Por Alex Hilsenbeck F.

Leia a 1ª parte deste artigo.

Ocupar a “casa do homem”. Conteúdos e formas.

cartaz msO fato é que certa clivagem ficará mais nítida com nova ocupação do Incra (desta vez por tempo indeterminado), que, para além da pressão no órgão governamental responsável pelos assentamentos, servirá mais como base de articulação com outros grupos e coletivos e para impulsionar ações diretas mais ousadas, como a contundente ocupação do Instituto Lula, visando a dar maior visibilidade à luta dos militantes.

Lula foi o Presidente da República que em 2006 assinou a concessão do terreno para fins da reforma agrária (e também foi o candidato que disse que se eleito faria a reforma agrária com uma canetada). Portanto, todo processo de legalização do assentamento ocorreu com o seu conhecimento e do órgão do governo federal responsável pelo assunto, o Incra.

A figura de Lula passou a ser alvo reiterado para as reivindicações, desde as assembleias às conversas de corredor, nos almoços e mesmo nos momentos de confraternização com os assentados. Um dos argumentos repetidos é de uma lógica bastante simples: o Assentamento Milton Santos teria sido uma criação do Lula, caberia, assim, a ele defender tal conquista. Isto é, teria sido no governo do Lula que eles foram assentados, portanto, e considerando a influência e mesmo um imaginário de ascendência sobre o governo de Dilma Roussef, este seria um dos melhores caminhos para conseguir a assinatura do decreto e a consequente resolução do problema. Rosângela, uma das assentadas, explicitou o motivo da ação direta: “Ocupamos o Instituto Lula pois precisamos que ele dê um empurrãozinho para a presidente Dilma manter o assentamento onde está (…) porque o Lula iniciou uma coisa que hoje a Dilma não está querendo se responsabilizar e continuar” [28].

De acordo com o comunicado dos assentados:

Nosso apelo é para que Lula ouça este último grito de desespero e transmita-o para as esferas do poder federal que realmente podem definir a nossa situação. Lembremos que há exatamente um ano, em um quadro bastante semelhante, 1600 famílias foram brutalmente despejadas da área do Pinheirinho. Um representante político como Lula, que agora tem a honra de batizar uma instituição que zela pelo “exercício pleno da democracia e da inclusão social”, não pode permitir que uma situação dessas se repita.

Confiamos que o peso de sua figura política é capaz de interceder em favor de nós, assentados, e estabelecer um diálogo mais direto com a presidente Dilma Rousseff para que se disponha a nos receber pessoalmente em uma audiência e assine o decreto de desapropriação por interesse social [29].

É óbvio que existiam leituras distintas, que não identificavam mais no ex-presidente uma figura pública capaz de solucionar a situação. O ataque a Lula poderia significar a perda de apoio de setores ligados ao governo (como deputados, vereadores, senadores, sindicatos). A “base” do MST e de outros movimentos (por supostamente serem lulistas) poderia não aceitar muito bem essa resolução. Tal ação poderia dar munição para os setores mais conservadores e retrógrados que não fazem parte do pacto neodesenvolvimentista de conciliação de classes. Poder-se-ia até argumentar que o ex-presidente havia há pouco tempo se curado de uma grave doença, como o é o câncer, e que isto levaria a uma oposição à luta do assentamento!

De fato, todos esses argumentos foram colocados no sentido de que os assentados desistissem da ideia de realizar algum tipo de ação política envolvendo a imagem do ex-presidente Lula. Como já se sabe, não adiantou.

Com os primeiros raios de sol a romper no céu cinzento da megalópole paulistana, numa quarta-feira, 23 de janeiro, cerca de 100 pessoas ocuparam uma instituição privada no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, ao lado de um batalhão da Polícia Militar. Conforme o comunicado, a ocupação do Instituto Lula ocorreu num momento de pura aflição e sentimento de abandono, em que os assentados entendiam que as alternativas jurídicas estavam esgotadas e que as promessas dos dirigentes do Incra e de representantes do governo federal – de que os assentados não sairiam das suas terras e que se necessário seria assinado o decreto por interesse social – poderiam não passar de promessas, sobretudo se não ocorresse pressão política e social.

LulaUma leitura, mesmo que rápida, do comunicado demonstra uma linguagem extremamente paternalista, que alça Lula à figura do bom pai, à qual se pede que interceda pelos assentados que ele havia criado. Caso nos detivéssemos somente na forma deste último comunicado, poderíamos supor que pouco avanço houve do ponto de vista da conscientização política, esbarrando a luta num modelo clássico de paternalismo e personalismo, tão presente nas pelejas das esquerdas latino-americanas.

