O gigante acordou, mostrou sua cara feia e espantou muita gente bem intencionada. É hora de voltar a mostrar coragem: cara feia ainda é fome. Por Acauam Oliveira e César Takemoto

Leia aqui a 1ª parte deste artigo.

2. E se o verdadeiro recalque do Morcegão não for o Robin? A travessia do fantasma

O movimento aqui proposto se estrutura numa das noções da cura psicanalítica, a tal “travessia do fantasma” lacaniana (retomada por Richard Boothby e Zizek), e implica uma estrutura dupla da fantasia: ”’atravessar a fantasia’ não significa que o sujeito de alguma forma abandona seu envolvimento com os caprichos ilusórios e se acomoda a uma ‘realidade’ pragmática, mas exatamente o contrário: o sujeito se submete ao efeito da carência simbólica que revela o limite diário da realidade diária.” [1] Desse ponto de vista, o Tropa de Elite I faz “má psicanálise”, porque o seu efeito prioritário é justamente o de uma “acomodação a uma realidade pragmática”, ou seja, não realiza efetivamente a travessia da fantasia e, com o Tropa de Elite 2, se distancia ainda mais dela.

Num quadrinho de fã recente (The Deal ), a travessia do fantasma se realiza numa história de super-herói em que o Batman, num momento chave (o Coringa havia esquartejado o Alfred, fazendo com que Bruce perdesse o pai pela segunda vez), reconhece o vínculo profundo de amor que existe entre ele e o Coringa. Aqui o homem-morcego não apenas impede que o Coringa despenque das alturas para a morte certa, repondo a cena fatídica do Cavaleiro das Trevas (Dark Knight)) segurando-o pela mão, como expressa a própria impossibilidade desse amor saltando junto com ele para morte certa, ainda de mãos dadas, expondo justamente essa falha do simbólico (que não pode acolher o “real” desse amor).

Digamos então que no Tropa de Elite I o público é levado a segurar a mão do Cap. Nascimento, a lhe dar apoio, compreendê-lo como figura trágica, sublimá-lo como figura ética, mas não a reconhecer seu amor por ele e o abismo que se segue a esse reconhecimento mesmo. O filme é crucial, pois trata-se de reconhecer um momento do cinema industrial no qual o paradigma da “dessublimação repressiva” (“de esquerda”, na taxonomia do Antonio Prata) converte-se em “sublimação repressiva” (“de direita”, no mesmo sistema classificatório) novamente (a sublimação clássica da psicanálise freudiana), com a diferença de que aqui ela não projeta mais nenhum horizonte civilizatório, mas a eterna luta do bem contra o mal. Incapaz de atravessar o fantasma, o impulso ético esquerdista xinga, joga pedra e se põe acima da brutalidade reinante. Confrontar a fantasia é a lição que se pode tirar de tudo isso. Quando a teoria cinematográfica francesa (para simplificar bastante um debate complexo) encastelou-se na sua valorização do cinema de vanguarda no fim dos anos 60, começo dos 70, uma outra teoria se articulava e se perguntava se era realmente útil simplesmente recusar o cinema industrial “ilusionista”. É aqui que a teoria lacaniana pode ajudar. Ao invés de apostar incondicionalmente num cinema que a todo o momento deve demonstrar ostensivamente ser uma ilusão (“era tudo ironia”…), desconstruindo e expondo os seus procedimentos mesmos, não caberia reconhecer, e criar mecanismos para pensar, que era o próprio cinema industrial ilusionista que confrontava de maneira mais aberta e direta a dimensão mais traumática do fantasma, das aparências como aparências, como aparições? Ou seja, como reabilitar uma dimensão emancipatória da identificação?

3. Quanto vale um país cronicamente inviável?

A esse respeito, e servindo como contra-exemplo, podemos dizer que o mergulho a fundo na violência informe protofascista da sociedade brasileira é a especialidade de Sérgio Bianchi. Seu cinema aparece como uma maneira de, sem simplesmente negar a tradição vanguardista, investir nos materiais mais regressivos dos fantasmas da classe média brasileira, sistematicamente se recusando a “voltar para o aconchego” da posição segura-de-si “esquerdista”.

O próprio derrotismo da classe média torna-se meio de vida confortável: a madame que em Cronicamente Inviável sonha em drogar os pobres para que estes morram com eficácia e felicidade capitaliza uma ONG para fazer o mesmo no Quanto Vale ou É por Quilo?, enquanto a dominação e a violência como alimentos da reflexão são alternadas com a venda de órgãos de crianças pobres pelo intelectual. Uma a uma, as fantasias compensatórias do espectador de cinema nacional são conspurcadas: o teatro e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) são comandado por líderes parasitas e autoritários, o cinema é pura negociação de políticas públicas, os homossexuais só sabem se vender como carne num açougue barato, os miseráveis são massacrados quando não iludidos, os pobres só querem manter o pouco que têm, os ricos… bem, enriquecer também não é viável sem passar a perna nos outros e se aliar aos inimigos. A enxurrada de clichês [2] que se encadeiam capta e esmaga as fantasias do espectador, obrigado a reagir a cada uma delas sem que ele tenha uma resposta sistemática ao todo. Imbricado de modo irremissível nessa sobreposição de horrores, sua resposta consiste em negar o todo do filme (ou o cinema de Bianchi, pura e simplesmente) ou compreender a sua parte naqueles horrores mesmo.

