É da construção de um perfil de trabalhador que estamos a falar aqui. Em uma universidade voltada fundamentalmente para formação de trabalhadores, é irrisório falar de “elitização da universidade”. Por Grouxo Marxista

De algumas semanas para cá, começou uma agitação inesperada entre os estudantes da Universidade Federal de Goiás (UFG). Seria ousado chamar essa agitação de prenúncio de uma contestação contra a forma que vem tomando o processo intensivo e massivo de formação que se iniciou com a introdução da Reforma Universitária desde 2007? Tal potencialidade ficou clara quando uma reunião convocada pelo facebook de um dia para o outro mobilizou mais de 70 pessoas de mais de dez cursos, quando o quórum habitual de reuniões era de 5 ou 6 pessoas.

Procuro aqui relatar alguns dos acontecimentos recentes, destacar suas potencialidades e contribuir para uma reflexão coletiva que amplie o alcance da luta.

A questão do desgaste com o tempo das aulas começou a ser colocada de forma explosiva com uma proposta aparentemente inócua que está em discussão desde 2012, para se adequar a uma diretiva do Ministério da Educação (MEC). A alteração basicamente se dá na seguinte formulação:

;Regulamento Geral dos Cursos de Graduação Artigo 4

§ 3º A carga horária do curso prevista no projeto pedagógico deverá ser mensurada em horas (60 minutos). [1]

Atualmente, a hora padrão é de cinquenta minutos. Quais as implicações dessa alteração? Bem, atualmente as aulas seguem o seguinte padrão:

Turno Matutino Vespertino Noturno
8:00 – 9:40 14:00 – 15:40 18:30 – 19:10
9:40 – 10:00 15:40 – 16:00 19:10 – 19:30
10:00 – 11:40 16:00 – 15:40 19:30 – 22:10

Pois bem, de acordo com a proposta aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura (CEPEC), o padrão seria o seguinte [2]:

matutino
vespertinonoturno

De acordo com a proposta feita,

A hora aula em cursos presenciais será de sessenta (60) minutos, sendo cinquenta (50) minutos de aulas expositivas, práticas ou laboratoriais e dez (10) minutos de atividades acadêmicas supervisionadas, tais como atividades em biblioteca, iniciação científica, trabalho individual ou em grupo, práticas de ensino e outras atividades no caso das licenciaturas. [1]

Qual o significado prático disso? Para os estudantes, uma redução de dez minutos nos intervalo, uma antecipação de 50 minutos no começo das aulas e de quarenta minutos na finalização. A situação é especialmente grave para o matutino, já que para chegar no horário proposto seria necessário acordar bem mais cedo, em horas em que não passam ônibus. Não menos grave fica a situação do noturno, composto principalmente por trabalhadores que terminariam o expediente às 18h, tendo seu atraso garantido e sendo impossibilitados de voltarem para casa ao fim das aulas caso precisem pegar mais de um ônibus, pois muitos deles param de passar às 23h. O tempo do intervalo e de início das aulas, diante das filas intermináveis das cantinas e do restaurante universitário, também dificulta a própria alimentação dos estudantes. Caso o professor não queria utilizar os dez minutos, vai ter que justificar burocraticamente por que não o fez.

DSC_6894Temos colocadas, então, duas questões fundamentais: a acessibilidade para os estudantes e a intensificação da carga horária. Foi essa questão o estopim para a reunião convocada por estudantes do curso de jornalismo, que se tornou uma assembleia agitada e bastante confusa em que houve alguns consensos: 1) era necessário barrar essa resolução; 2) era necessário fazer isso por meio da pressão sobre a UFG e sobre cada departamento; 3) a presença ou ausência do Diretório Central dos Estudantes era irrelevante.

