Por Passa Palavra

Enquanto cobríamos o ato dos moradores do bairro do Marsilac, que se acorrentaram numa das portas do prédio da Prefeitura de São Paulo para exigir uma audiência com o prefeito Fernando Haddad (PT) (mais detalhes sobre a ação podem ser obtidos aqui), alguns diálogos curiosos aconteceram entre, por um lado, o staff diplomático do paço que desceu para iniciar a negociação e agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e, de outro, os três moradores acorrentados mais três ou quatro militantes que davam apoio (entre eles, um membro deste coletivo).

Pode parecer óbvio tudo que será dito aqui, mas insisto, acho que pode servir a algum tipo de reflexão.

Uma das assessoras, aparentemente a mais nova, com seus 35 ou 40 anos de idade, tentava convencer os manifestantes de que aquela ação “radical” era desnecessária frente à vocação democrática e participativa da nova gestão. Sempre com muita educação e simpatia, ela invocava o fato de já ter sido “militante” e “ativista”, de acordo com as suas próprias palavras, para conferir legitimidade à lição de moral que procurava passar aos jovens aventureiros. “Eu, vocês nem imaginam”, dizia ela estufando levemente o peito e sorrindo em 180 graus à roda em torno dos acorrentados, “já fiz muito disso.” No mesmo instante, olhando de canto de olho para o chefe da GCM, este de meia idade e bem bonachão, e voltando rapidamente com ar de ironia para os manifestantes, como que buscando algum fio de cumplicidade, continuou em voz baixa: “Vixi! Coisa até pior, que… é melhor nem comentar, né?” Piscadinha. “Mas isso é besteira, não serve de nada.”

Corta. “Como assim, não serve de nada?” – pensei com os meus botões. “Pelo menos um bom emprego ela já arrumou.” Já nem falo aqui da asneira histórica que ela acabava de externar. Afinal dizia-nos isso do alto de um cargo de confiança no gabinete do órgão executivo da maior capital do país administrado por um partido político que se ergueu sobre indiscutível base popular e muita agitação política. Mas nem bem eu equacionava isso em minha cabeça, a assessora emendou: “Aqui a gente recebe todo mundo de portas abertas, era só ter vindo aqui e agendado uma audiência.” (Ignore-se neste momento o fato de o movimento já ter protocolado um pedido desse na semana anterior e não ter obtido nenhum retorno).

Tudo isso era rebatido pelos “ativistas” da atualidade, naturalmente, da mesma forma que era endossado com movimentos afirmativos de cabeça pela séquito de “ex” que rodeava a conversa com pranchetas nas mãos. Aconteceu-me então daqueles momentos raros em que um evento trivial – agradável até – tem o poder de revelar questões mais essenciais, no caso, sobre as artimanhas de uma nova lógica de governo. Explico adiante.

“Mas vamos ao que interessa” – interrompeu o bondoso inspetor. “Vocês estão aqui, o pessoal já disse que vai atender. Eu sei que vocês têm razão na reclamação de vocês, mas o jeito correto” – guardem este “jeito correto” –, “como a gente sempre tem feito aqui, é criando comissões. Vocês, então, soltam essas correntes, tira um pessoal de vocês, que eu tenho certeza que vai dar tudo certo.”

– “Onde tem água, por aqui, senhor?” – solicitou um dos manifestantes não acorrentado.

– “Não tem, a que tem é dos funcionários.”

– “Banheiro, chefe, é onde?”

– “Dá não” – lamentou.

– “Assessora tal, será que dava para trazer uma cadeira para eles” – apontou para os acorrentados – “sentarem?”.

– “Aí não é comigo, meu negócio é lá em cima; eles que sabem, fala com eles” – simpaticamente, ela repassou a bola para o inspetor.

– “Num dá, aí você me quebra. Se eu fizer um negócio desse aqui sem ordem superior eu vou ter que me ver com corregedoria depois”.

