Ao entenderem o desequilíbrio entre as nações como uma modalidade de exploração, os economistas da CEPAL deram novo alento às teses defendidas pelo economista e político fascista Manoilescu. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Leia aqui o artigo anterior.
As «nações proletárias» não estavam sozinhas e opunham-se-lhes as «nações plutocráticas». Este par de conceitos foi actualizado mais tarde, no âmbito do terceiro-mundismo, mediante o recurso a outro par de conceitos, Centro e Periferia, e ainda aqui a extrema-direita anterior à guerra deixou a sua herança, porque estas noções foram criadas pelo economista e historiador da economia Werner Sombart, que havia abandonado a sua simpatia inicial pelo marxismo e se convertera depois num apologista do regime nazi. No começo da década de 1940 os termos Centro e Periferia encontravam-se já com certa frequência na literatura financeira internacional, mas Sombart usara aquelas noções num sentido apenas descritivo, e foi o economista argentino Raúl Prebisch, num curso ministrado em 1944 e num artigo publicado dois anos depois, quem pela primeira vez as empregou como um dos elementos essenciais para a formulação de um modelo de desequilíbrio estrutural entre as nações. Segundo Prebisch, o comércio internacional estava viciado pelas diferenças de produtividade e pelos diferentes padrões de procura vigentes no centro industrial e na periferia agrícola, combinados com diferentes sistemas de organização do mercado de capitais e do mercado de trabalho em cada uma das regiões, e estes obstáculos estruturais só podiam ser remediados pela industrialização. Prebisch dirigiu e inspirou a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o organismo das Nações Unidas fundado em 1948 e que, apesar da sua especificação geográfica, constituiu o laboratório ideológico onde se formularam estratégias de industrialização para todos os países subdesenvolvidos. Ora, ao entenderem o desequilíbrio estrutural entre as nações como uma troca desigual e ao conceberem a desigualdade entre o Centro e a Periferia como uma modalidade de exploração, os economistas da CEPAL deram novo alento e outro rigor às teses defendidas na década anterior pelo economista e político fascista romeno Mihail Manoilescu.
Não posso traçar aqui uma biografia minimamente detalhada de Manoilescu, porque isso exigiria descrever a vida política da Roménia ao longo da década de 1930 e durante a primeira metade da década seguinte, quando se digladiaram mortalmente duas alas do fascismo: uma ala socialmente radical e caracterizada por um anti-semitismo feroz, chefiada por Corneliu Codreanu e, depois de ele ter sido assassinado na cadeia, por Horia Sima; e uma ala socialmente conservadora, encabeçada pelo rei Carol II e, depois de ele ter sido deposto, pelo general (mais tarde marechal) Antonescu. Tal como muitos outros fizeram antes dele e haveriam de o fazer depois, Manoilescu situou-se ora numa ora noutra das correntes em luta, procurando sobretudo estar ao lado do futuro vencedor, o que geralmente conseguiu, porque desempenhou funções de relevo na administração em áreas económicas, foi governador do Banco Nacional e em diversas ocasiões foi ministro da Economia e dos Negócios Estrangeiros.
Foi Mihail Manoilescu quem melhor desenvolveu os pressupostos económicos do conceito de «nação proletária». O comércio internacional é uma verdadeira burla, denunciou ele no seu livro de 1929, Teoria do Proteccionismo e Trocas Internacionais, porque não é regido pela noção ricardiana de vantagem comparativa, adoptada pelos economistas neoclássicos. A tese da vantagem comparativa serve para justificar a manutenção dos países agrícolas numa situação de dependência e dos países industriais numa situação de supremacia. São as produtividades nos vários ramos de produção em cada um dos países que, segundo Manoilescu, devem ser comparadas, ou seja, o elemento fundamental é a relação entre, por um lado, uma unidade de trabalho gasta na produção de um bem destinado à exportação e, por outro lado, a produtividade do trabalho no país importador. Trata-se de avaliar o poder aquisitivo das unidades de trabalho. Cinco anos depois, em O Século do Corporativismo, Manoilescu escreveu que «mediante o sistema industrial cada cidadão do Ocidente teve praticamente à sua disposição dez escravos das outras regiões do mundo» — os «dez» surgiram aqui porque, para simplificar, o autor admitiu que o trabalho de um operário do Ocidente equivalia ao de dez trabalhadores dos países não industrializados — «que em troca do trabalho dele lhe ofereceram o produto do trabalho de todos eles» [1]. Em suma, o objectivo é «adquirir ao estrangeiro o máximo de trabalho possível, com o mínimo de trabalho possível da sua própria nação» [2].