E talvez seja algo próximo disso o que faz, por exemplo, o Reinaldo Moraes do Pornopopéia, ao confrontar as fantasias obscenas da classe média, mais especificamente da elite cultural branca, masculina e decadente – em oposição à “nova classe média”. É também o fantasma da classe média que se projeta sobre a família “classe C” dos Inquilinos. E mesmo sendo ainda muito cedo para afirmar qualquer coisa, podemos pressupor que, no Jogo das Decapitações, Bianchi parece pretender não apenas acertar as contas com a própria obra, mas também com a esquerda-torturada-na-ditadura-que-está-no-poder (e o aconchego abafado de viver na sua sombra), com a figura do loser no cinema brasileiro contemporâneo, com a USP, com a guerra intestina dos pobres contra os pobres, com a classe C-novo rico, tudo num jogo fantasmagórico de decapitações que confronta múltiplos fantasmas e atravessa alguns deles… Quem viver verá.

4. Fantasmas sertanejos

E o mesmo recuo ideológico não pode ser lido na própria relação de “superação intertextual” que há entre Os Sertões, do Euclides da Cunha, e o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa? Não é verdade que o trauma de Canudos e o fantasma da recém-constituída República Brasileira são melhor confrontados pelo positivismo de Euclides do que pela inventividade linguística rosiana e a sua correspondente mitologização do sertão? Não poderia a linguagem do Euclides bem nos figurar hoje como a correspondente “dos mapas de estado-maior e da vontade de dominar a silva horrida por meio da tecnologia e de um volumoso aparato militar” [3]? Uma linguagem e uma tecnologia que se armavam contra o próprio fantasma da elite modernizadora nacional, ou seja, o confronto com o real da geografia física e humana do país, com o “medo de perder-se no ‘labirinto de montanhas’ , no ‘labirinto de veredas’ e no ‘labirinto das vielas’ da ‘urbs monstruosa’, espaço anárquico de uma população depauperada e crescente que escapava ao controle e era o oposto dos ideais de ordem e progresso” [4]? Não estaria também essa fantasia de controle do outro monstruoso na estruturação do gozo coletivo propiciado pelo primeiro Tropa de Elite? Seria a perspectiva rasteira da narrativa-rio inventada por Rosa (em oposição à perspectiva aérea de Euclides) uma travessia do fantasma ou um deslocamento mitologizante (Grande Sertão: Veredas e Casa-Grande e Senzala: “o paralelismo entre os dois títulos é perfeito, em termos semânticos, sonoros e métricos” [5]) cuja função é encobrir o núcleo traumático de Canudos num trabalho de simbolização/conversa/aproximação infinito? (A pergunta não é retórica, mas a resposta dependerá de uma leitura radicalmente impiedosa desse grande romance.)

Por outro lado, não é o próprio Rosa que fundamenta o seu retrato do Brasil através de uma encenação do “sistema jagunço”, “uma instituição no limiar entre a lei e a ilegalidade, onde a transgressão é a regra e a guerra é permanente” [6]? E não é (mais ou menos) assim que o Tropa de Elite 2 reapresenta o problema também? Digamos então que a sofisticação na forma de apresentar os problemas não necessariamente leva ao confronto mais efetivo do núcleo básico das contradições e, ainda que possa satisfazer as plateias mais exigentes, pode implicar em simples repetição mítica do mesmo. Não deixa de ser uma ironia objetiva o fato de que a grande invenção da prosa rosiana termine, em termos de “enredo”, com o casamento padrão sacramentado na propriedade, como no caso daquele conhecido sargento de milícias, no tempo do Rei.

5. O gigante acordou: corre que é fria!

Pode dizer-se que o gesto, entre recusa e medo, tanto de Padilha quanto de Antonio Prata, é bastante similar ao movimento de parte das esquerdas nas manifestações de junho, que, diante do caráter terrível e protofascista do gigante acordado, passou por um processo de hipercorreção que via possibilidades de golpes à direita por todos os lados, optando por recuar estrategicamente diante da incapacidade de uma real articulação de suas bases (que haviam gerado o movimento inicial). Reconheço que eu mesmo fui um dos que assumiram, como um reflexo, que era necessário recuar em certo momento das jornadas de junho, no qual a esquerda passava a temer pela massificação crescente das manifestações, projetando sobre elas o seu fantasma fundamental, o fantasma do golpe de 64. Era de certa forma evidente que ela não teria força para politizar o país, ou pelo menos o país que segurava a mão do Nascimento e da luta contra a corrupção (outro fantasma que não se atravessa). Aliás, o golpe não veio, mas o enquadramento narrativo dos protestos foi sequestrado com sucesso pela direita. O que resta de radicalidade — anticapitalista de algum modo — nas manifestações atuais é imediatamente identificado com a fissura excessiva dos black block, interpretados como marginais inconsequentes e perturbadores da ordem pública. Ou seja, diante do abandono de campo pela esquerda — após uma série de conquistas fundamentais, lembrando que os preços das passagens de ônibus e dos pedágios intermunicipais continuam congelados e que a onda de protestos ainda não se esgotou — a direita pode reorganizar-se e assegurar a hegemonia da sua versão da história.

