Por Passa Palavra
1.
Numa entrevista recente João Ferreira, eurodeputado do Partido Comunista Português (PCP), diz a certa altura que «o que seria desejável seria uma dissolução da União Económica e Monetária», expressando deste modo o que desde há muito tempo o Passa Palavra vem dizendo a propósito do nacionalismo do PCP. Por muito que este partido evoque a defesa de uma cooperação europeia de outro tipo, pugnar por uma Europa de nações autónomas e autossuficientes no actual contexto de uma economia global é, para se ser simpático, um arcaísmo.
Nessa mesma entrevista, João Ferreira defende que desde a entrada de Portugal no euro que teria ocorrido «um período longo de corrosão do nível de vida em nome da manutenção no euro». Se se rejeitar o subjectivismo inerente ao que é o nível de vida de cada pessoa, um critério plausível de abordar é o Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Vejamos o período entre 1998 e 2010, portanto entre o último ano fora do euro e o último ano antes da intervenção da troika em Portugal. Ora, neste espaço o PIB per capita aumentou de 13.847 euros para 15.412 euros a preços constantes, como pode ver-se aqui (base+2006)-933). Um aumento acima dos 11%. Apesar de algumas oscilações, no período a tendência foi para um crescimento prudente. Se é óbvio que o crescimento foi inferior ao exigido pelos trabalhadores, é igualmente óbvio que este crescimento não se compadece com a tese de que o euro teria sido um período de corrosão do nível de vida.
Ainda sobre o euro, João Ferreira afirma que uma saída da zona monetária europeia seria boa para o país. Primeiro, falta saber o que é isso de país e como pode alguém à esquerda fazer campanha eleitoral em torno do slogan «defender os interesses do povo e do país», misturando classes sociais antagónicas no pântano conceptual do povo-nação. Mas igualmente grave é a sugestão de que com tal saída o «povo» e o «país» poderiam libertar-se «dos constrangimentos do Pacto de Estabilidade, da dependência exclusiva dos mercados para o financiamento do Estado com emissão de moeda própria». Também aqui Jorge Bateira defende que a emissão monetária de uma moeda nacional, contraposta ao euro, teria benefícios e que num «país onde capacidade produtiva está longe do pleno emprego» o risco de inflação não seria real. Curioso que autores que se reivindicam de Keynes e de alguns seus seguidores como Paul Krugman raciocinem em termos totalmente opostos aos dos seus mestres.
Num artigo recente, Krugman apresenta dois exemplos da relação entre a emissão monetária e a evolução da inflação. No primeiro gráfico este economista norte-americano evoca uma situação clássica: a um aumento da massa monetária e défices crescentes corresponde um aumento da inflação, precisamente os casos em que, como este autor afirma, «as economias estão constrangidas por uma oferta limitada», o que é o mesmo que dizer que a produção de bens e serviços e a produtividade estão estagnantes.
Ora, este é precisamente o caso que Jorge Bateira ignora. Numa economia estagnada e estruturalmente frágil, a elevação da emissão da massa monetária acarreta necessariamente um aumento correspondente da inflação, e não o inverso. Em teoria, Jorge Bateira poderia rebater o problema se colocasse a questão da recuperação económica no plano dos mecanismos da mais-valia relativa e do aumento da produtividade do trabalho. Mas ele não faz sequer isso e, pelo contrário, coloca no centro da sua agenda a questão monetária, esquecendo que moeda não é valor. As modalidades pecuniárias adquirem conteúdo dentro de determinadas relações sociais que promovem ou toldam o crescimento económico, não o contrário.
É de facto espantoso como os que mais criticam a financeirização, e se baseiam na tese de que a agiotagem estaria a sugar a riqueza da economia produtiva, são exactamente os mesmos que se propõem resolver problemas económicos estruturais relativos aos mecanismos da extracção da mais-valia meramente a partir de mecanismos financeiros e monetários.
Entretanto, e voltando a Krugman, o segundo gráfico apresentado por este autor representa o caso das economias desenvolvidas em que a elevação da massa monetária (por exemplo, o quantitative easing da Reserva Federal norte-americana) não rompe a dinâmica da produção e mantém a inflação num plano de estabilidade.