Para compreendermos o lugar ocupado na ideologia fascista por esta teoria do comércio internacional enquanto troca desigual é conveniente constatar a sua afinidade com o conceito de «nação proletária». «As trocas internacionais, a um contra dez, fornecem hoje “a chave” da compreensão das relações económicas entre os povos», escreveu Manoilescu depois de ter referido a desigualdade estrutural entre os países exportadores de produtos industriais e os países exportadores de produtos agrícolas e de matérias-primas. «Tal como Marx, com a sua teoria, nos fez compreender os fenómenos sociais do mundo capitalista e sobretudo a exploração de classe, também esta teoria das trocas internacionais nos faz compreender a desigualdade dos povos e as relações de explorador e explorado que os unem» [3]. A disparidade de fortunas entre os países, explicada por Manoilescu, de forma pioneira, como um resultado das diferenças de produtividade, foi entendida não como uma mera desigualdade mas como uma exploração, ficando a relação entre nações assimilada ao modelo da relação entre classes. Por isso, num artigo publicado em 1940, O Triângulo Económico e Social dos Países Agrícolas: A Cidade, a Aldeia, o Estrangeiro, Manoilescu afirmou que o «socialismo das classes» estava ultrapassado e exigiu a sua substituição pelo «socialismo das nações» [4]. Como Manoilescu era então um apoiante do Terceiro Reich, isto significa que passara do tema da «nação proletária» para o de um socialismo nacional que não podia, evidentemente, deixar de ser um nacional-socialismo.
A análise do sistema de dependência entendido como um sistema de exploração foi levada mais longe no referido artigo de 1940, O Triângulo Económico e Social dos Países Agrícolas, onde Manoilescu concebeu a relação de dependência não apenas no comércio internacional mas igualmente nas trocas no interior de um país subdesenvolvido. Na sua opinião as áreas urbanas industriais exploravam as áreas agrícolas, em primeiro lugar porque o comércio externo lhes era favorável, já que a maior parte das exportações provinha das regiões rurais, enquanto a maior parte das importações se dirigia para as cidades. «O triângulo económico constituído pela aldeia, pela cidade e pelo mercado de exportação», escreveu Manoilescu neste artigo, «desempenha o papel especial de transformar o excedente de artigos produzido pela aldeia em bens de consumo, para benefício da cidade». Em segundo lugar, a situação económica difícil em que se encontrava a economia rural conduzia-a ao endividamento, e como as fontes de crédito eram urbanas, ocorria um fluxo permanente de pagamentos do campo em direcção à cidade superior ao fluxo em sentido inverso. Uma terceira modalidade, específica da Roménia, consistia no facto de a relação entre os impostos pagos e os benefícios recebidos do Estado ser para os habitantes das cidades inferior ao que era para os habitantes do campo [5].
Segundo Manoilescu, tanto a situação de dependência em que os países de economia predominantemente agrícola se encontravam relativamente aos países industrializados como a situação de dependência em que, no interior do países subdesenvolvidos, os campos se encontravam perante as cidades indicavam uma única solução — a promoção das indústrias. Nesta perspectiva, sendo a produtividade do trabalho muito maior na indústria do que na agricultura, a passagem da actividade rural para a fabril nas nações subdesenvolvidas trazia-lhes muito mais benefícios do que nas nações industrializadas, onde o diferencial era menor. Por isso as vantagens do proteccionismo, para Manoilescu, eram superiores às indicadas por Friedrich List, para quem se tratara apenas de criar condições favoráveis às indústrias incipientes até que estas estivessem capazes de sustentar a concorrência no mercado mundial e começassem a ser economicamente úteis. Segundo Manoilescu, bastava que a produtividade do trabalho num estabelecimento industrial, mesmo durante a sua fase incipiente, fosse superior à produtividade média no país, para que esse estabelecimento fosse desde logo benéfico. O critério dos diferenciais de produtividade, que servira a Manoilescu para explicar a desigualdade do sistema mundial de trocas, serviu-lhe para justificar o proteccionismo, e enquanto o diferencial persistisse, o proteccionismo mantinha a razão de ser. Mas como se podia gerar o processo de industrialização dos países subdesenvolvidos?
