Por Armando Chaguaceda

Há alguns dias, na antessala da Cúpula da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], o chanceler cubano anunciou que em Havana não se realizariam cúpulas dos povos porque, assinalou, “… os povos de toda Nossa América estarão dentro da Cúpula e Cuba é a terra irmã de todos eles”.

E, com efeito, assim sucedeu: nada de Cúpula dos Povos, Coordenadorias contra o Livre Comércio – embora vários dos presidentes convidados sejam promotores de tais políticas privatizantes – e, nem sequer, Assembleias dos Movimentos Socais integrados na ALBA [Aliança Bolivariana para as Américas]. Diante o desconcerto e mal-estar que tal situação provocou, alguns amigos levantamos a hipótese de uma onda governista; diversa em seus referentes ideológicos e práticos, mas coincidente no interesse de reduzir o incômodo do questionamento que todo movimento social faz ao governo que lhe toca sofrer.

No entanto, numa entrevista recente, a coordenadora do Programa de Solidariedade do Centro Memorial Dr. Martin Luther King (CMMLK), pode ser particularmente reveladora de outros fatores – inerentes aos próprios atores excluídos – capazes de explicar o porquê dessas ausências. Na entrevista, a jovem conta como a aliança de movimentos bolivarianos começou a ser construída em 2008, avançando nos anos seguintes na construção e articulação de plataformas nacionais. Tudo coordenado por uma secretaria operativa integrada pela Frente Popular Darío Santillán (Argentina), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil), acompanhados de Cuba pelo CMMLK e a Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina; organizações que colaboram desde há tempos em diversos cenários e redes internacionais.

A entrevistada destaca que na Assembleia de fundação participaram umas 240 pessoas procedentes de mais de 80 movimentos de 22 países, reluzindo os casos da Associação Nacional de Pequenos Agricultores (pertencente à Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo – Via Campesina) e a Federação de Mulheres Cubanas (parte da Marcha Mundial das Mulheres) como organizações de massas cubanas assistentes ao fórum. E aí, mesmo qualquer leitor medianamente informado do contexto cubano faria a primeira pergunta: sendo a prática e defesa da autonomia – frente ao Estado, aos partidos e ao capital – uma qualidade central dos novos movimentos sociais latino-americanos estudados por Raul Zibechi e Maristella Svampa, as organizações da Ilha poderiam aportar experiências nesse campo? Não são organizações cujo discurso, pertencimento e agendas sofrem do verticalismo, fossilização e sujeição política aos desígnios do Estado/Partido, típicos do modelo leninista ainda vigente em Cuba?

Na entrevista, ao ser interrogada sobre aquilo que poderiam aprender os atores cubanos de seus pares latino-americanos, a intelectual alude a um conjunto de questões interessantes, mas vagas, como a “aprendizagem no sentido de organização, unidade e coletividade”, a “frescura que nós não temos”, o “caráter voluntário”, a “auto-organização e a autoconvocatória”. E, através de um uso recorrente da primeira pessoa do plural – significativamente útil dentro da psicologia e cultura política nacional como forma de diluir/transferir responsabilidades – assinala: “Nós, por várias razões, temos aprendido a ser extremamente disciplinados na hora de organizar-nos e convocar algo”.

Interpretações semelhantes poderiam ser o resultado da redação de uma jornalista carente de espaço ou, acaso, um reflexo da debilidade analítica e o simplismo que rodeia o discurso e a práxis de boa parte da Educação Popular e o “tarefismo oficineiro” existente em Cuba. Mas, creio também que isso tem a ver com uma cultura política que se reforça, inclusive, naqueles espaços que se pretendem alternativos, como forma de sobreviver sem dizer diretamente “como estão as coisas”. Por um acaso, o assunto dos déficits de cidadania é algo meramente individual ou, digamos assim, “cultural”? Não atravessam toda a institucionalidade cubana estruturas de mando e punição, padrões de ordem e obediência e experiências de vida e projetos truncados que têm moldado, dentro da sociedade, esse sentido de passividade e temor à inovação em temas sociopolíticos? Têm a mesma responsabilidade o delegado de bairro que tentou, até o cansaço, romper a burocracia ou a censura jornalística e aqueles que decidiram, com todo o seu poder e impunidade, foder a vida e os sonhos de muitos cubanos – incluindo militantes revolucionários – de “pés descalços”?

Outra confusão substantiva é acreditar, como expressa a entrevistada, que a diferença fundamental entre governos e movimentos sociais radica no fato dos primeiros estarem sujeitos a lógicas eleitorais de curto-prazo e ao diálogo/concessão com outros atores; enquanto os segundos se baseiam numa lógica de longo prazo, onde constroem um “acúmulo político, desde baixo e com calma”. Aparentemente tudo se reduz a um problema de tempos e alianças, enquanto o tema nevrálgico das funções e lógicas desses atores se torna invisível. Na realidade, todo governo – com independência da ideologia que o anima – procura aplicar sua lei e deter o monopólio da representação do coletivo cujos destinos dirige: por isso líder, nação e povo se confundem em toda retórica oficial. Por sua parte, os movimentos sociais representam os excluídos, questionam aos governantes, abrem o espaço e as políticas públicas a novos temas e demandas.

