A autodefesa adequa-se não a uma luta restrita a manifestações de cunho midiático mas a uma luta que concebe as manifestações como resultantes de um cuidadoso trabalho de base, de longo prazo e localizado, de preferência, nas periferias. Por Comunista Heterodoxo

O sentido da autodefesa: defesa ou ataque?

A autodefesa numa manifestação só tem razão de ser quando caracterizada por ações de resistência à repressão policial violenta, tendo em vista: ou (1) garantir a continuidade da manifestação e, assim, o cumprimento de seu objetivo político ou (2) que os manifestantes possam encerrá-la em segurança quando este objetivo político é impossível de concretizar.

Deste modo, a meta principal da autodefesa, seja ela colocada a cargo de uma comissão ou praticada por todas as pessoas envolvidas na organização da manifestação (o ideal é que ela seja praticada por todas as pessoas envolvidas na organização da manifestação), deve ser (1) a elaboração de uma estratégia de recuo – ou de avanço – para um local seguro. Deve-se, portanto, pensar rotas de fuga para locais seguros que possam ser tomadas por todos os manifestantes, sem que estes se dispersem desordenadamente, desfazendo-se, assim, a coesão da manifestação. E, ao mesmo tempo, (2) pensar possíveis atos de resistência capazes de garantir que todos os manifestantes, no momento de recuo – ou de avanço – para o refúgio escolhido, possam se reorganizar e, então, deliberar ou (a) pela retomada da manifestação, se possível, ou (b) pelo seu encerramento, com a dispersão, o mais organizada e segura possível, dos manifestantes.

protesto 1Ações imprudentes que proporcionam aos agentes da repressão a oportunidade, por eles almejada, de dispersar desordenadamente uma manifestação em terreno cercado pelo inimigo, fracionando o conjunto dos manifestantes em pequenos grupos ou fazendo com que algumas pessoas fiquem para trás ou tenham que tentar escapar sozinhas, não configuram práticas de autodefesa. Quando algumas pessoas de personalidade, por assim dizer, “aventureira” realizam, promovem ou estimulam provocações que são, na verdade, um prato cheio para a repressão e quando a única coisa que resta a fazer, para todos os demais, é aderir ao “salve-se quem puder”, trata-se não de uma estratégia de autodefesa mas de individualismo e irresponsabilidade, além de descaso para com a integridade física e psicológica de companheiros de luta.

Certos militantes têm um certo fetiche pelo enfrentamento com os agentes da repressão e pela destruição de fachadas de empresas, como se brigas de rua com uma polícia melhor treinada, armada e equipada, e a destruição de fachadas de agências bancárias e lojas de fast food alterassem, substancialmente, as relações sociais no sentido da emancipação. A ânsia por destruir parece, em certos casos, superar o ímpeto de recriar. Não se quer com isso afirmar que o enfrentamento com os agentes da repressão bem como a “ação direta” devam ser sempre descartados. Pelo contrário: são ambos necessários e legítimos em momentos adequados e em conjunturas favoráveis. A tática Black Bloc deve ser, desta maneira, defendida e praticada, mas sempre – e somente quando – inserida na estratégia da manifestação, debatida e deliberada antecipadamente pelos envolvidos em sua organização.

O enfrentamento e a ação direta, quando colocam em risco a saúde, a liberdade e até mesmo a vida de pessoas despreparadas para o confronto direto com os agentes da repressão, se é que existem pessoas “preparadas” neste sentido, de transeuntes que têm o azar de estar no lugar errado e na hora errada, bem como de funcionários de órgãos de imprensa nacionais e estrangeiros, devem ser evitados. É o pensamento racional, não o impulso apaixonado, que deve conduzir a luta anticapitalista. Impulsos irracionais, irresponsáveis e individualistas são estranhos a uma conduta de camaradagem, imprescindível para a abertura de um horizonte de acúmulo de vitórias.

Que fazer, então?

Enfrentar, em momentos adequados e em conjunturas favoráveis, mas enfrentar resistindo, não atacando. E, sempre que possível, a partir de um local protegido e a partir do momento em que os manifestantes mais indefesos estiverem já refugiados – ou se refugiando – no local onde se dá o enfrentamento ou em outro local, também protegido, nas proximidades de onde se dá o enfrentamento (não faz muito sentido separar o conjunto dos manifestantes em dois grupos, um que resiste e outro que tenta se evadir do local em debandada, num perímetro cercado pelos agentes da repressão: para a polícia, abre-se nestas situações uma verdadeira “temporada de caça”). Trata-se, portanto, de praticar um enfrentamento defensivo em que todos se esforçam para que seja mantida a coesão da manifestação.