Aprovou-se um ato na sexta-feira, 18 de setembro, às 13:30; uma mobilização com panfletagem nas salas de aula e em cada curso; uma pressão coordenada sobre os Conselhos Diretores de cada faculdade; e uma Assembleia Geral para a próxima terça-feira, 23 de setembro, às 11:40, convidando os outros setores da universidade além dos estudantes a participar. Para permitir a articulação e comunicação posterior entre os participantes, foi criado um grupo de facebook. A mobilização começou pelo matutino, mas vê-se que existe a pretensão não só de articular com os outros turnos (vespertino e noturno) como também com os técnico-administrativos e os professores que quiserem. Muitos questionamentos foram feitos sobre a questão do preço e da qualidade do restaurante universitário e do transporte coletivo. Pois bem. Para não prolongar muito o texto, gostaria de colocar algumas reflexões e posicionamentos.

O estudante não pode revoltar-se contra o quer que seja sem se revoltar contra os seus estudos”. [3]

Contra o aulismo e pelo acesso às aulas?

Como coloquei no inicio, existem aqui duas contestações. A primeira, contra a intensificação das aulas, o cansaço dos alunos, a futilidade do tempo de ensino, a compressão do tempo de convívio estudantil. Outra, contra as condições de chegar e assistir às aulas; entram aí questões de mobilidade urbana, do restaurante universitário, da iluminação do campus.

A princípio, parecem contraditórias, mas não são. Ambas as questões tratam da disputa sobre as condições da reprodução da força de trabalho.

A visão do MEC parece ser a de maximizar o tempo do estudante sob supervisão dos professores, que seria o único tempo “formativo real”. Os estudantes, por sua vez, valorizam o tempo de sociabilidade fora das salas. O efeito dessa resolução sobre as disputas cotidianas a respeito de tempos de atraso e presença entre alunos e professores se alteraria significativamente em favor dos últimos – favorecendo a atuação dos professores autoritários e a perseguição de estudantes. Isso entra em uma onda de maior rigidez, que vem se processando sobre questão das faltas e atrasos.

DSC_6895A reação dos estudantes, buscando uma fissura dentro do discurso atualmente existente, é muitas vezes apontar corretamente que a formação não ocorre só dentro da sala, mas também fora, nas conversas e estudos. Isso serve tanto para formar trabalhadores mais qualificados para cumprir metas estabelecidas de maneira autônoma ou simplesmente evitar o controle gerencial em prol da sociabilidade.

Já quanto ao acesso, temos uma questão objetiva. Há uma tendência clara da universidade de racionalização dos custos de manutenção dos estudantes. O que isso significa? A universidade não considera que a manutenção pura e simples do estudante seja produtiva – preferindo investir em infra-estrutura de pesquisa, equipamentos, prédios, convênios internacionais. A opção suplementar é pelo estreitamento de laços com as empresas, inclusive com a Real Food, empresa concessionária do Restaurante Universitário. Em último lugar ficam os estudantes, especialmente os da graduação. Para se ter uma noção, há 300 bolsas permanência em um universo de 25 mil estudantes. O número de moradias estudantis é mínimo. Qual o efeito prático disso sobre os estudantes? Existe uma transferência de custos – o futuro trabalhador tem que custear do seu próprio bolso, ou do bolso da sua família, a sua formação enquanto trabalhador. Pagamos para posteriormente gerar lucro para nossos futuros patrões. Temos que custear os computadores, as câmeras fotográficas, a nossa alimentação, a estadia na cidade. Caso contrário, seremos excluídos do processo de formação… e do trabalho.

Um perfil de trabalhador

É da construção de um perfil de trabalhador que estamos a falar aqui. Em uma universidade voltada fundamentalmente para formação de trabalhadores, é irrisório falar de “elitização da universidade”. As elites estão se formando em outro lugar, não aqui.

DSC_6901A questão é que tipo de trabalhadores seremos, não se seremos futuras elites. A pedagogia aqui é a da resistência e da submissão – que tipo de condições aceitamos para trabalhar? Temos condições de nos organizar contra intensificação de carga de trabalho, abusos de professores, cortes de salários e falta de garantias sociais mínimas para nos mantermos no trabalho?