Contudo, na análise das lutas sociais é necessário conseguir distinguir a exposição de argumentos no campo propriamente político e a coerência exigida na argumentação, tendo sensibilidade para compreender flexibilizações táticas (e linguísticas) e resistências estratégicas, conseguindo apreender a junção destas táticas em confronto com a prática, a resolução de questões pragmáticas e os objetivos estratégicos [30]. Analisando os desdobramentos da ocupação do Instituto Lula, podemos perceber que a forma de linguagem utilizada e o simbolismo desta ação tiveram o efeito de dar visibilidade nacional à luta do assentamento, que foi coberta por praticamente todos os grandes veículos de comunicação e pautou a discussão política no país.

Obviamente que isso está ligado aos usos políticos que setores da mídia corporativa e de partidos oposicionistas poderiam fazer, tanto em relação ao governo do PT quanto à figura de Lula. Junto com esse elemento, temos que considerar as notícias que haviam sido veiculadas quase na mesma época de que o governo de Dilma apresentava um dos piores índices (perdendo apenas para o do governo de Collor que sofreu o impedimento de continuar na presidência) no tocante ao assentamento de famílias para reforma agrária [31] e, ainda, a forma de linguagem utilizada no comunicado dos assentados.

OkamotoAo usar um discurso para um público externo (e não interno às lutas sociais), sem cair no radicalismo acusando o governo federal e mesmo o capitalismo pelos males de que padeciam, o comunicado tornou-se mais palatável para a grande mídia, sendo reproduzido na íntegra pelos grandes jornais impressos, como o grupo Folha de São Paulo e Estadão. Para o próprio governo, e mesmo para o ocupado Instituto Lula, seria difícil colocarem-se publicamente de forma mais dura e crítica aos méritos e legitimidade dos assentados. De fato, nas reuniões que estes tiveram com Paulo Okamoto (então presidente do Instituo) e Luiz Dulcci [32], não foi questionada a legitimidade sequer da ação dos assentados, pelo contrário, eles foram considerados “convidados”, mesmo que Lula tenha ficado “chateado” com a ocupação [33]. Por outro lado, as ameaças caso a ocupação continuasse puderam ser lidas no discurso ambíguo e nos “causos” contados da época em que também os atuais diretores organizavam ocupações.

Curiosamente o posicionamento criticando o ato da ocupação veio somente do Movimento Sem Terra. O MST divulgou nota negando participação na ocupação e ainda, conforme a assessoria de imprensa do Movimento, a ação foi qualificada como “inócua” e “ineficaz”, pois “Lula não está no poder, não é mais presidente. O problema não está com ele, nem ele pode resolvê-lo”[34]. O assessor de comunicação do MST, Igor Felippe, ainda afirmou que a “invasão” (termo bastante combatido pelo MST e usado pela grande imprensa para desclassificar as ações de ocupações de movimentos sociais) seria motivada por interesses partidários de setores do movimento Intersindical, que seriam mais próximos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – que nasceu de uma cisão do PT. Alegação que foi prontamente reproduzida por uma série de veículos de comunicação do campo governista e progressista, ainda que tenha sido negada por uma das lideranças do assentamento[35].

A crítica pública do MST seria mais um juízo isolado às ações diretas da base assentada, ou demonstraria que o Movimento estaria optando por uma saída jurídica e burocrática de negociações, excluindo assim a conjunção desta frente com a luta alicerçada na pressão e na ação direta dos assentados? Como indagou o coletivo Passa Palavra (2013):

Como entender sua afirmativa [do MST], veiculada pela imprensa corporativa num tom acusatório, estranho a um movimento social cuja força vem da solidariedade com todos os que lutam para acelerar a reforma agrária, de que a ocupação do Instituto Lula não seria ação do Movimento, mas de infiltrados do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e da Intersindical? Em manifestação anterior às duas ocupações, a presença de algumas das mesmas organizações, assim como muitas outras que as apoiaram, foi noticiada pelo Movimento sem qualquer conotação negativa, dando até a entender que tal apoio era bem-vindo.