Falar em “local protegido” significa falar em um local por onde a cavalaria não consegue avançar e por onde a tropa de choque dificilmente consegue se manter em formação, bem como em um local que comporte algum tipo de proteção contra os tiros de bala de borracha, os estilhaços das bombas de efeito moral etc.

protesto 2

As ações, por sua vez, é melhor que sejam realizadas somente se houver oportunidade de fazê-lo em segurança, isto é, longe da vista e da mira dos agentes da repressão e, de preferência, depois de frustrado o objetivo político da manifestação, por ocasião da repressão policial. Deve-se, portanto, neste último caso, havendo oportunidade, tentar vandalizar nos momentos de recuo – ou de avanço – para o abrigo previamente estudado, debatido e cuidadosamente escolhido antes da manifestação, na reunião (ou reuniões) de organização da manifestação (nem é preciso advertir que este tipo de informação deve ser, na medida do possível e sem que isto resulte em burocratização, mantido em sigilo). A menos que o objetivo principal da manifestação seja, ele mesmo, a prática da “ação direta”. Mas aí o ideal é que isto seja feito de surpresa e em grupos menores, não em manifestações convocadas publicamente, para as quais a repressão já está preparada.

Manifestações convocadas publicamente não costumam, pela sua própria natureza, ser muito coesas, visto que agregam pessoas de todo tipo: (1) desde as menos até as mais preparadas, fisicamente, para a prática da “ação direta”, (2) passando pelas que apoiam mas não praticam e (3) pelas que ficam desconfortáveis e chegam a se opor a este tipo de prática. Se um grupo de manifestantes resolver incendiar um ônibus ou realizar alguma ação contra a fachada de uma empresa, que o faça longe da vista e da mira dos agentes da repressão, mas não é, de modo algum, recomendável que isto seja feito no meio de uma manifestação convocada publicamente e que, em seguida, este grupo busque refúgio no meio da multidão desavisada, que será, necessariamente, toda ela, convertida em alvo por parte de policiais acostumados a (e treinados para) praticar brutalidades contra pessoas indefesas. É preciso ter sempre em mente que todo policial tende a se tornar a própria encarnação da valentia, quando se encontra diante da oportunidade de descontar, numa população civil desarmada, todos os abusos por eles sofridos, cotidianamente, nas mãos de seus superiores hierárquicos, o que se dá ainda mais frequente e intensamente quando “população civil desarmada” é sinônimo de “população pobre e negra, vinda da periferia”. Quem não é adepto do enfrentamento e da ação direta não pode servir de escudo para quem o é, como eventualmente ocorre, e é preciso que isto seja objeto de reflexão.

O problema dos infiltrados

Resta ressaltar o óbvio e fazer notar que todos os cuidados discutidos acima são inúteis se os manifestantes, descuidando da segurança interna da manifestação, deixarem desempenhar a função de provocadores não aos aventureiros tomados pelo fetiche do enfrentamento e da “ação direta” mas aos policiais infiltrados, geralmente fáceis de identificar (mas nem sempre!). É preciso, portanto, não somente resistir, com possíveis danos materiais, levando em conta o modo mais seguro de o fazer, mas também cuidar para que elementos estranhos infiltrados não realizem ações que, impossibilitando o alcance do objetivo político da manifestação, levem ainda à dispersão desordenada dos manifestantes num terreno controlado pelo inimigo.

Se manifestar, para quê?

protesto 3Por fim, é preciso, ainda, abordar a questão do objetivo político de uma manifestação: não basta realizar, no seu decorrer, ações que satisfaçam, unicamente, necessidades individuais de pessoas pouco ou nada comprometidas com a construção de uma luta de longo prazo, direcionada para a derrubada da ordem social vigente. Cada ação, numa manifestação, deve ser pensada consoante uma estratégia de luta contra o capital. Incendiar um ônibus ou quebrar a vidraça de uma agência bancária para obter daí alguma satisfação individual, seja pelo prazer volátil que isto é capaz de proporcionar seja por uma espécie de estética do vandalismo aí apreciada, se isto não estiver coerentemente inserido num projeto de construção de uma luta autogerida mais ampla, não tem nada de revolucionário.

