Naquela época ocorria em França uma luta ideológica muito intensa entre a Igreja e a República. Tudo era sentido e apresentado à luz do conflito entre, de um lado, o laicismo e o racionalismo e, do outro, as sotainas e a superstição. Por João Bernardo

Léo Taxil
Léo Taxil

Uma criancinha nasceu em Marselha, a principal cidade do sul da França, em Março de 1854, e chamaram-lhe Marie Joseph Gabriel Antoine Jogand-Pagès. O nome Marie, desde que acompanhado por outros nomes masculinos, era dado com frequência a meninos, pelo que não há aqui razão para espantos. Também é natural que aos cinco anos tivesse sido entregue aos Jesuítas e tivesse passado com eles a juventude, porque naquela época era frequente recorrer às instituições religiosas para educar as crianças. E, o que não era raro também, Marie Joseph Gabriel Antoine saiu das mãos dos padres convertido num fogoso anticlerical.

Tornando-se jornalista e escritor, ele escolheu um nome mais eufónico, Léo Taxil, com que assinou obras como A Bíblia Divertida, O Evangelho Divertido, A Homossexualidade nos Conventos, As Pornografias Sagradas e As Amantes do Papa, que decerto não constituíam críticas muito profundas do fenómeno religioso, mas também não era isso que pretendia. Tinha leitores numerosos e assegurara uma reputação de escândalo, que em 1879 o levou aos tribunais devido ao panfleto Morte às Sotainas (À Bas la Calotte) e, como foi absolvido, mais célebre ainda ficou, sem precisar de incorrer em despesas com multas ou de passar pela prisão.

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«As Orgias de um Confessor»

Convém saber que naquela época ocorria em França uma luta ideológica muito intensa entre a Igreja e a República, que ultrapassava os outros problemas políticos e sociais ou, mais exactamente, condicionava a forma como se encaravam. Confrontos de classe, diferenças nos costumes, até as opções estéticas, tudo isto era sentido e apresentado à luz do conflito entre, de um lado, o laicismo e o racionalismo e, do outro, as sotainas e a superstição.

O choque de ideologias agudizou-se ainda mais quando, no pontificado de Leão XIII, iniciado em 1878, a Igreja prescindiu da sua ligação de sempre à monarquia e aceitou intervir politicamente nas instituições republicanas. Em termos práticos isto significava que a Igreja se abstinha na questão do regime e que, se não passara a defender a República, também já não a punha em causa. Foi uma considerável transformação estratégica, que condenou os monárquicos à irrelevância, e de então em diante a Igreja começou a criar em todo o mundo os seus partidos próprios, obedecendo geralmente à denominação de Democracia Cristã. Esta afirmação de autonomia política obrigou a Igreja a intervir nas questões laborais e a formular uma doutrina social, que Leão XIII explicitou em 1891 na encíclica Rerum novarum e que outros papas desenvolveram. Condenando a luta de classes, mas admitindo que o direito à propriedade privada ficava limitado por alguns condicionalismos de ordem social, e reconhecendo aos trabalhadores certos direitos, a Igreja adoptou o paternalismo patronal e fomentou o que os franceses chamam «sindicalismo amarelo», um sindicalismo exclusivamente conciliatório e que procura regalias económicas, sem usar as armas da luta contra os patrões.

«A Vida de Jesus»
«A Vida de Jesus»

Intervir no quadro político republicano implicava para a Igreja aparecer não já como um dos acessórios da monarquia, mas como representante de toda uma ordem social e de todo um corpo de ideias. Se Léo Taxil e os seus abundantes émulos no campo da República se divertiam a atribuir amantes aos papas e a fazer dos confessionários um lugar de orgias, do lado de lá outros jornalistas e escritores não se entretinham menos. O aparelho organizativo e ideológico central da República Francesa era a Maçonaria, e por isso era na Maçonaria que se concentravam os ódios do clero. O secretismo que rodeava as assembleias maçónicas fornecia um pretexto para todas as calúnias. Que horrores fariam aqueles homens de bigodes e barba (os padres usavam as faces escanhoadas) quando se encontravam? A que potências infernais apelariam? Com que perversos rituais consolidariam a confiança recíproca que os unia e os tornava tão temidos?

