A empresa vencedora da área menos lucrativa ganhará algo em torno de 3,5 bilhões de reais, enquanto a mais lucrativa se aproxima dos 4 bilhões de reais. Por Daniel Caribé

Neste artigo, dividido em três partes (leia a parte 2 e a parte 3 clicando aqui), procuro contextualizar o Edital de transportes públicos de Salvador e a licitação regulada por ele. Além de resgatar os principais debates em torno do Edital e da licitação, busco apontar o que considero serem os maiores problemas pelos quais passaremos — nós, os trabalhadores soteropolitanos — nos próximos 25 anos. O Edital e seus anexos poderão ser baixados somente aqui, já que não se encontram disponibilizados em nenhum dos canais oficiais da Prefeitura de Salvador. Recomendo a leitura do artigo anterior, “Onde vivem os editais”, por tratar do mesmo tema, porém colocando-o no contexto das mobilizações que acontecem há mais de um ano no país. As questões relativas à bilhetagem eletrônica serão discutidas em um artigo à parte.

I

PI05Não se sabe quando começa esta história. Apesar do prefeito, ACM Neto (DEM), alegar que desde a gestão anterior está sendo construído o edital de transportes que regulamentou o processo licitatório para a escolha da empresa ou consórcio que prestará o “serviço público de transporte coletivo de passageiros de ônibus urbanos do Município do Salvador” (objeto retirado do próprio Edital) para os próximos 25 anos, reivindicando as audiências públicas realizadas em 2012 quando nem sequer era candidato a ocupar o atual cargo, a licitação que está em sua fase final em nada tem a ver com os processos anteriores.

Um forte indício de que o que agora é reivindicado para legitimar o processo licitatório na realidade não tem ligação alguma com o que foi apresentado à população de Salvador é que não há registro da participação das pessoas e de movimentos sociais nas audiências de 2012 e as recomendações e críticas não estão disponibilizadas em nenhum lugar. Uma leitura comparada da minuta apresentada no final 2013, a primeira de que se tem notícia, com a última versão disponibilizada em abril de 2014, já nos mostra que em apenas seis meses tudo mudou, sem contudo terem sido os movimentos sociais e os espaços consultivos à população os responsáveis por tal revés.

Tentamos mostrar no artigo anterior, “Onde vivem os editais” que as mobilizações que se iniciaram em junho de 2013 e se estendem em muitos locais até hoje, por terem sua origem na insatisfação da população em relação ao sistema de transporte público, fizeram com que os empresários do setor se movimentassem com o objetivo de impor um novo arranjo institucional e que este novo arranjo fosse capaz de garantir a perpetuação deles no poder. Os editais de transportes que foram lançados à suposta consulta pública desde então, e Salvador não é diferente, nos indicam exatamente isto. Apesar da Prefeitura de Salvador reivindicar as supostas audiências públicas de 2012 como marco inicial do processo que agora se encontra em estágio avançado, seu início não pode ser ali datado e foram as manifestações de junho de 2013 para frente que aceleraram os planos e deram formato de leis e contratos aos interesses dos empresários do setor de transportes.

Além das supostas duas audiências públicas em 2012, ainda na prefeitura de João Henrique (que passou por diversos partidos durante suas duas caóticas gestões), e portanto antes de existir uma minuta para ser questionada ou aprovada, o Edital busca se legitimar através de mais duas outras audiências (em dezembro de 2013 e fevereiro de 2014). Em texto publicado no jornal A Tarde em 14/07/2014, o secretário municipal de Transportes e Urbanismo em Salvador, Fábio Rios Mota, tenta dar ainda maior legitimidade ao processo alegando também a colaboração do Tribunal de Contas dos Municípios e do Ministério Público do Estado da Bahia.

O próprio Edital, nas suas primeiras linhas, ressalta que o presente instrumento foi elaborado tendo por base o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público do Estado da Bahia, além de se embasar na Lei Federal de Mobilidade Urbana (12.587/12). Também ressalta o Convênio de Cooperação Intrafederativo de 01/2012 de janeiro de 2012 e o Contrato Programa de abril de 2014, ambos firmados com o Governo do Estado da Bahia e o Município de Lauro de Freitas (pertencente à Região Metropolitana de Salvador). É desta forma que o próprio Edital aponta aos seus poucos leitores que tiveram acesso ao documento as fontes das maiores críticas: a falta de participação popular e a fraude das audiências públicas; a contraditória colaboração do Ministério Público; acordos com o Governo do Estado que agora se tornou o mais forte crítico do Edital; e a Lei de Mobilidade Urbana que foi simplesmente atropelada.