E, é preciso esclarecer, qualquer programa revolucionário passa por um trabalho de conscientização e de organização política de base, necessariamente orientado para o enfrentamento de questões práticas, concretas, do cotidiano. Trabalho este que deve ir articulando gradualmente os problemas concretos, particulares e cotidianos, à estrutura geral do modo de produção vigente.

Portanto, a concepção de autodefesa acima delineada adequa-se não a uma luta restrita a manifestações de cunho midiático mas a uma luta que concebe as manifestações como resultantes de um cuidadoso trabalho de base, de longo prazo e localizado, de preferência, nas periferias.

Estão aí algumas questões para se refletir.

10 COMENTÁRIOS

  1. Artigo excelente e necessário para debates entre os movimentos sociais. Mas, sendo já pessimista, creio que haverá defensores quase religiosos que se recusarão a aceitá-lo. Os que estão aí pelo fetiche miliciano do enfrentamento com a polícia podem interpretá-lo como uma opinião avessa à tática black bloc ao estilo PSTU e grande imprensa… mas está bem evidente que o artigo propõe uma constante auto-crítica, e não se opõe – pelo contrário até – à tática.
    Em manifestações, coisas vão ficando preocupantes. É fato que a polícia tem um papel político e de que ela é, digamos, um “tema transversal” em todos os atos das mais diversas pautas. Mas infelizmente acaba que as vozes se preocupam mais em denunciar o óbvio (a repressão da polícia). Por exemplo, em uma manifestação de luta pelo transporte público, à certa altura as falas e provocações são contra a polícia e não contra os empresários, fazendo com que a pauta inicial se dissolva. No fim, os empresários podem ficar mais tranquilos porque a polícia foi o alvo da vez. Aliás, o roteiro das manifestações já decorado pelas forças de repressão geram situações incômodas como antecipação da polícia em fechar ruas nas redondezas e cercar os manifestantes por todos os lados. A repressão às manifestações organizadas, às espontâneas e ao cotidiano dos trabalhadores e moradores das periferias demonstram o papel político da polícia que deve ser melhor problematizado para além dos gritos de “polícia fascista”. É muito pretensioso alguns manifestantes ficarem “desmascarando” o tempo todo o caráter repressivo da polícia, que já está em bastante descrédito entre grande parte da população que não a vê como um aparato de segurança. Os militantes organizados, que ensinaram muito a quem fecha terminais de ônibus ou ruas em bairros com barricadas, também precisam aprender com esses um quesito fundamental: sair do script já esperado pela polícia e pelos empresários.
    A partir do momento em que a auto-defesa se preocupa mais com símbolos e em ser uma caricatura da tropa de choque, as coisas ficam mais preocupantes. Deveríamos aprender que sabotagens e outras demonstrações de ação direta são coisas a se fazer no dia-a-dia, de preferência voando abaixo do radar. Deveríamos aprender também que o cultivo de valores como “combatividade” e “bravura” podem levar mais a tendências militaristas que libertárias, e que não devemos lamentar quando algum ato organizado não termina em confronto com a polícia.
    Em vídeos que mostram a ação de black blocs em encontros do G8 ou outros eventos, fica claro que são um bloco e que só entram em confronto a partir do ataque da repressão. E que a destruição de vidraças e construção de barricadas se dá normalmente nos recuos organizados (contra a dispersão esperada pela polícia).

  2. Comunista Heterodoxo, quero parabenizá-lo pelo excelente texto e pela forma lúcida e coerente pela qual foram expostas suas ideias e propostas. A título de exemplo, fui um dos presos no Hotel Linsen. Em minha avaliação, caímos direto numa armadilha previamente planejada pelas forças de repressão. A esmagodora maioria dos detidos, de composição muito heterogênia, estavam participando pacificamente, e fortemente decididos a alcançar os fins políticos ao qual se prestava o protesto. Encurralados na Rua Augusta (que notoriamente é um local inapropriado, porque facilita a repressão – a rua é relativamente estreita e os quarteirões são grandes, com poucas alternativas de autodefesa ou mesmo fuga), pois a tropa de choque fechou o quarteirão nas duas pontas, e bombardeou os manifestantes, não restou alternativa a não ser o refugiu no hotel. Porém, mesmo no hotel a PM brutalizou, por isso minha dúvida quanto a “lugares seguros” especialmente em protestos de maiores proporções. De qualquer forma, acho que a proposta do André em ampliar e divulgar intensamente os debates se faz urgente e necessário, posto que um dos objetivos da repressão é o de justamente causar o medo não só durante os atos, mas, e talvez principalmente, depois, especialmente naqueles que estão sob a ameaça e os “rigores da lei”, como é o caso dos detidos no dia 25/01 e 22/02, entre outros. Saudações libertárias!