Na reedição de 1940 de Teoria do Proteccionismo e Trocas Internacionais, Manoilescu calculou que na Roménia os salários médios eram 4,6 vezes maiores na indústria do que na agricultura, o capital por trabalhador era 4,1 vez maior, a produtividade do trabalho era 4,6 vezes maior, mas a taxa média de lucro era só 1,8 vezes maior na indústria do que na agricultura. Daqui ele concluiu que não existia uma correlação entre lucro e produtividade e que o interesse particular determinado pelo lucro não coincidia com o interesse nacional definido pela produtividade [6]. Manoilescu pôs em causa a tese dos economistas liberais, que admitiam que a rentabilidade de um empreendimento coincidia com a sua produtividade, e portanto ele considerou necessário que a economia fosse regida por uma instância superior aos empresários individuais. O Século do Corporativismo foi dedicado à exposição de um sistema político de organização económica que, embora mantendo o lucro e a iniciativa particular, os superava mediante a ordenação corporativa do Estado. «O espaço corporativo é um espaço onde os impulsos egoístas dos indivíduos não deixam de existir e continuam a representar forças actuantes, mas onde, além desses impulsos, existe um sistema de forças que dirige as acções individuais para um objectivo comum constituído pelos fins do Estado» [7]. Esta necessidade tornara-se especialmente urgente com a crise económica desencadeada em 1929, que reduzira as trocas internacionais e as pressionara a assumir a forma de compensação bilateral. «A exportação […] tornou-se cada vez mais difícil. […] O princípio compra para que eu compre outro tanto tornou-se regra no comércio externo […] Os exportadores e os importadores estão obrigados a sindicar-se para prosseguir uma actividade comum com um objectivo comum. E esta organização é-lhes imposta de fora» [8]. Com efeito, explicou Manoilescu, o sistema de compensação bilateral exige que o Estado intervenha para fornecer créditos, exige a padronização da produção para aumentar a produtividade e a capacidade concorrencial, exige acordos entre exportadores para que os preços não baixem bruscamente no mercado mundial, exige a adaptação da capacidade de produção à capacidade de compra, exige a especialização das instituições de crédito, e tudo isto implica a existência de uma economia organizada [9]. Em suma, «querer organizar a ordem social é querer o Estado corporativo» [10].
Tanto no diagnóstico da dependência externa como no da dualidade interna dos países subdesenvolvidos, soa nas teses de Mihail Manoilescu uma grande modernidade, e a estratégia industrializadora proposta pelos economistas da CEPAL para corrigir essa situação constituiu uma reelaboração das soluções que Manoilescu havia adiantado. Joseph Love, no seu notável livro Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil, publicado em 1996 pela Stanford University Press, analisou a repercussão internacional da obra de Manoilescu. Este livro foi também publicado no Brasil, pela editora Paz e Terra, mas ignoro se a tradução é aceitável. Segundo Love, desde cedo que a influência de Manoilescu se fez sentir nos países de línguas ibéricas. Em Portugal ele foi recebido em 1936 por Salazar e por Marcelo Caetano, que expressaram o seu apreço sobretudo pela doutrina corporativa. Aliás, o autor de O Século do Corporativismo considerara Portugal como um dos três países onde o corporativismo era aplicado [11]. Já em Espanha foram antes de mais as teses de Manoilescu sobre a desigualdade no comércio externo e a necessidade de promover a industrialização que beneficiaram de um bom acolhimento. Para além da influência exercida pelos dois países ibéricos sobre a América Latina, as ideias de Manoilescu tiveram aí também uma repercussão directa. No Brasil sucedeu o mesmo que em Espanha; as obras especificamente económicas de Manoilescu foram discutidas antes do livro sobre o corporativismo, influenciando o principal porta-voz dos meios empresariais, Roberto Simonsen, e parece que o próprio Getúlio Vargas as leu. O certo é que o prestígio de Manoilescu na extrema-direita brasileira atingiu um escopo muito vasto, desde os integralistas que na direita radical se opunham ao Estado Novo até aos tecnocratas e políticos que formulavam os objectivos modernizadores e davam um eixo ao regime de Vargas. Na Argentina as ideias de Manoilescu parece não terem interessado os empresários industriais nas décadas de 1930 e 1940, mas eram conhecidas entre os economistas, e também no Chile elas foram acolhidas favoravelmente.