Ampliando, assim, o escopo para o campo dos movimentos sociais, percebe-se melhor o quanto esse recuo conservador à esquerda, que se estrutura em diversos segmentos culturais e sociais no país, se configura enquanto sintoma de um processo mais amplo de afastamento da esquerda de suas bases, conduzindo no limite ao estranhamento e a certa incapacidade de construção de elementos mediadores que tornem possível o processo de identificação, que tende a se realizar, então, à direita.

O gigante acordou, mostrou sua cara feia e espantou muita gente bem intencionada. É hora de voltar a mostrar coragem: cara feia ainda é fome.

Notas

[1] Richard Boothby, Freud as Philosopher, Nova Iorque, Routledge, 2001, pp.275-6, citado por Slavoj Zizek, “Paixões do Real, paixões do semblante” em Bem-vindo ao deserto do Real! São Paulo: Boitempo, 2003, p. 32.
[2] Ainda que o uso de clichês seja sistemático em Bianchi, o seu método caótico de combiná-los nas cenas lhes subtrai o caráter de fácil interpretação, e na verdade tende a exacerbar ao máximo a tensão hegeliana entre enunciados — tanto em forma de falas e sons quanto de olhares — e posições de enunciação.
[3] Faço aqui uma apropriação das considerações e citações de Willi Bolle, “O sertão como forma de pensamento” em grandesertão.br. São Paulo: Duas Cidades/34, 2004, p. 78-9.
[4] Bolle, Idem.
[5] Bolle, Ibid., p. 282.
[6] Bolle, “O sistema jagunço”, Ibid., pp. 91-139.

Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal
dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.

1 COMENTÁRIO

  1. Algumas considerações…

    Primeiro, muito bom o texto,parabéns, interessantíssimo, faz pensar e problematiza coisas importantes, além de fazer uma chamada para à esquerda voltar à rua, o que considero fundamental. Apenas algumas discordâncias que gostaria de discutir…

    Primeiro, não acho que o recuo do tropa de elite II seja apenas moralizante. Digo, ele realmente da tom na questão da corrupção e tudo mais, mas, ao mesmo tempo, o filme, ironiza os apresentadores de TV sensacionalistas e principalmente, evidencia a questão das milícias, mostrando a ligação de uma polícia que controla o morro com o poder e o Estado. Ou seja, ele de fato tenta explicar que o capitão nascimento não é um herói, de fato da uma moraliza, mas não acho que tenho sido só isso, ainda há um tom e questões muito relevantes e próprias da esquerda. E quanto a explicitar a crítica e explicar a ironia, como acontece tanto no filme como na crônica, será que isso é realmente ruim? Será que isso é realmente um recuo? Tenho a impressão de que isso é uma maneira de deixar claro as posições e reafirma-las de modo a se fazer entendido. Afinal, quando se escreve ou se faz filme para a massa, não importa o quão genial for, mas se por um acaso, o entendimento do público sair ao inverso, ela não dialogou, não contribui para o choque e/ou mudança de pensamento ou qualquer coisa assim. Talvez em Tropa de Elite a crítica ao proto fascismo pudesse permanecer, mas explicitar que capitão nascimento não era herói, e Antonio Prata explicar que estava sendo irônico não é um recuo, mas sim uma tentativa de que as pessoas entendam suas mensagens, o que eu acho extremamente importante. Mas concordo que ambos deveriam ter levado suas críticas as últimas consequências, especialmente o tropa de elite, contudo, acredito que deixar claro é também importante.

    Outra coisa, fala-se no texto na esquerda que saiu da rua estrategicamente. Primeiro, não foi toda esquerda, boa parte continuou na rua, empolgado ao mesmo tempo que assustado, tentando disputar o movimento. Segundo, será que havia mesmo condições de um golpe da direita ou não era mais temor e traumas de 64? Por que não estamos num contexto internacional propicio para isso, o governo do PT mantém relações ótimas com boa parte da burguesia e, mesmo com as tensões que há com outras partes, não acredito que elas sejam grandes o suficientes. E bom, será que foi um acerto esse recuo? será que deixar que um dos maiores movimentos de massa dos últimos anos fosse manipulado pela mídia foi a estratégia correto, por que foi a esquerda que iniciou junho. Assim como o filme da crônica poderiam ter levado suas críticas as ultimas consequências, acredito que deveríamos ter levado nosso movimento as últimas consequências, as quais, duvido que entre elas haveria um avanço ou golpe da direita, mas pelo contrário. Enfim, tudo isso são suposições também, apenas acho que é importante fazer um balanço desse recuo além de, como foi dito no texto, voltar a ativa e o mais rápido possível.

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