orgânica e universal de propriedade social, ou seja, a instituição de uma “propriedade orgânica” para o trabalho associado, e reverter de imediato à dinâmica mercantil e a lei do valor pela instituição da mediação chamada “renda sistêmica” – uma indexação direta e autorregulada entre produto global e necessidades globais dos trabalhadores livremente (e organicamente) associados. E, advogamos, já temos elementos suficientes hoje para iniciar tal processo, desde que pelo menos alguns trabalhadores, “proprietários” coletivos de alguns meios de produção, queiram se livrar desses grilhões envenenados (mediações do capital)…

    Bom, são apenas pequenas contribuições a este importantíssimo debate que o Pablo nos brinda. Perdão se foi muito extenso. Grato.

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