Quanto ao Ministério Público do Estado da Bahia, para não causar confusões futuras é importante agora pontuar que o mesmo de fato atuou, principalmente através da promotora Rita Tourinho, para legitimar o Edital. “De acordo com Tourinho, que acompanha os debates sobre o tema desde 2006, ‘o MP entende que todos os questionamentos sobre o processo licitatório foram respondidos pelo município. Seria irresponsabilidade do MP ser contra só agora’”, ressalta em outra reportagem do jornal A Tarde, de 16/07/2014, ao explicitar a posição do Ministério Público acerca das críticas que só agora faz o Governo do Estado. Entretanto este artigo faz uso de outros tantos documentos do mesmo Ministério Público, obtidos junto a outra promotora, Hortênsia Gomes Pinho, titular do Núcleo de Habitação e Urbanismo, que se colocou contra os diversos pontos do Edital e do seu processo de construção, mostrando que não é em tudo verdade o que afirma a primeira promotora.

Voltando à falta de participação popular na construção do Edital, a vontade de incorporar sugestões e de se fazerem efetivas as demandas dos mais diversos grupos sociais foi tamanha que o documento nem foi disponibilizado em local de fácil acesso, como já pontuado. O Diário Oficial do Município, do dia 03/04/2014, nos informa que “o edital e seus anexos estarão à disposição dos interessados para aquisição (…) mediante a entrega de mídia eletrônicas para gravação dos arquivos” e três meses após esta publicação as empresas deveriam apresentar suas propostas. Claro que neste tempo conta o intervalo de um mês pelo qual quase todo o país paralisou por causa da Copa e que o aparato repressivo se postou para reprimir qualquer mobilização social.

Já na atual gestão, que começou em janeiro de 2013, um pouco mais de um mês depois do lançamento da primeira minuta, aconteceu a primeira audiência de que se tem notícia, no dia 19 de dezembro de 2013. A audiência não contou com a participação do prefeito e do ex-secretário da pasta de Urbanismo e Transporte. José Carlos Aleluia Costa (agora candidato a deputado federal pelo DEM) foi o representante do poder municipal, como se pode ver no texto do Tarifa Zero Salvador que introduz a representação protocolada junto ao Ministério Público do Estado da Bahia, de que recomendo a leitura completa: “Ausência de respostas aos questionamentos feitos pelos presentes, atropelo de falas, ironia destilada em sorrisos e ausência de atenção aos apelos dos presentes, verdadeiro interesse em não dar mesmo ouvidos ao que se falava na audiência ‘pública’, fato bastante ilustrado pelo fato de que o Sr. Aleluia permaneceu brincando em seu celular, ou falando ao telefone durante quase toda a audiência foram as marcas do espaço.”

P102Mas tudo isto teria sido um grande problema para a Prefeitura se encontrasse a mínima oposição, o que também não aconteceu. Os movimentos sociais que lutam pela mobilidade urbana praticamente só ressurgiram na cidade após as mobilizações de junho de 2013, não tendo nenhum deles força social nem competência técnica para enfrentar uma Prefeitura com altos índices de popularidade, ainda mais em um contexto de forte criminalização. Os demais movimentos que lutam pelo direito à cidade, com histórias mais consolidadas e base social mais certa, não direcionaram seus esforços para este processo. E as oposições partidárias são, neste momento, completamente desinteressadas das necessidades cotidianas da população, quando não financiadas pelas mesmas empresas que bancam os seus opositores, entre elas o Sindicato das Empresas de Transporte Público de Salvador – SETPS, encontrando o Edital pouca resistência na câmara de vereadores e demais espaços institucionalizados, assim como nas ruas.

Só agora o debate público em torno do Edital foi efetivamente aberto, após o governador do Estado, Jaques Wagner (PT), em final de mandato, ter ameaçado barrar na Justiça o processo que já se encontrava na fase de apresentação de propostas. Estes são os gestores que tropeçam uns nos outros, e suas ações, quando feitas com muito atraso, soam tão patéticas quanto o silêncio que perdurou por todo o período anterior. Às vésperas de um processo eleitoral que promete ser acirrado, com o Partido Democrata (DEM) apostando suas fichas no ressurgimento nacional da sigla a partir da Bahia e o Partido dos Trabalhadores (PT) buscando não perder um dos maiores colégios eleitorais do país nem repetir as vergonhosas derrotas nas duas eleições para prefeito da capital, é difícil não acreditar que este interesse repentino do governador do Estado pelo Edital, já agora quando pouco pode se fazer para reverter o desastre, vá além da bravata.