Uma influência tão vasta seria por si só duradoura e asseguraria que as teses de Manoilescu não fossem esquecidas após a derrota militar dos fascismos, mas foi sobretudo o economista argentino Raúl Prebisch quem lhes garantiu a continuidade. E é curioso que assim fosse, porque num país onde o fascismo conseguiu uma presença ampla e perene na vida política, Prebisch foi sempre antiperonista. Ele incluía-se numa corrente modernizadora ligada à oligarquia agrária, que formava a base mais sólida e mais poderosa da oposição ao peronismo. Prebisch foi o primeiro director-geral do Banco Central, afastado das suas funções com o golpe militar de 1943, que elevou Perón ao poder; e foi ele o autor de um importante relatório económico a pedido dos militares que derrubaram Perón em 1955.
As orientações desenvolvimentistas e industrializadoras defendidas por Raúl Prebisch e a sua análise do desequilíbrio estrutural entre Centro e Periferia adquiriram uma vastíssima audiência com a sua nomeação em 1948 para director da CEPAL. Foi ali que a esquerda brasileira moderna encontrou a matriz, por um lado graças a Celso Furtado, tanto na obra teórica e como na intervenção na política económica. Por outro lado, a influência da CEPAL fez-se sentir também através dos teóricos marxistas da dependência que, ao formularem a relação entre Centro e Periferia com os termos da exploração, que Marx havia usado para a relação entre classes sociais, estavam a proceder à operação que Corradini executara quando cunhara o conceito de «nação proletária». O círculo completou-se. As teorias do desenvolvimento prosseguidas na esquerda deram continuidade às teorias formuladas por Manoilescu. Como argutamente observou Joseph Love, tratava-se de uma maneira de criticar o imperialismo sem precisar de criticar o capitalismo [12]. Afinal, reduzia-se a luta contra o imperialismo a uma luta contra o estrangeiro, e apelava-se ao combate contra uma parte do capitalismo nacional com a justificação de serem agentes do estrangeiro e não por serem considerados simplesmente capitalistas.
Estas circunvoluções da história têm implicações muitíssimo vastas, impossíveis de deslindar no espaço limitado de um artigo. É que os conceitos não são meras palavras, e distinguem-se das restantes palavras por terem implicações próprias. Os conceitos são instrumentos intelectuais, e a escolha de um dado instrumento determina — não inteiramente, mas em grande medida — o resultado a que se chega. Os conceitos têm uma vida própria, independente das boas ou más intenções de quem os usa. Com as noções de Manoilescu, herdadas através de Prebisch e de Celso Furtado, só pode chegar-se à noção de «nação proletária», que dilui a estratificação das classes na homogeneização da nação. E na noção de «nação proletária» está implícita a sua redenção através de um imperialismo anti-imperialista, tal como o entendiam Kita Ikki e os demais fascistas japoneses.