Diana Vaughan
Diana Vaughan

Foi então, em Abril de 1885, no auge desta batalha, que Léo Taxil anunciou que tivera uma visão e decidira converter-se ao catolicismo. Se as suas obras anticlericais haviam sido escandalosas, imagine-se o escândalo que constituiu a sua recepção solene no seio da Igreja, celebrada com tanto mais pompa quanto, como se sabe, o filho pródigo é sempre melhor recebido do que aquele que nunca se ausentou de casa. Com o mesmo afã com que antes atribuíra aos padres as maiores enormidades, Taxil começou a denunciar em volumes sucessivos e em numerosos artigos as enormidades ainda mais colossais das lojas maçónicas, e em 1892, graças aos subsídios da Igreja, ele fundou um jornal cujo título resumia tudo, La France chrétienne anti-maçonnique. Entretanto, fazendo-se porta-voz de uma tal Diana Vaughan, uma norte-americana, por sinal bonita moça, e divulgando o que ela lhe teria confidenciado, Taxil ia revelando ao grande público os cultos satânicos que até então a Maçonaria havia conseguido manter secretos no Rito Paládico Rectificado. Numa dessas sessões paládicas, uma certa noite, por exemplo, Satã, assumindo a forma de um crocodilo, tocara a transcrição para piano da ária Spunta l’aurora pallida, com que termina o terceiro acto do Mefistófeles de Boito. Nenhuma música seria mais apropriada para os melómanos luciferianos, e sobretudo proveniente do Reino de Itália, que o Papado tanto detestava. Noutras ocasiões eram orgias que o Rito Paládico organizava, e Satã fecundava então as pedreiras-livres. Tudo isto era divulgado em milhares de exemplares e lido devotamente pelo público católico, deixando indignados aqueles maçons que jamais tinham ouvido o diabo tocar piano nem o tinham visto fornicar com senhoras.

Léo Taxil colocara-se realmente no centro dos acontecimentos, e na luta ideológica da Igreja ele era um notório cruzado. Quando visitou o Vaticano, foi recebido por dois cardeais, um dos quais o Secretário de Estado, que o felicitaram pelas revelações feitas e pelo auxílio prestado à causa do catolicismo. É verdade que certos eclesiásticos mais circunspectos estranharam alguma coisa e o bispo de Charleston denunciou como uma fraude as confissões antimaçónicas da senhora Vaughan, que havia afirmado que o templo luciferiano do Rito Paládico se situava em Charleston. Mas o papa Leão XIII concedeu uma audiência a Léo Taxil e procedeu a uma reprimenda pública ao bispo céptico. Não deve ser todos os dias que o Sumo Pontífice toma o partido de um leigo contra um dignitário da Igreja. «Quando o Papa me perguntou “Meu filho, o que desejais”», contou mais tarde Taxil num artigo, «eu respondi-lhe “Santo Padre, morrer a vossos pés, aqui, agora!… Seria esta a minha maior felicidade”». Para que não restassem dúvidas, em 1896 Leão XIII enviou a sua benção papal ao Congresso Antimaçónico reunido em Trento, onde as denúncias da senhora Vaughan não foram consideradas indignas de crédito.

«Os Mistérios da Franco-Maçonaria»
«Os Mistérios da Franco-Maçonaria»

Mas os incrédulos, os cépticos, os inquietos eram mais do que muitos e em 1897 Taxil anunciou que a 19 de Abril ele e a senhora Vaughan fariam uma conferência nada menos do que na prestigiosa Sociedade de Geografia, em Paris, onde poriam as coisas a limpo.

Aparecendo sozinho, Léo Taxil explicou tranquilamente a uma assistência boquiaberta que tudo fora invenção sua, de uma ponta à outra, com a ajuda de dois cúmplices, um amigo e a própria Diana Vaughan, dactilógrafa e representante na Europa de uma marca de máquinas de escrever norte-americana e, disse-se depois, namorada de Taxil. Desde as manigâncias da Maçonaria até ao Rito Paládico, crocodilo incluído, tudo fora forjado. A polícia teve de proteger Taxil à saída da conferência, tal era a indignação dos padres e dos devotos que constituíam a audiência.