A segunda questão, mais simples, trata do equilíbrio financeiro da universidade. A fração do orçamento que é destinada aos trabalhadores e seus filhos, um investimento evitável se os estudantes estiverem desorganizados, retira dinheiro de outros investimentos mais desejáveis, com frutos mais interessantes para os gestores universitários – nomeadamente, a sua articulação com empresas, com o poder público e internacional: o que significa uma expansão do poder desses gestores, inclusive eleitoral, como vimos no caso da candidatura a deputado federal do ex-reitor Edward Madureira após a sua gestão.

Cuidado com o fogo de palha

Muitos estudantes em Goiânia têm demonstrado dificuldade em se organizar diante do vácuo deixado por algumas das instituições tradicionais, os Centros Acadêmicos e DCE’s. Na mobilização contra a presença de militares na UFG, por exemplo, o movimento não teve continuidade. O mesmo se deu no movimento sobre acessibilidade em solidariedade a Jataí e na luta pela paridade no curso de jornalismo  e na ocupação da reitoria pela questão da assistência.

A exceção notável se encontra na psicologia, que vem mantendo um movimento contra o aulismo e condições de estudo faz um ano, a partir de assembleias periódicas do curso e também das assembleias de sala. Trata-se, nesse caso, de um Centro Acadêmico que não se organiza de maneira tradicional, priorizando as assembleias e não centralizando as decisões.

O que é evidente é que a reitoria já aprendeu com as últimas ocupações que os estudantes que vão gritar na reitoria geralmente esquecem no próximo dia e já não vão se assustar mais. De que maneira poderemos nos articular, sem uma burocracia, para conseguirmos manter um movimento e melhorar as condições de estudo ou lutar conta essas condições?

DSC_6896As assembleias convocadas de forma autônoma são um bom índice de mobilização, mas não têm raízes sólidas nos cursos e locais de estudo, além de serem facilmente manipuladas por grupos articulados pela falta de laços prévios entre os estudantes. Talvez a criação de comissões de luta por espaço seja uma solução possível.

Comissões que poderiam se estruturar espacialmente a partir de Centros de Aula, pátios e prédios, ao invés de necessariamente por cursos, e que poderiam se articular em algum tipo de fórum sem pretensões centralizadoras ou representativas, apenas de coordenar esforços.

Um teste importante para essa capacidade de articulação estará na mobilização atual e na proposta de pressão sobre os conselhos diretores de cada faculdade de maneira articulada. Essa luta, possivelmente, pode criar laços de solidariedade que possibilitem um avanço posterior.

O que não podemos é deixar a coisa morrer de cansaço e se apagar amanhã – porque os gestores vão ganhando cada vez mais espaço e na próxima vez as condições estarão bem mais difíceis para nos organizarmos, lutarmos e até convivermos e conversarmos.

As fotos utilizadas são de autoria de Luiz da Luz.

NOTAS
[1] Trata-se da resolução CEPEC Nº 1122, disponível aqui (http://sistemas.ufg.br/consultas_publicas/resolucoes/arquivos/Resolucao_CEPEC_2012_1122.pdf)
[2] Essa tabela está disponível na excelente nota produzida pelo Centro Acadêmico de Psicologia, disponível aqui (https://www.facebook.com/notes/capsi-ufg/carta-sobre-a-padroniza%C3%A7%C3%A3o-dos-hor%C3%A1rios-e-aumento-da-hora-aula/1404994666454488)
[3] Da miséria do meio estudantil, 1967, disponível aqui: http://www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/0121.html

2 COMENTÁRIOS

  1. Companheiro, expressou com clareza boa parte da realidade a que os estudantes estão submetidos, ainda mais por se tratar de algo inicial daí as incertezas dos próximos desdobramentos, que como bem mostrou, pode ser novamente vencido pelo cansaço, como nas mobilizações anteriores. Forças aí, pq só a generalização da luta suprimirá o cansaço dos que resistem.

  2. EXAMINANDO AS DICOTOMIAS
    espontaneidade x organização; substância x subjetividade; massa x classe; instinto x consciência; necessidade x liberdade…
    SEM APRIORISMOS, EM BUSCA DE MEDIAÇÕES CRÍTICO-PRÁTICAS.

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