Na análise deste coletivo comunicacional, apesar de o MST denunciar a morosidade da reforma agrária sob a gestão do governo Dilma, a criminalização da luta agrária pelo Judiciário e a hegemonia da burguesia sobre a justiça, o ponto nevrálgico que permite compreender a censura pública à ação dos assentados num processo de luta legítimo estaria no modelo de reforma agrária atualmente defendida pelo Movimento, que exigiria alto grau de integração com órgãos governamentais como o Incra, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério da Agricultura.

Não sendo esta uma questão de julgamento moral, temos que compreender que a mudança na base produtiva, das cooperativas agrícolas para a agricultura familiar, exige um tipo de enquadramento institucional que não se restringe ao MST, mas avança para os demais movimentos de luta pela terra que seguem o mesmo modelo, demandando uma estrutura organizacional em que um número reduzido de pessoas fica responsável e capacitada para solucionar pequenos conflitos através de relações de cunho mais pessoal, “por cima”, por meio de telefonemas e reuniões informais. Essa situação teria como uma de suas consequências a transformação das mobilizações de base, que ficariam assim mais restritas a atos simbólicos e menos a confrontos diretos, para não correrem o risco de romper a necessária confiança mútua que o enquadramento institucional determina.

Assim, a participação no projeto político da frente neo(nacional)desenvolvimentista, de composição de classes do governo, teria como uma de suas consequências a moderação.

Um dos perigos presentes nessa aposta é que,

Quando o MST censura publicamente sua militância de base por tentar criar alternativas através de ações de enfrentamento direto, está, na verdade, contribuindo para reforçar não apenas a legitimidade de instituições que combate, mas também a transferência da política das ruas para os gabinetes – exatamente o lugar onde, apesar de seus esforços, é mais fraco. Se este é o caminho que o Movimento pretende seguir em casos parecidos, esta incoerência aparentemente simples poderá ser a origem de suas derrotas (ibidem).

Outra ameaça é o aprofundamento de uma fissura entre direção e base, e entre diferentes bases do mesmo Movimento.

A partir disso podemos ter uma situação de forjamento de dois polos pretensamente opostos, em que a ameaça de divergência interna costuma ser uma atitude de defesa da organização em abstrato, mitificando-a como solução de todos os males presentes ou futuros. Converte-se, assim, uma parte da base e da militância em um “nós”, frente a outra parte transformada num “eles” (TRAGTENBERG, 1986; 2010).

Robustece-se uma ideia de que a existência de posições distintas debilita o movimento e a luta, passando a considerar as diferenças como negativas, como se qualquer crítica estivesse a fazer o “jogo do inimigo”, desclassificando-a como “a esquerda que a direita gosta”.

Necessitando preservar de desgastes as figuras de aliados e seus condutores, como Lula (ícone do PT e possível candidato às eleições 2018 ou futuras) e Dilma (candidata à reeleição). Daí a necessidade de desvincular-se da ação das bases assentadas no Milton Santos e buscar deslegitimá-la publicamente, ainda que tenha sido reconhecida, dias antes pelo próprio Movimento, a responsabilidade da presidente na única solução viável – a desapropriação por interesse social, o que depois tentou ser relativizado e retirado da alçada presidencial pelo termo de “imbróglios jurídicos”.

O risco é que se passe a uma espécie de dualidade na condução dos movimentos e das lutas, em que um setor é especializado na direção e negociação e outro na execução ou participação nas atividades acordadas e decididas na outra instância. Aqui, segundo escritos clássicos de Robert Michels, operam dois fatores: a própria dinâmica das organizações (a lei de ferro das oligarquias) e a simetria entre a forma organizativa da classe trabalhadora e a da classe dominante, em que o enquadramento institucional pelas políticas governamentais e de mercado tem peso decisivo. Este é, propriamente, um dos expedientes de ascenso de burocracias dirigentes dentro das organizações de esquerda.

reuniãoPara quem pôde acompanhar de perto a construção da luta dessas famílias do assentamento e alguns poucos grupos de apoiadores, ficou nítido tratar-se de uma situação em que a condução política foi levada adiante por uma coordenação orgânica do assentamento, em que os passos eram discutidos e decididos nas massivas assembleias com a base, e não apenas referendados nestas e previamente acordados por um pequeno grupo diretivo. Tal prática política, como indicamos, mostrou-se mais fruto da situação desesperadora do assentamento do que propriamente uma forma consolidada de estratégia, ainda que outros elementos, como a coordenação ampliada existente no assentamento tivessem sido decisivos nessa conformação.