Poucos dias depois, a 25 de Abril, no jornal Le Frondeur, Taxil narrou minuciosamente a preparação do golpe e as dificuldades que tivera de superar para tornar credível aos olhos da Igreja a sua espantosa conversão. Num dos momentos mais hilariantes do artigo, ele conta a confissão geral dos seus pecados, que demorou nada menos de três dias, deixando o padre extrair-lhe um a um pecados sempre mais graves, mas mostrando no fundo uma certa reserva, para que o confessor se apercebesse de que alguma coisa restava ainda. Até que, aceitando enfim desvendar o fundo da alma, Taxil disse que se devera a ele o desaparecimento de um homem alguns anos antes, que todos os jornais haviam abundantemente noticiado. Estrangulara-o, ainda por cima com premeditação. E mediante a promessa de pagar a partir de então uma renda à viúva, Léo Taxil teve os pecados perdoados e foi aceite no seio da Santa Madre. Como desconfiar de alguém que inventara um crime tão horrendo, e que o reconhecia com uma tal perfeição de arrependimento? «Tenho o dever de prestar homenagem a esse reverendo padre jesuíta», escreveu Taxil no referido artigo. «Nunca os magistrados me inquietaram». Um grande passo fora dado, mas muitas outras dificuldades se ergueram na conquista progressiva da confiança do Vaticano, e Taxil superou-as todas, uma por uma, conseguindo ludibriar os mestres do engano até obter o apoio do próprio Papa.

O que ele tinha feito era mais do que um divertimento, mais do que uma arma, mais ainda do que uma arte, era uma maneira de viver, e Taxil evocou no seu artigo «essa alegria íntima que sentimos quando pregamos uma boa partida a um adversário, sem maldade, para nos divertirmos, para rirmos um pouco». E contou como em Marselha, com dezanove anos de idade, convencera as pessoas de que os tubarões estavam a assolar a costa, provocando durante várias semanas o pânico entre os banhistas e deixando as praias desertas, até que o Conselho Municipal pediu a intervenção do comandante militar da região, que equipou um navio com uma centena de soldados bem armados. Só quando os bravos guerreiros, depois de navegarem para lá e para cá sem encontrar traço de tubarões, regressaram a terra, é que as autoridades desconfiaram e, após um inquérito, descobriram a patranha − mas nunca descobriram o autor, que se confessava agora. Alguns anos mais tarde, em Genebra, na Suíça, onde se encontrava para fugir a uma condenação por abuso de liberdade de imprensa, Taxil convenceu os meios científicos de que haviam sido encontradas as ruínas de uma cidade sob as águas do lago Léman. Por toda a Europa os jornais receberam correspondências fantasistas sobre o assunto, sem saberem quem verdadeiramente as enviava. Chegaram turistas e até um arqueólogo polaco, que de regresso à sua terra pretendeu que havia conseguido discernir, no fundo do lago, os restos de uma cidade. Até que dois membros de um Instituto, mais cépticos ou mais científicos, puseram a balela a descoberto.

Léo Taxil, no fim da vida
Léo Taxil, no fim da vida

Foi assim, com estas invenções e muitas outras, conta Taxil, que ele chegou «à mais grandiosa mistificação da minha existência». «Primeiro, viera por curiosidade, um pouco ao acaso, mas propondo-me, evidentemente, retirar uma vez feita a experiência. Depois, quando o doce prazer do ludíbrio levou a melhor e passou a dominar, demorei-me no campo católico, desenvolvendo cada vez mais o meu plano de mistificação, divertido e ao mesmo tempo instrutivo, e dando-lhe proporções sempre mais amplas, ao sabor dos acontecimentos».

Léo Taxil conseguiu um feito notável, e não conheço outro de igual dimensão, o de desvendar pelo ridículo uma máquina plurimilenar de artifícios. Mas a Igreja vingou-se com a arma mais terrível que podem usar os poderosos, abafando o escândalo, fazendo-o cair no esquecimento, até que finalmente o silêncio envolveu o nome e a memória de quem a havia ridicularizado.