Quando questionado se iria provocar o poder judiciário contra o Edital, o governador afirmou, em matéria também publicada no jornal A Tarde de 15/07/2014: “Vou avaliar calmamente, porque estou pensando, principalmente, é no interesse público. Numa licitação onerosa, vai ganhar quem paga mais, e, é evidente, a empresa (vencedora) vai tirar isso do povo”. E já agora, prestes a tornar público este artigo, parece que a promotora Hortênsia, contrária ao Edital, ganha destaque, como podemos observar na reportagem do dia 03/08/2014 do mesmo jornal que anuncia a possibilidade de judicialização do Edital.

O Governo do Estado alega que o Edital não levou em consideração o órgão constituído recentemente para gerir o transporte urbano metropolitano e que por isso precisaria ser refeito. Além disto, os partidários do governo só agora passaram a reclamar do critério de avaliação das propostas, que é o de maior oferta de pagamento pela outorga da concessão (a empresa que se propuser a pagar um maior valor à Prefeitura saíra vencedora), apresentando a “menor tarifa” como o critério mais justo. Manuel Ribeiro, engenheiro civil e secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, em polêmica com a Prefeitura, afirmou no dia 14/07/2014 que:

“O que fez o governo do estado, ao constituir a Entidade Metropolitana, foi modernizar e democratizar uma lei vigente do tempo da ditadura e, com base na Constituição, criou uma entidade para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.(…) A Prefeitura Municipal de Salvador declarou a lei estadual que cria a Entidade da RMS como ‘inconstitucional’ e diz que não vai respeitá-la. Desobediência civil? (…) Citou o governador que a Prefeitura, ao optar pela licitação com pagamento de outorga, estava tirando recursos do sistema e do usuário para transferir para os cofres. Na realidade instituiu um tributo a ser pago pelo usuário e está na contramão da lei e do princípio da modicidade tarifária. (…) Observou que a licitação do município não prevê a forma de integração tarifária entre os ônibus urbanos e os ônibus metropolitanos e, também, não contempla a integração com o trem do subúrbio, com o transporte marítimo e ascensores”.

O problema é que este mesmo secretário, segundo lembra Rita Tourinho (a promotora que virou advogada do Edital), jogava do outro lado meses atrás, mostrando toda a incoerência e oportunismo das críticas: “Antes de ser secretário, Manuel Ribeiro participou em dezembro do ano passado de reunião no MP-BA [Ministério Público do Estado da Bahia] representando o Setps [Sindicato das Empresas de Transporte Público de Salvador]. Ele havia sido contratado para prestar consultoria para esta licitação e defendeu o posicionamento do Setps. Meu receio é que as empresas se aproveitem deste momento para impedir a licitação” (jornal A Tarde, 18/07/2014).

PI03E, para deixar o quadro ainda mais dramático, a única voz da dita Sociedade Civil que vem sendo consultada é a do “novo” militante do PT, Walter Takemoto (ver aqui), que se apresenta como ex-diretor da Companhia Municipal de Transporte Coletivo de São Paulo (CMTC-SP) e militante do Movimento Passe Livre – MPL, movimento do qual sequestrou a sigla após as mobilizações de junho de 2013 mesmo sem nunca ter participado dele. Sobre isto ver artigo de minha autoria, “Salvador: ganhando por fora, perdendo por dentro”, e a nota lançada pela Federação de Coletivos do Movimento Passe Livre – MPL.

De qualquer forma a licitação continua e, tudo indica, já temos os vencedores. Apenas três consórcios apresentaram propostas, um para cada área operacional, e, já habilitados nos requisitos técnicos e jurídicos, deverão ser declarados vencedores dentro em breve. Uma licitação, como já era previsível, sem concorrência. Isto significa que, segundo cálculos expostos na minuta do contrato (Anexo II do Edital), a empresa vencedora da área menos lucrativa ganhará algo em torno de 3,5 bilhões de reais, enquanto a mais lucrativa se aproxima dos 4 bilhões de reais. Desconfio que seja muito mais.

II

O Edital para seleção das empresas que monopolizarão o transporte coletivo de ônibus em Salvador estabelece que poderão participar do processo de concorrência as pessoas jurídicas interessadas, isoladamente ou reunidas em consórcio, que tenham em seu objeto social a atividade de transporte coletivo de passageiros e atendam aos requisitos. Após encerrado o processo licitatório, os vencedores, seja em consórcio ou individualmente, devem formalizar uma Sociedade de Propósito Específico – SPE para operacionalizar o sistema.