  3. Uma sugestão: não seria possível aos mantenedores do site Passa Palavra incluir nas páginas o link “indicar a um amigo”?. Acho que facilitaria a divulgação dos conteúdos aqui publicados. Saudações libertárias!

  4. Sobre a questão do “local protegido”: eu acho que as manifestações convocadas publicamente – geralmente, pelas redes sociais – e realizadas em regiões centrais das grandes cidades, os órgãos e os agentes da repressão já se habituaram e já se adaptaram a elas. Se adaptaram de que modo? Reorganizando, prévia e preventivamente, o espaço em que se dará a manifestação, adequando-o a uma estratégia de repressão (o trânsito é desviado; os terminais são rapidamente esvaziados; o comércio é obrigado a fechar as portas; o perímetro é cercado; e, por fim, há mais policiais nas ruas do que qualquer outra coisa). Nessas circunstâncias, acho que é impossível existir um “local protegido”, já que os lutadores sociais são obrigados a se aventurar num terreno controlado pelo inimigo. E é aí que está a raiz do problema. Essa lógica precisa ser invertida. É preciso fazer com que os agentes da repressão tenham que se aventurar num terreno controlado pelo inimigo: ao invés de nos entrarmos no seu território, eles é que devem se entrar no nosso território. Os lutadores sociais precisam adquirir a capacidade de reorganizar, a seu modo, os espaços urbanos, trazendo o adversário para jogar em casa. E isso só pode acontecer a partir de um trabalho de organização política de base, localizado e de longo prazo. Só então, eles poderão pensar rotas de fuga para locais mais seguros, onde poderão se refugiar e se reagrupar para resistir. Nesse sentido, não existe, e nem deve existir, uma “fórmula”. Cada região e cada situação, avaliadas pelos organizadores de um ato, terão suas rotas de fuga e os seus refúgios particulares. E, mesmo assim, não existe garantia de vitória, embora, a meu ver, a probabilidade de vitória seja maior. Deve-se ter em mente, por exemplo, que, a partir do momento em que é divulgado o local de concentração de uma manifestação, os agentes da repressão já começam a pensar as possíveis rotas e os possíveis pontos de chegada dessa manifestação. Isso é difícil de fazer em manifestações gigantescas, como as do 20 de junho do ano passado, mas em manifestações menores, como as que temos visto atualmente, é mais fácil. E, avaliando qualitativamente, são as manifestações menores, que temos visto atualmente, que são as mais importantes. E – se, em cada caso, teremos rotas de fuga e locais protegidos particulares – sua definição só pode ser resultado de um debate e de uma autocrítica permanentes. Mas essas duas palavras – debate e autocrítica -, acabam repelindo, mais do que reunindo, (certos) militantes.

  5. Texto importantíssimo e muito bem escrito.
    Tenho a fazer um pequeno reparo e algumas complementações.
    Ao abrir a possibilidade da prática de ações destrutivas “depois de frustrado o objetivo político da manifestação” e no caminho para o “para o abrigo previamente estudado, debatido e cuidadosamente escolhido antes da manifestação” o autor talvez não tenha se atentado para alguns problemas:
    1) a realização ou não de ações de destruição não se vincula ao sucesso ou fracasso de objetivos políticos, mas deve ser parte componente desses mesmos objetivos, do modo como escrito deu a impressão de funcionar como “retaliação” ou “ressentimento” por terem seus objetivos frustrados;
    2) Deixar uma trilha de destruição no caminho de locais de recuo ou de avanço ajuda os serviços de inteligência dos CRE’s (corpos repressivos do Estado) a mapear trajetórias e fluxos de movimentações na melhor das hipóteses, quando não indica claramente a localização de tais abrigos e locais que se quer manter preservados;
    3) a prática de ações de destruição pode ser usada em manifestações diante de situações muito concretas (ex1: para aliviar a pressão sobre um grupo de manifestantes encurralados pelos CRE’s e assim forçá-los a se dividirem, aumentando as chances de furo do cerco pelos manifestantes encurralados. ex2: para atrair para si as atividades repressivas e, assim, possibilitar maior tempo de mobilidade para manifestantes com baixa capacidade de deslocamento – idosos, crianças e gestantes) fora disso, em regra, devem ser evitadas.
    COMPLEMENTAÇÕES:
    a) O que determina o caráter ofensivo ou defensivo de ações de segurança reside na conjuntura geral das lutas e dos conflitos sociais. Pretender que uma manifestação pontual seja ofensiva é ilusão que se costuma pagar com altas perdas humanas e de recursos;
    b) as manifestações deveriam ser concebidas como consequência de lutas nos locais de trabalho, moradia e estudo e não como ações para gerar visibilidade. Enquanto as primeiras expressam generalizações de lutas e são necessárias para propiciar intercâmbios e unificações vitais para o crescimento e a força da luta em curso, as segundas se contentam em “chamar a atenção” e obter simpatias em geral passivas. Não por acaso o PP publicou vários artigos chamando atenção para este problema.