No campo tático, a ocupação do Instituto Lula (por dois dias) mostrou-se acertada. Ainda que o diretor do Instituto (e ex-ministro chefe da Secretaria da Presidência da República nos oitos anos do governo Lula) tenha afirmado que “O instituto não interfere em decisões de governo. Não só nessa área, como em nenhuma outra” [36], reforçando a versão de que o ex-presidente não teria a capacidade de resolução do impasse, o preço político no campo governista foi elevado a um nível maior, comprometendo-o no âmbito nacional e internacional por possíveis desdobramentos.

jornal ocupaTanto isso é verdade que logo após a ocupação do Instituto (e considerando que o prédio do Incra em São Paulo já estava reocupado há uma semana), o ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas, e o presidente do Incra, Carlos Guedes, publicaram nota em que este último se comprometia a receber os assentados desde que deixassem a ocupação [37] (do Instituto). Além disso, matéria do jornalista político Roldão Arruda, no Estado de São Paulo, e clipada no site do Exército e do planejamento do governo, faz notar que a reação do governo diante a invasão do Incra teria sido recebida com “ar blasé” e protocolar, indigna de nota no site do órgão. Atitude diametralmente oposta se deu com a ocupação do Instituto Lula, que haveria causado “comoção e correria em Brasília”, com a viagem do presidente do Incra a Piracicaba-SP, onde tramita a ação judicial, seguindo para a sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região em São Paulo, e culminando com reunião com os assentados na sede ocupada do Incra-SP. “Atitude que poderia ter sido tomada dez dias antes” [38]. Do mais, algumas semanas depois esta versão de que o ex-presidente Lula não exerceria nenhum tipo de ingerência no governo de Dilma se desfez no ar, porém, deixou claro que se tratava de interferências ligadas aos interesses de grupos empresariais, como a Odebrecht e outros grupos capitalistas [39].

O fato é que seis dias após a ocupação do Instituto Lula foi suspensa a reintegração de posse por decisão do desembargador federal André Nejatschalow, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o que assegurou – por ora – a permanência das famílias nas terras do assentamento [40].

Essa decisão judicial não soluciona o caso, pois é uma medida paliativa que não define a propriedade da área. O Grupo Abdalla e a Usina Esther não apenas podem recorrer da sentença, como de fato já o fizeram, sem ainda haver uma resposta sobre tal pedido [41].

Para coordenadores do Milton Santos essa luta teria confirmado a possibilidade de negociação sob pressão com o governo, o que teria sido um método utilizado pelo MST até 2003. Neste sentido, a luta dos assentados do Milton Santos colocou em prática o que aprenderam na sua militância com o próprio MST (e que na visão deles foi abandonado pelo Movimento por causa da ligação ao governo Lula/Dilma). Mas, há que se notar que, mesmo se assim fosse, as formas de luta do Milton Santos não conseguiram ir além do então já experimentado pelo MST em outros tempos.

Do ponto de visa programático, além da permanência (mesmo que ainda provisória) na terra, outras medidas se fazem sentir, como diversos investimentos governamentais com vistas a valorizar o assentamento: obras para asfaltar as ruas, construção de um barracão para beneficiar hortaliças etc.; a transferência de policiais que – segundo os moradores – perseguiam os assentados, entre outras questões do cotidiano. Outra conquista a partir dessa luta foi recolocar o debate sobre políticas de assentamento e luta pela terra numa atmosfera que estava bastante rarefeita, sobretudo pela política do atual governo de não criar novas áreas de assentamento.

Logo após essa trégua momentânea (numa disputa jurídica que ainda permanece) para o Milton Santos, a presidente Dilma reforçou a atual linha de seu governo para a reforma agrária e seus laços com os movimentos rurais.