Ora, este segundo gráfico mostra duas coisas. 1) O ponto de partida para as crises e para a sua superação reside nos mecanismos da produção económica e 2) a “saúde” macroeconómica é perfeitamente possível, mesmo que a massa monetária seja elevada. Esta é assim uma dupla crítica que se pode endereçar aos nacionalistas e miserabilistas da esquerda portuguesa. Por um lado, demonstra-se que, ao contrário das suas teses delirantes sobre a falsa oposição entre capital financeiro e capital produtivo, a financeirização não actua necessariamente contra o desenvolvimento industrial. Pelo contrário, nas economias em que a mais-valia relativa impera, os mercados financeiros no seu conjunto, incluindo o mercado cambial, articulam-se com o crescimento económico. Ora, este segundo exemplo não é de modo nenhum o caso da economia portuguesa, pelo que aplicar este modelo à situação portuguesa actual não faz qualquer sentido. Temos assim que Jorge Bateira raciocina de modo totalmente oposto ao do seu mestre Krugman.
2.
Mas regressemos por breves momentos à entrevista de João Ferreira acima mencionada. Ali, o dirigente do PCP defende que «parte da nossa dívida resulta de um processo de especulação sobre os juros» e, referindo-se ao actual contexto de abaixamento das taxas de juro da dívida pública portuguesa emitida a 10 anos, afirma que «se é verdade que houve uma redução relativa dos juros sobre a dívida, ainda assim se mantêm em níveis insustentáveis».
A tese subjacente a estas declarações é a de que a economia portuguesa estaria a ser saqueada por intermédio de juros agiotas, através da intervenção da grande banca estrangeira. Junte-se o epíteto de judaica e o leitor facilmente identificará a similitude de argumentos entre parte da esquerda de hoje e a extrema-direita. A tese da agiotagem recobre assim o argumento da ingerência externa, transformando o social e económico em geopolítico. O que corresponde a um processo inerente a um modo de produção (e portanto transversal a qualquer sociedade nacional) é deste modo transformado num processo de natureza nacionalista.
A propósito da tese de que o euro teria elevado a especulação sobre as taxas de juro da dívida pública portuguesa a 10 anos vale a pena observar o gráfico abaixo.
Repare-se como antes do euro as taxas de juro andavam em torno dos 10% e até mais. Com a perspectiva de entrada na moeda única e com a correspondente adesão ao euro os juros andaram sempre em torno dos 4-5%. Se se exceptuarem os anos de crise económica de 2010 até inícios de 2013, verifica-se que o euro forneceu razoáveis condições de financiamento para a economia portuguesa. Por conseguinte, se entre 1999 e 2010 os juros foram, em média, menos de metade do verificado na década anterior, não faz sentido atribuir os problemas da economia portuguesa à adesão ao euro.
Ao mesmo tempo, a baixa dos juros durante a primeira década do século XXI demonstra que grande parte dos capitalistas nacionais não soube aproveitar a conjuntura financeira de então para fomentar a inserção da economia em bases modernas. Foram os capitalistas com menor inserção das suas empresas na economia internacional que menos aproveitaram o euro para reconverter tecnologicamente os processos de trabalho e, por essa via, aumentarem a produtividade do trabalho. Esta foi a situação inversa da Irlanda onde, na zona euro, os gestores aumentaram a produtividade em mais de 40% entre 1999 e 2011, ao passo que a produtividade em Portugal aumentou apenas 11%, correspondendo a 30% da produtividade irlandesa, como pode ver-se aqui.
A culpabilização imputada ao euro e a tese fantasiosa da ingerência externa não só não abordam o problema de fundo da evolução das economias no capitalismo como servem apenas para isentar os capitalistas mais arcaicos, os praticantes da mais-valia absoluta, da sua responsabilidade pelos baixos salários. Em boa verdade, é essa a função do nacionalismo actual no quadro da esquerda dos gestores da mais-valia absoluta, como pode ver-se aqui. Transformando o que é socioeconómico numa guerra geopolítica entre nações, os nacionalistas de esquerda obscurecem assim o seu projecto de edificação de um capitalismo de Estado, em que os capitalistas mais arcaicos se alinhariam aos novos gestores vindos da esquerda.