    Há muito mais a tratar sobre este tema, mas para não alongar muito o comentário, fico por aqui.
    Saudações heterodoxas ao autor.

  6. Outro CH,

    Sobre as suas duas primeiras colocações (a de que, sendo as ações vinculadas ao fracasso dos objetivos políticos, elas acabam sendo uma forma de “retaliação” ou “ressentimento”; e a de que, sendo elas realizadas nos trajetos de recuo ou de avanço para os refúgios escolhidos, elas acabam proporcionando o mapeamento desses refúgios por parte da repressão): concordo, em parte, com o que você disse, mas, em primeiro lugar, meu objetivo era, na verdade, criticar a realização de ações que, sendo realizadas precipitadamente, acabam servindo de pretexto para a repressão, frustrando-se, assim, o objetivo político de um ato. Se o objetivo de um ato é fazer um catracaço num terminal, não faz sentido realizar essas ações antes de se chegar ao terminal e conseguir fazer o catracaço, por exemplo. O problema é que, para certos militantes, com os quais precisamos nos relacionar na luta, um ato deve ser, sempre e desde o seu início, ofensivo; mas, na verdade, um ato deve ir passando de um estágio a outro, progressivamente: não é possível querer ter sucesso quando as pessoas querem começar, diretamente, pelo estágio mais radicalizado. Também acho que não se pode pensar em termos de “retaliação” ou “ressentimento”, mas que se deve pensar em termos de “o que devemos e o que temos condições de fazer agora?”.

    Em segundo lugar, se os abrigos escolhidos tiverem que ser secretos, realmente não concordo que sejam proporcionadas, à repressão, condições para que se possa mapeá-los (no caso, uma trilha de destruição). Mas manter esses abrigos em segredo é, atualmente, algo muito problemático, pois a repressão dispõe, por exemplo, de suporte aéreo (helicópteros), e, num futuro próximo, talvez torne-se comum o uso de drones.

    Sobre a sua terceira colocação (sobre as ações serem capazes de aliviar a pressão sobre um grupo de manifestantes encurralados; e sobre elas serem capazes de desviar a atenção, da repressão, de manifestantes com baixa capacidade de deslocamento): eu, particularmente, penso ser melhor manter os manifestantes unidos, coesos, num mesmo bloco, do que separá-los; mesmo porque, o objetivo é impedir que hajam manifestantes encurralados (separados do bloco, portanto) e fazer com que todos os manifestantes, mantendo o bloco, possam buscar proteção para resistir. Se há manifestantes com baixa capacidade de deslocamento, os demais manifestantes não podem, em hipótese alguma, deixá-los à própria sorte. Mas isso é o ideal e nem sempre é possível fazê-lo: manter o bloco é quase impossível, quando se está sendo atingido por bombas de efeito moral e balas de borracha ou quando se está diante do avanço da cavalaria.

    Por fim, concordo com as suas complementações.

  7. CH,
    1) Criticar ações precipitadas é sempre pertinente quando se trata de enfrentamentos diretos com os CRE’s. Aqui talvez fosse o caso tão somente da dar maior precisão à redação.
    2) Tocas em ponto fundamental que complementa muito o texto e nossa troca de argumentos: toda ação direta deve incorporar a capacidade de evoluir para outra ação direta em um processo de mutação/adaptabilidade com a correlação de forças no terreno.
    3) Quando falamos em “local seguro” na verdade devemos pensar em um local que permita a dispersão dos manifestantes em segurança. Dispersar em segurança é tarefa das mais complexas e exige planejamento dos setores encarregados da organização da manifestação. Aliás, planejamento é central. Durante a ditadura civil-militar soube de um relato de uma ação direta (tomada de fábrica) que levou 5 meses de planejamento para 20 minutos de execução.
    4)Quanto a manter unidos os manifestantes, temos pleno acordo que, em regra, é o melhor. No entanto, levantei a situação considerando não como iniciativa própria dos manifestantes de se dividirem, mas como resultado provável de uma carga policial que consiga produzir tal efeito. Aí,diante do fato consumado, pode-se adotar a medida que me referi na outra mensagem.
    Tomara que esse texto e os comentários sirvam de instrumento de reflexão para ações mais planejadas e melhor executadas.