Em sua primeira visita a um assentamento desde que chegou ao Planalto, ela foi ao assentamento do MST em Arapongas (PR) – com direito a transmissão pela internet [42] – para lançar o Programa Nacional de Agroindústrias na Reforma Agrária, anunciar o lançamento de editais para que pequenos produtores rurais possam acessar cerca de R$ 300 milhões para investimentos, e mais R$ 300 milhões em crédito para processamento dos produtos de reforma agrária. Também participou da inauguração da agroindústria da Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), que reúne atualmente 18 cooperativas do MST no Paraná. Entre os “convidados” que foram à festividade no assentamento, ao lado da direção do MST e do ministro Gilberto Carvalho estava o senador Blairo Maggi (PR-MT) da bancada ruralista (saudado por Dilma no evento como um “grande produtor rural”), e o governador do Paraná, Beto Richa (PSDB) [43]. Poucos dias após o lançamento destes programas, o ministro Gilberto Carvalho reconheceu que existe certa tensão entre os movimentos sociais do campo e o governo, e classificou como “favelas rurais” muitos assentamentos no país. Por essa razão alegada o governo estaria freando o processo de reforma agrária para repensar o tipo de assentamento promovido [44], com foco no combate à extrema miséria no meio rural – por meio de políticas sociais como Bolsa Família, Brasil Carinhoso e Minha Casa Minha Vida – e na rápida integração das famílias assentadas a processos produtivos e ao mercado. Residindo exatamente aí, na política de créditos (totalmente desigual e em detrimento dos trabalhadores rurais) uma das chaves para entender a atual situação do campo nacional, em que a pequena produção é condicionada ao agronegócio.

A velha toupeira cava mais profundo na luta

Voltando ao caso concreto do Milton Santos, ele abrangeu um conjunto de lutas, externas e internas, implícitas e explícitas. Deu forma a uma consciência de classe e à existência diferenciada deste conjunto de assentados, com uma visão mais ou menos nítida de seus interesses imediatos, mas também do que envolvia de forma mais ampla estas preocupações particulares no quadro da conjuntura nacional de luta pela terra.

Assim, uniram interesses comuns e teceram relações orgânicas com outros setores da classe trabalhadora. Na ocupação do Incra, por exemplo, estiveram presentes distintas organizações políticas, que atuam em diversas áreas, tais como comunidades periféricas de São Paulo, sindicalistas, integrantes de saraus, MST, movimentos por moradia, grupos teatrais militantes, rádios livres, coletivos de comunicação etc., influindo de forma distinta no cenário político, social e cultural nacional, ensaiando a superação da setorização que ainda marca, em grande medida, as lutas (rurais e urbanas) [45].

video barracaoNeste processo, tiveram papel importante os vínculos cotidianos, secundarizando ou concorrendo com o protagonismo das instâncias diretivas, por vezes mais distantes da vida diária das famílias assentadas. Presenciamos o emergir de uma comunidade de trabalhadores rurais, comunidade que engloba o local de moradia, produção, sociabilidade e organização política, que foi se formando ao longo de quase uma década de lutas.

Todo esse processo de luta significou claramente um momento acelerado de formação política, com a radicalização dos assentados em ações diretas, mas também nos espaços de negociação com representantes governamentais, ex-representantes e dirigentes políticos. Retomando Rosa Luxemburg (2011), os assentados foram adquirindo e refinando a consciência política na própria luta, o que levou um morador a nos contar que:

Foi uma porretada em todo mundo, foi porrada no governo, mas também nos assentados, o que fez os assentados caminhar juntos. Estávamos acomodados, cuidando de nossos lotes e essa luta trouxe uma união maior. Acho que isso deu uma consciência de classe que penso que 4 anos de faculdade não dá [46].

No que uma assentada afirmou que:

Se não tivéssemos ido para a luta não teria assentamento. Acho que não estaríamos aqui, nossas casas estariam no chão. Eu achei que a coisa tava fácil de resolver, mas quando fui para São Paulo percebi que a coisa tava bem difícil. E esse governo, que tá como uma pata choca, só vai ajudar a classe trabalhadora através da pressão mesmo [47].

oficina de zineEsse processo de luta e educação política prosseguiu com atividades que foram realizadas tanto dentro quanto fora do assentamento, em que participam variados assentados (e não apenas membros da coordenação), como por exemplo, nos eventos de solidariedade e de formação política, como ocorreu junto à Rede de Comunidades do Extremo Sul e em debate na USP [48], e em lutas mais pontuais de sindicatos e ocupações.

No âmbito interno e mais “mundano” do assentamento ações também ocorrem, como o evento de cultura e de balanço da jornada de luta, e a incipiente criação de uma rádio livre. Porém, igualmente sucedem mudanças políticas relevantes que geralmente são creditadas apenas aos momentos de ocupação, em que a solidariedade e a formação política, por necessidade, afloram mais visivelmente. Através dessa luta laços de amizade entre os assentados se refizeram, e pessoas que haviam deixado de se falar por questões corriqueiras do cotidiano aprofundaram o sentimento de comunidade. Como nos relatou uma assentada:

Em sete anos de vizinhança nunca havia recebido a visita de ‘Margarida’, mas como eu estava no assentamento, mas sempre em contato com o pessoal em São Paulo, ela sempre vinha me perguntar como estavam as coisas, se eu precisava de algo, agora ela leva até doce para mim. Foi um chacoalhão que juntou todo mundo.