Eu, que sempre considerei a mistificação como uma das excelências do génio humano e que durante vários anos tive à cabeceira Les Copains, de Jules Romains, um livro que me inspirou para o resto da vida, presto aqui a minha homenagem, mais do que modesto discípulo, ao insuperável génio de Léo Taxil.

6 COMENTÁRIOS

  1. Segundo a wikipedia em português, Leo Taxil era um pseudônimo coletivo, o que tornaria o parentesco com Luther Blissett ainda mais forte.

  2. Caro Leo,
    Léo Taxil não era um pseudónimo colectivo. Foi o nome literário escolhido por Jogand-Pagès muito antes de ele ter pensado na mistificação que aqui relato. Segundo o que Taxil explicou na conferência de 19 de Abril de 1897, cujo texto foi reproduzido no artigo de 25 de Abril, ele teria contado apenas com dois cúmplices nesta mistificação: Diana Vaughan e um médico amigo.
    De qualquer modo, é interessante que ele tivesse escolhido o nome Leo. Premonitório?

  3. Acho que não foi premonitório não, João. Pelo menos não quanto a mim. Não sou bom de fazer essas coisas não.

  4. Apesar de não se tratar da mesma coisa, o artigo fez-me lembrar da acção dos letristas em 1950 na catedral de Nôtre-Dame (http://en.wikipedia.org/wiki/Notre-Dame_Affair).

    Num sermão da Páscoa, um deles sobe ao púlpito vestido de padre e proclama a morte de deus. E isso passou na televisão.

    Eis o texto do anti-sermão, que penso não ter conseguido ler na íntegra:

    « Aujourd’hui, jour de Pâques en l’Année sainte,
    Ici, dans l’insigne Basilique de Notre-Dame de Paris,
    J’accuse l’Église Catholique Universelle du détournement mortel de nos forces vives en faveur
    d’un ciel vide ;
    J’accuse
    l’Église Catholique d’escroquerie ;
    J’accuse
    l’Église Catholique d’infecter le monde de sa morale mortuaire,
    d’être le chancre de l’Occident décomposé.
    En vérité je vous le dis : Dieu est mort.
    Nous vomissons la fadeur agonisante de vos prières,
    car vos prières ont grassement fumé les champs de bataille de notre Europe.
    Allez dans le désert tragique et exaltant d’une terre où Dieu est mort
    et brassez à nouveau cette terre de vos mains nues,
    de vos mains d’orgueil,
    de vos mains sans prière.
    Aujourd’hui, jour de Pâques en l’Année sainte,
    Ici, dans l’insigne Basilique de Notre-Dame de France,
    nous clamons la mort du Christ-Dieu pour qu’enfin vive l’Homme. »

  5. Encontrei uma versão em português (da edição portuguesa de Marcas de Batôn, de Greil Marcus):

    Hoje dia de Páscoa deste Sagrado Ano
    aqui
    na insigne Basílica de Notre-Dame de Paris
    Acuso
    a Igreja Católica Universal do desvio fatal das nossas forças vivas na direcção do vazio celestial
    Acuso
    a Igreja Católica de fraude
    Acuso
    a Igreja Católica de infectar o mundo com a sua moral fúnebre e de ser o cancro da decomposição do Ocidente

    Em boa verdade vos digo: Deus está morto
    Vomitamos em cima da agonizante insipidez das vossas orações
    porque as vossas orações não têm sido senão fumo oleoso pairando sobre os campos de batalha da nossa Europa

    Prossegui, pois, o vosso caminho através do trágico e imenso deserto de um mundo em que Deus morreu
    e voltai a lavrar esta terra com as vossas próprias mãos
    com o ORGULHO das vossas mãos
    com as vossas mãos que só têm servido para rezar

    Hoje, dia de Páscoa deste Sagrado Ano
    Aqui, sob os auspícios da Notre-Dame de França
    proclamamos a morte do Cristo-Deus, para que o Homem possa finalmente viver.

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