  8. Ótimo texto entretanto tenho algumas considerações sobre a questão da problemática do “isolamento” ou “encurralamento” de certas parcelas da manifestação.
    Vejo como uma evolução da ação das forças repressoras, por exemplo as tentativas de isolar previamente alguns setores da manifestação.
    Tais evoluções trazem elementos que dificultam planejamento por parte dos organizadores.
    Vejo que depois das jornadas de Junho, tanto a parcela do movimento mais combativo, criativo e compromissado com as pautas sociais, como e principalmente a esquerda institucional tem estado hipnotizada pela possibilidade de se criar grandes marchas, de um milhão de pessoas ou mais, numa só grande coluna, o que gera necessariamente um acorrentamento das possibilidades táticas do uso da rua como expressão de luta.
    Ou seja fica-se atrelado a certos trajetos, a certa ritualística, a certos pontos de encontro e dispersão, mas principalmente a determinados objetivos táticos.
    No Rio de Janeiro pode-se notar a absorção no cotidiano das marchas Candelaria- Cinelandia e mais recentemente Candelaria-Central-Prefeitura o que por um lado esvazia a importancia de atos como uma quebra do cotidiano, por outra facilita a gestão do “problema” pelo Estado, o manejamento do transito causado está cada vez mais bem gerido para exemplificar.
    Vejo dessa maneira que ousar estratégias e objetivos, trabalho de base, estudo das ações repressivas como fundamental.
    Entretanto há que se ousar, estratégias de diversas colunas de ação, reduzidas em numero de participantes, mas ampliadas na sua area de atuação ou abrangência de alcance, descentralizadas entretanto coordenadas, como foi feito nas famosas campanhas de Seatle, Genova, e mesmo na Alemanha uns anos atras, certamente dificultariam as ações da repressão e ampliariam a relevância das ações.
    Precisa-se em minha opinião romper com o unitarianismo tão cara a esquerda institucional, que sacrifica objetivos das manifestações pelo espetáculo representativo das grandes marchas tão caro ao centralismo democratico vigente nas mesmas.
    Desculpem pelo tamanho do texto mas é isso ae!

    Saúde e Liberdade

  9. O Liberó tocou num ponto essencial. Essas manifestações convocadas publicamente (inclusive com a divulgação do ponto de concentração, o que já potencializa o isolamento prévio de certos setores da manifestação), e geralmente por meio das redes sociais e por movimentos ou frentes que não desenvolvem, já, há muito tempo, um trabalho de base de forte enraizamento, são, a meu ver, incapazes de ousar diversas colunas de ação, descentralizadas mas coordenadas, como ele colocou. E há, também, um outro problema: elas acabam, como tentei refletir no texto, formando um agregado muito heterogêneo de pessoas: elas agregam pessoas mais despreparadas, mais ingênuas. Já vi crianças (de uns 10 de idade, aproximadamente) num ato relacionado ao transporte público, no meio de uns 200 manifestantes cercados, de todos os lados, pela tropa de choque, pela cavalaria etc. E, no mesmo ato, havia um cadeirante. Por sorte, não houve nenhum confronto, pois os agentes da repressão, em geral, não querem nem saber. É preciso refletir com cuidado sobre esse tipo de situação: se é para a manifestação ser uma espécie de evento cívico, cheio de cor e conduzido ao ritmo de cantos, batuques e gritos de guerra (um espetáculo mesmo), ou se é para ela ser um estágio relativamente avançado de desobediência e resistência civil contra o capital e o Estado capitalista. Pode ser que uma coisa exclua, necessariamente, a outra. Eu acho que, para se romper com o unitarismo, é necessária uma preparação, muito cuidadosa, de base. E, se se optar por uma estratégia descentralizada, é preciso haver um planejamento e uma coordenação dos objetivos, dos trajetos e das ações ainda maior: o esforço exigido será, sem a menor dúvida, muito grande.

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