O que a confusão desse discurso revela é uma enorme debilidade e incoerência de organizações sociais oficialmente reconhecidas – e seus dirigentes e intelectuais orgânicos – para posicionar-se com uma agenda própria (não necessariamente adversa) aos governos integrados na ALBA. Quanto a esses últimos, a autonomia dos diversos atores afins está resultando tão incômoda como a resistência de outros movimentos sociais nos contextos neoliberais, aos governos de direita. Obviamente, há diferenças de força, trajetória e posicionamentos entre, por um lado, o poderoso MST – híbrido entre movimento nacional e aparato burocrático – e o movimento piquetero argentino; e as organizações cubanas, incluída uma ONG com prolongações comunitárias (Rede Educadores Populares) como é a CMLK. Os primeiros preservam a capacidade de interpelar aos seus aliados governamentais, romper pactos, negociar agendas; os segundos têm que esperar que lhes ditem a linha ou, em síntese, fazer uma consulta (ou assembleia) com pouco poder decisório e paciência de Salomão, sempre com a possibilidade de que as decisões sejam abortadas desde cima.

A mesma integração da representação cubana aos fóruns da esquerda social continental – submetida aos desígnios do Comitê Central e aprovada pelos aparatos ideológicos e de contra-inteligência estatais – é um exemplo dessa carência de autonomia e agência. Também o são as linhas sobre quais temas apoiar e quais não. Em ambas as dimensões minha recente experiência dentro da sociedade civil “crioula” tem sido esclarecedora: recordo as broncas – e vetos – para participar nos Fóruns Sociais desenvolvidos na década passada e a desgarradora queixa de uma feminista nicaraguense pela postura não solidária de suas companheiras da FMC cubana diante da condenação do dirigente Daniel Ortega, acusado de abusar de sua afilhada Zoilamérica. Amostras da subordinação estatal das organizações da Ilha.

No contexto cubano, entretanto, existem outras organizações que, colocando honestamente objetivos modestos, fazem importantes contribuições às agendas locais e temáticas (diversidade sexual, ambiental) com impacto positivo na vida da população. Em seus programas não se encontram proclamações de emancipação nem presunções de transformar o mundo desde abaixo, conscientes de seus limites reais de recursos, tempo e contexto. Porque o trabalho nos bairros nem sempre é sinônimo de empoderamento, nem a capacitação um acompanhamento real frente à ação (ou submissão) das administrações que afetam a vida das comunidades.

Por isso que, para além de celebrar seu trabalho e trajetória, em entidades como o CMLK se mantém a tensão entre, por um lado, preservar o modo de vida – lucrativo nas condições cubanas – e o monopólio de saberes e discursos (Educação e Comunicação Popular) – de seu pessoal profissional e, por outro lado, a necessidade de confrontar aquelas políticas em curso – que amplificam o autoritarismo e a desigualdade sociais – e o apoios às demandas de mais autonomia que, de quando em quando, despertam entre seus “oficineiros”. Quanto às organizações de massas, os repetidos intuitos de revivê-las nos recentes congressos têm as abortado no próprio processo de gestação, por linhas obsoletas, a subordinação às metas governamentais e a escassa representatividade de seus líderes, conservando um pertencimento mecânico e apática lista para se safar na primeira chance do pagamento das cotas e nas reuniões no horário de novela.

Caso se queira ver o que significa ser e fazer movimento social no contexto cubano, seria mais realista mover-se no trabalho – às vezes pouco (re)conhecido – de pequenos coletivos como os que formam o Observatório Crítico e outras redes de ativistas, cuja defesa da autonomia e a autogestão tem implicado graves custos pessoais e coletivos aos que os impulsionam. Também a explosão da arte urbana e autogestão cultural que emergiram na década passada, assim como a lenta, mas crescente, recuperação do espaço público – e do direito à manifestação e ao protesto – por parte dos trabalhadores afetados pelas leoninas regulações estatais. Todas essas experiências distantes da moda e dos benefícios que permeiam as agendas de uma “alternativa” demasiada leal aos ritmos e mandatos governamentais. Não se trata de apologias nem satanizações, mas de avaliar, com objetividade, quem está levando adiante sem permissão, desde abaixo e à esquerda, as mudanças em prol de um país melhor.

Tradução do Passa Palavra a partir do texto original disponível em: http://www.havanatimes.org/sp/?p=93535

As fotografias do destaque, e a primeira e a última do texto são de Alberto Korda; a segunda é de Venancio Diaz; e a penúltima de Perfecto Romero

2 COMENTÁRIOS

  1. COREIA DO NORTE
    De Fidel a Raul, sempre a mesma rumba oligarcopatrimonialista (Castro & Cia.) do partido-estado que há 56 anos tripudia e se refocila sobre os proletários cubanos.

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