De igual maneira, as relações dos moradores com as pessoas de fora do assentamento, que eram marcadas por bastante desconfiança, também passaram por uma melhora qualitativa:

A relação com as pessoas de fora melhorou muito. Nos sentimos menos desprezados, que não olham para meu pé rachado, que são pessoas iguais a nós.

E, por demanda dos assentados, iniciou-se um projeto de formação educativa e política na comunidade.

assistindo teatroCostuma-se depreciar, ou não prestar tanta atenção à cultura política que é gestada e desenvolvida nos espaços de organização informais, como aqueles formados por unidades coletivas elementares, pautadas pelo relacionamento cotidiano, no contato direto e permanente, como na comunidade criada no assentamento, que vai além das instâncias e divisões organizativas entendidas como mais políticas. Essa organização informal é menos visível, o que a torna mais difícil de mensurar, resultando – não poucas vezes – em aspectos não considerados na história das lutas sociais (CASTORIADIS, 1979) [49].

Uma dentre as várias lições que se pode extrair dessa experiência concreta do último período de intensa luta dos assentados do Milton Santos é que a luta de classes não consiste tão somente nos grandes eventos realizados sob o holofote da imprensa (ocupações, manifestações, greves de fome, paralisações de rodovias que também houve). Uma parte decisiva dessa luta é produzida na calada de uma resistência cotidiana (SCOTT, 2000), invisível para os que dela não participam. No entanto, ela representa um papel fundamental no confronto sistêmico e para fomentar os grandes eventos que passam a adquirir visibilidade e importância, constituindo-se como cimento da luta de classes. O que já foi denominado, em outras circunstâncias, como a toupeira da história.

Isto demonstra que os microconflitos, isto é, as lutas por vezes locais e concretas, baseadas mais numa plataforma prática (como foi a luta do Milton Santos), e menos numa base estritamente ideológica ou em programas gerais e abstratos, são componentes importantes para a perspectiva que tem como marca minar o fundamento do próprio sistema.

Não pretendemos com isso mitificar a luta do Assentamento Milton Santos (uma luta que os assentados não escolheram), nem supervalorizá-la, mas apontar certos elementos que – embora em pequeno grau – servem de ensaio e potencialidades para os conflitos sociais atuais, pelo aprendizado dos erros e acertos realizados.

No processo de luta pela permanência na terra dos assentados do Milton Santos, apesar de toda a limitação colocada pela urgência da situação, formas alternativas de organização foram sendo desenvolvidas, com grupos horizontais que buscavam a superação entre divisões hierárquicas, em que saberes foram compartilhados e reconquistados da expropriação e compartimentação realizada pelo capitalismo. Foi o que se pode vivenciar, por exemplo, pelos grupos culturais e de comunicação, que procuravam uma forma de auto-organização horizontal.

Passou-se de uma derrota iminente a uma vitória parcial, em que se somam os aspectos concernentes ao ambiente político mais amplo, bem como modificações na vida cotidiana do assentamento. Através da luta e da ação direta, de modo coletivo e ativo, houve um processo de avanço na formação política em cada participante, assentado e militante. A luta do Assentamento Milton Santos também pode ser lida como um ponto de inflexão no cenário político nacional no qual se percebia uma tendência, nos últimos anos, de declínio das grandes mobilizações de caráter mais radicalizado, gerando uma fissura em determinado projeto de conciliação de classes através do enfrentamento (pela esquerda) com os governos (em suas distintas instâncias).

Num contexto em que parecia que a classe trabalhadora se via na condição de aceitar os espaços pré-estabelecidos pelas instituições governistas como o único caminho a seguir, e que a única política realizável seria a política do possível, reduzindo as expectativas ao determinado pela burocracia, a conexão realizada entre a luta mais específica e a luta política do Assentamento Milton Santos deparou-se com a irredutibilidade do governo petista, e não apenas dele, mas também das forças políticas vinculadas ao campo governista. Nesse sentido, a luta dos assentados do Milton Santos permitiu a cristalização de contradições e a compreensão da atual correlação de forças na sociedade brasileira. Mesmo que possa parecer pouco, é algo que não estava colocado tão claramente há pouco tempo, e que gerou uma pequena fissura no consenso instalado.