O critério de avaliação das propostas é a maior oferta de pagamento pela outorga da concessão, ou seja, quem oferecer o maior pagamento à Prefeitura de Salvador será a empresa ou consórcio vencedor. Além disto, o Edital divide a cidade em três grandes Áreas de Operação (Área A – Subúrbio Península; Área B – Miolo ; e Área C – Orla/Centro) com base em um estudo realizado em 1995 e atualizado em 2013 (a Pesquisa de Origem e Destino – OD), portanto praticamente de forma simultânea ao lançamento da primeira minuta disponibilizada, que apontou para 4 grandes áreas, mas logo em seguida a Área D foi incorporada à Área C.

A empresa ou consócio concorrente deverá apresentar uma proposta para cada uma destas áreas de operação, proibido que a mesma empresa ou consórcio saia vencedor em mais de uma área. O valor mínimo do lance para o Subúrbio-Península Itapagipana (Área A) é de R$ 35.478.000,00; para o Miolo (Área B) é de R$ 86.377.000,00; e para o Centro (Área C) por 57.866.000,00 a Prefeitura fecha o negócio. No total, a Prefeitura pretende arrecadar cerca de R$ 180 milhões com a licitação e as empresas vencedoras receberão o direito de explorar a atividade durante os próximos 25 anos. O valor arrecadado, segundo promessas da Prefeitura, será integralmente investido no transporte coletivo, principalmente no corredor exclusivo de Bus Rapid Transit – BRT Lapa-LIP (ver aqui), obra que já está prevista sem mesmo, a exemplo do Edital e de tudo o mais que acontece por aqui, os debates públicos terem acontecido.

PI04A arrecadação das empresas ou consórcios vencedores se dará através das tarifas pagas diretamente pelos usuários e também através de receitas acessórias. Estas últimas devem ter 50% repassados ao Município, apesar da ilegalidade desta medida. Conforme ressalta o Ministério Público do Estado da Bahia em relatório de ata da audiência pública acontecida no dia 09 de dezembro de 2013 com a presença de representantes da Prefeitura, “pertinente à destinação do Edital de 50% das receitas líquidas assessórias ao Município, o Ministério Público reiterou a afirmação da determinação da Lei Federação 12587/2012 [Lei de Mobilidade Urbana], art, 12, § 10º, inciso I, c/c art. 10, inciso VI, de destinação exclusiva à modicidade da tarifa”.

Versa a minuta do contrato que a empresa ou consórcio vencedor deverá pagar mensalmente à Agência Reguladora e Fiscalizadora dos Transportes Públicos de Salvador – ARSAL, criada em janeiro de 2014 e com fortes críticas do Governo do Estado, o “valor correspondente a 0,50% (meio por cento) sobre o faturamento bruto mensal diretamente obtido com a prestação do serviço” (Anexo 2 do Edital).

Aliás, esta nova agência reguladora não aparece em nenhum outro momento do Edital, no qual a fiscalização do contrato é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Urbanismo e Transportes – SEMUT em conjunto com a Superintendência de Trânsito e Transporte de Salvador – TRANSALVADOR. O que só confirma o atropelo como tudo foi feito.

É a TRANSALVADOR que, segundo o próprio Edital, tem por finalidade gerir o Sistema de Transporte Público do Município de Salvador, o Sistema de Trânsito, os Estacionamentos Públicos do Município de Salvador e executar as atividades previstas no Código de Trânsito Brasileiro (p. 08 do Anexo I,) “cabendo à SEMUT e à TRANSALVADOR, na qualidade de órgãos de planejamento e gestão do transporte da cidade do Salvador, coordenar e direcionar gradativamente as CONCESSIONÁRIAS para a progressiva construção de um novo sistema de transporte coerente com as diretrizes contidas neste documento” (p.70 do Anexo I). “A TRANSALVADOR realizará um acompanhamento contínuo e permanente dos serviços da concessionária enquadrada nesta condição. Constatada a não aplicação do plano de ações corretivas por parte da concessionária, ou a sua ineficácia, a TRANSALVADOR aplicará penalidades adicionais, na forma do Regulamento Operacional do STCO de Salvador”. (p. 107 do Anexo I). E, ainda no mesmo Anexo I, podemos encontrar enumeradas várias funções de fiscalização delegadas à TRANSALVADOR.

Mas antes estes fossem os únicos problemas. Infelizmente este artigo teve que sair maior do que o esperado e muitas coisas tiveram que ser cortadas para não deixar os poucos leitores mais cansados do que revoltados.

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