Importante dizer que, embora as respostas fossem negativas, nada disso soava grosseiro. E, oras, era de se entender o lado dele. Apesar de o chefe da segurança ser bastante amável, nosso amigo queria resolver o problema e liberar o saguão de entrada que estava interditado. Mas dava as dicas:

“Em mais de vinte anos de casa, eu nunca vi uma gestão assim. Eu conheço o Haddad, ele recebe o povo. Você pode vir sozinho aqui, não precisa ser de movimento, que quando dá ele recebe. Vocês vão conseguir, é só fazer certinho, não perder essa chance” – dizia ele, talvez tentando nos dissuadir da ideia de manter o acorrentamento e apressar a formação de uma comissão. Para quem quiser saber os desdobramentos dessa negociação, já disse, remeto ao artigo. Por ora, nos importa o decorrer dessa conversa.

“Todos os sem-teto ele sempre atendeu em um ano e meio de gestão. Esses dias mesmo, mais de 2 mil pessoas vieram aqui” – revezou a assessora, em continuidade ao que dizia o simpático inspetor. “Eu nunca tinha visto isso: o Haddad subiu no carro de som, foi aplaudido e deu a resposta que eles queriam”.

Pronto, caiu a ficha. “E deu a resposta que eles queriam” – ecoou por aquele saguão monumental. Sim, claro, como não? Eu é que não percebia antes. Quer dizer, sabia disso, já havia lido e apreciado outros fatos que apontavam para tal, mas é diferente você ver a coisa ali, cristalina, à sua frente.

Difícil contra-argumentar a assessora. Admito que não era de todo verdade o que ela acabava de dizer – “E deu a resposta que eles queriam” – mas também não era de todo mentira. Senão, como explicar o sucesso de 12 anos de gestão petista na esfera federal com grandes chances de se estender para 16? Pura fraude é que não pode ser.

O exemplo do movimento sem-teto (acho que eles se referiam a isto) foi repetido mais algumas vezes, tanto pela boca do inspetor quanto da assessora, o que me deixou a impressão de que aquele teria sido um caso emblemático, tido como um trunfo por todas as autoridades daquele prédio.

Entrelaçadas, as falas da ex-militante e atual assessora do simpático inspetor pareciam lançar no ar como que o segredo da esfinge, límpido para quem o quisesse ouvir: pequenas conquistas econômicas, sim, existem, desde que sem mobilização social, ou melhor, é bom até que haja mobilização, mas desde que orientada num sentido pré-acordado, circunscrita ao campo do previsível. Arriar a bandeira, baixar os punhos, apagar qualquer vestígio de autonomia e perspectiva de mudança radical, ou seja, a renúncia a qualquer possibilidade de protagonismo e incremento da consciência de classe – eis o passaporte para quem quiser acessar as benesses de nosso recente crescimento econômico. Talvez seja, também, a condição sem a qual não se sustenta esse tipo de crescimento – afinal, se uma outra moda pega, os resultados podem ser bastante sombrios.

O inspetor bem que tentou avisar sobre o primeiro termo da fórmula – “fazer certinho” – e a assessora não enganava quando atentava para o segundo – “a resposta que eles (nós) queriam (queremos)”. Pô, preço justo, bom pra todo mundo, né? É? Deve ser. Resta saber se também para uma esquerda que se reivindica anticapitalista.

A imagem de destaque é de Gustave Doré e as que ilustram o artigo, com exceção da primeira, são de Gustave Moreau.

2 COMENTÁRIOS

  1. E então Ulisses, no decorrer de sua Odisséia e após conquistar Tróia, passa pela Ilha de Capri – a famosa ilha das sereias de belo canto. Nenhum homem seria capaz de resistir a tal encanto – atirando-se no mar para a referida ilha e sendo por elas (as sereias) devorado. Ulisses, com efeito, não resiste a curiosidade e vontade em se deliciar com essas canções. Os demais tripulantes, com a devida proteção da cera em seus ouvidos, amarram Ulisses (com os ouvidos nus) ao mastro – a pedido dele mesmo. Por mais seus gritos fossem estridentes e que ele implorasse por ser desamarrado, os tripulantes não deveriam resgatar Ulisses.

    Será que apenas amarrado é possível resistir aos entoar das sereias?

    O canto da sereia é belo, maravilhoso, encantador, irresistível. Exerce fascínio e cega qualquer ser humano a respeito de seus efeitos e consequências. Mas, no fim das contas, o preço a se pagar para ouvir o canto das serias é a própria vida.

    Um preço justo?

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