Para Firmiano (2013),

(…) a luta das 68 famílias do assentamento Milton Santos vem desmontando qualquer “pacto de pacificação” ou prática de cooptação (que, no melhor sentido, significa tirar a possibilidade de ação política do sujeito em luta) que este governo tenta “assinar” com os trabalhadores e trabalhadoras. (…) O confronto hoje aberto entre esta fração organizada da classe trabalhadora e os arautos do desenvolvimentismo contemporâneo elucida a contradição viva entre a expansão do capital impulsionada pelo petismo e as forças do trabalho. E contém um elemento político fundamental. Pois se a contradição entre trabalho e capital é inerente e interna à lógica do sistema do capital, e sua radicalização ganha maior ou menor projeção de acordo com a conjuntura política, o enfrentamento entre as classes é um ato de vontade dos sujeitos organizados.

Nas palavras de um assentado:

Só vai ter conquistas para nós com luta, é o que eu acho no meu pensamento. E acho que ainda vai dar trabalho essa história do assentamento. Sair não saímos mais, mas ainda acho que isso vai dar trabalho (…) Teve um divisor de água, pois eu mesmo achava que o problema ia ser resolvido pelo governo, esse divisor foi a ocupação da secretaria da Dilma. Aí nos demos conta e vimos quem estava disposto [50].

As famílias do Assentamento Milton Santos viram-se no centro de uma contradição da luta no campo, alçando este conflito de uma questão imediata para o nível de enfrentamento político nacional. Desse modo, o Assentamento nomeado Milton Santos deixou mais que uma homenagem de batismo a um intelectual autodefinido como “outsider”, um marxista heterodoxo e em luta contra as formas de opressão e dominação de onde viessem. O assentamento deixou uma história de lutas.

Notas

[28] Cf.: Coletivo de Comunicação Assentamento Milton Santos. Video: Ocupação do Institutuo Lula – “Aí se a moda pega”. Passa Palavra, 24 jan. 2013.
[29] Cf.: Por que ocupamos o Instituto Lula. Passa Palavra, 23 jan. 2013.
[30] Dito de outro modo, este foi um dos ensinamentos da Ciência Política moderna com Maquiavel, mas que por vezes é esquecido nas análises que tendem a considerar o discurso político como expressão pura da prática e da estratégia.
[31] Cf.: Reforma agrária pode ter seu pior ano desde 1995. Exame, 19 nov. 2012.
[32] Luiz Dulcci foi Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência nos governo Lula de 2003-2010, sendo sucedido por Gilberto Carvalho no governo Dilma.
[33] Cf.: Lula fica ‘chateado’ com invasão de Instituto. Agência Estado, 23 jan. 2013.
[34] Cf.: Para MST ocupação do Insituto Lula é inócua. Rede Brasil Atual, 23 jan. 2013 e cf.: Racha do MST ligado ao PSOL invadiu Instituto. 247, 24 jan. 2013.
[35] Cf.: Sem-terra nega viés político na invasão do Instituo. Agência Estado, 23 jan. 2013.
[36] Cf.: Ex-ministro de Lula diz que instituto não vai interferir por assentados. Folha de S. Paulo, 23 jan. 2013.
[37] Essa reunião ocorreu em clima tenso na sede ocupada do Incra. Cf.: Nota pública: Assentamento Milton Santos. Portal Ministério do Desenvolvimento Agrário, 23 jan. 2013.
[38] Cf.: Agilidade do poder público no caso põe instituto Lula na mira. Estado de S. Paulo, 31 jan. 2013.
[39] Cf.: Lula diz a executivos do Peru que pediu melhoria de ponte a Dilma. Folha de S. Paulo, 06 jun. 2013. No exterior, Lula promete repassar pedidos para Dilma. Folha de S. Paulo, 22 mar. 2013 e Instituto diz que objetivo de Lula é o interesse da nação. Folha de S. Paulo, 22 mar. 2013.
[40] Disponível em: Assentamento Milton Santos.
[41] Disponível em: Assentamento Milton Santos.
[42] Cf.: Visita de Dilma a assentamento será transmitida pela internet. MST, 04 fev. 2013.
[43] Cf.: Dilma saúda produtor rural em evento do MST. Estado de S. Paulo, 04 fev. 2013. Tão diversificadas presenças políticas num assentamento do MST simbolizam bem o que vem a ser o pacto para a composição de classes nos governo do PT. O ruralista Blairo Maggi, ganhador do irônico prêmio Motosserra de Ouro do Greenpeace é o presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado. Essa comissão ambiental tem entre seus 17 titulares os ruralistas Garibaldi Alves Filho, Ivo Cassol, Kátia Abreu e José Agripino, além do também ruralista Eunício Oliveira como suplente de seu “companheiro de latifúndio” Ivo Cassol. No entanto, não há nenhum nome ligado direta e conhecidamente à politização da causa ambiental. Cf.: O silêncio da sociedade sobre Blairo Maggi na comissão de meio-ambiente do Senado. Consciência, 23 mar. 2013.
[44] Cf.: Gilberto Carvalho admite que há tensão em assentamentos. Folha de S. Paulo, 08 fev. 2013.
[45] Lúcio Flávio de Almeida, referindo-se à luta do assentamento Milton Santos observou que: “As esquerdas brasileiras, especialmente seu subconjunto anticapitalista, apresentam imensas dificuldades para se unificarem em questões práticas. Permanecem incapazes de responder a um grande potencial de novas lutas proletárias, subproletárias e de baixa classe média – para nos restringirmos a estes segmentos das lutas populares. Desta forma, contraditoriamente, dão sua parcela de contribuição para que somente sobrevivam as práticas coletivas dos dominados que estejam sob a tutela mais ou menos explícita do Estado ou mesmo de certos governos. Depois fica fácil teorizar que as lutas que predominam são marcadas pelo corporativismo”.
[46] Entrevista, 30/04/2013.
[47]Texto em negrito Entrevista, 29/04/2013.
[48] Cf.: Convite do encontro de formação. Rede Extremo Sul, 11 mar. 2013.
[49] “A atividade do proletariado em geral somente tem sido conhecida e reconhecida na medida em que tem sido explícita ou manifesta, e se desenvolvido à luz do dia (…) as lutas explícitas correspondem a maioria das vezes, para bem ou para mal, aos conceitos e às categorias que o teórico já construiu, às características e às variáveis do regime instituído, que considera como fundamentais, às formas de ação que entende que pode inserir em suas estratégias” (CASTORIADIS, 1979, p. 71).
[50] Entrevista, 30/04/2013.

Referências Bibliográficas

CASTORIADIS, Cornelius. La experiencia del movimiento obrero, vol. I. Barcelona: Laia B, 1979.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: STÉDILE (Org.). A Questão Agrária no Brasil vol. 7. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 173-217. 2013a.
FIRMIANO, Frederico Daia. A luta necessária em defesa do assentamento Milton Santos. Brasil de Fato, 29 jan. 2013.
LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos. In: LOUREIRO (Org.). Rosa Luxemburgo: Textos escolhidos, vol. I. São Paulo: Unesp, 2011, p. 263-349. 2011.
MAURO, Gilmar. É preciso investir no processo de formação. In: LOUREIRO, Isabel (org.) Socialismo ou barbárie – Rosa Luxemburgo no Brasil. São Paulo: IRLS, 2008, p. 90-105.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A Questão da Aquisição de Terras por Estrangeiros no Brasil. Um retorno aos dossies. São Paulo: Agrária, 2011. v.1. p.3-113.
PINASSI, Maria Orlanda. É grande o risco de um novo massacre, agora no Assentamento Milton Santos. Entrevista de PINASSI com BRITO, Gabriel; NADER, Valéria. Correio da Cidadania, 17 jan. 2013.
SCOTT, James. Los dominados y el arte de la resistencia. Ciudad del México: Era, 2000.
TRAGTENBERG, Maurício (1986). Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo: Moderna.
__ (2010).O capitalismo no século XX. 2ª. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Unesp.

1 COMENTÁRIO

  1. Gostei! Já ouvi e li por aí outras versões dessa luta. Essa trouxe um panorama diferente do que acompanhei na época, mais completa, permite certa síntese desse processo e também diversifica o olhar, demonstrado que a história também é uma luta de significação do presente. Só acho que está muito longo, demorei um bocado pra acabar de ler rsrsrs. Mas penso que seria importante pela sua relevância o texto ser entregue impresso para pessoas do assentamento, porque não deve ser tão fácil por lá o acesso on-line e a cultura de longas leituras no computador.

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