O carácter nefasto destes conceitos parecia não ter implicações demasiado graves enquanto a economia brasileira se mantinha subdesenvolvida. Mas agora, quando a recessão ou a estagnação na maior parte dos países a que ainda teimamos em chamar dominantes contrasta com o crescimento num pequeno número de países emergentes, entre os quais o Brasil passou a ter um lugar de destaque, como fica a situação daqueles que trocaram a luta contra o capitalismo por uma luta estritamente anti-imperialista? Continuarão a identificar o imperialismo com os Estados Unidos e a reproduzir em todos os matizes a visão do Brasil como um país coitadinho? Ou serão capazes de proceder a uma enorme remodelação ideológica e de considerar que o capitalismo brasileiro é desde já, neste momento, um imperialismo emergente?
Da resposta a esta questão depende o lugar que se ocupa na luta de classes actual.
Notas
[1] Mihaïl MANOÏLESCO, Le Siècle du Corporatisme. Doctrine du Corporatisme Intégral et Pur, Paris: Félix Alcan, 1936, pág. 66 (sub. orig.).
[2] Id., op. cit., pág. 368 (sub. orig.).
[3] Id., op. cit., págs. 29-30 (subs. orig.).
[4] Citado em Joseph L. LOVE, Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil, Stanford, California: Stanford University Press, 1996, pág. 84.
[5] Id., op. cit., págs. 88-89. A frase citada encontra-se na pág. 88.
[6] Id., op. cit., pág. 82.
[7] M. MANOÏLESCO, op. cit., pág. 361 (sub. orig.).
[8] Id., op. cit., págs. 118-120 (subs. orig.).
[9] Id., op. cit., págs. 120-121.
[10] Id., op. cit., pág. 126 (sub. orig.). «A organização impõe-se», escreveu ainda Manoilescu na pág. 122 (subs. orig.), «e a sua forma natural é a corporação».
[11] Id., op. cit., pág. 13. Os outros dois países eram a Itália e a Áustria.
[12] J. L. LOVE, op. cit., pág. 135.
Caros,
Concordo em grande medida com os comentários feitos pelo Matheus e pelo Gustavo no artigo anterior, por isso não repetirei as críticas já feitas. Quero entrar apenas num ponto, relativo à generalização para os teóricos marxistas da dependência das críticas dirigidas ao Manoilesco, à CEPAL e à “esquerda brasileira moderna” (?).
A seguinte passagem do texto é tão rasa quanto irresponsável: “[…] a influência da CEPAL fez-se sentir também através dos teóricos marxistas da dependência que, ao formularem a relação entre Centro e Periferia com os termos da exploração, que Marx havia usado para a relação entre classes sociais, estavam a proceder à operação que Corradini executara quando cunhara o conceito de «nação proletária». O círculo completou-se. As teorias do desenvolvimento prosseguidas na esquerda deram continuidade às teorias formuladas por Manoilescu. ”
É rasa porque não se sustenta em si mesma, não passa de uma afirmação sem maiores argumentos. E irresponsável pois reproduz um desconhecimento sobre a teoria marxista da dependência forjado precisamente pelos sujeitos que aparecem na foto abraçados ao Prebisch e ao Aníbal Pinto (coincidência?).
Qualquer leitura crítica perceberia que aquele trecho não está seguido sequer de uma mínima argumentação, de modo que apenas se convence daquela relação quem de antemão “acha” que existe uma passagem mais ou menos direta entre usar os conceitos de centro-periferia e dependência, por um lado, e, por outro, defender a idéia de “nação proletária”. Após ter estudado toda a obra dos autores marxistas que fizeram parte do debate sobre a dependência travado nos anos 1960 e 1970, assim como boa parte das críticas a eles dirigidas, ainda não conheci nenhum texto que prove, com citações justas e precisas, que as contribuições de Vania Bambirra, Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini, entre outros, tratavam de “criticar o imperialismo sem precisar de criticar o capitalismo” ou então que estivessem prenhes do fascismo ligado à idéia de “nação proletária”.
É possível “achar” isso, mas prová-lo é difícil. Enquanto não se faz um trabalho sério e rigoroso neste sentido, estabelecer essas relações de forma superficial seguirá sendo irresponsabilidade. E não num sentido meramente de justiça intelectual com militantes comprometidos tal como foi Marini – o que em si mesmo já se seria uma justificativa -, mas simplesmente porque para responder às excelentes perguntas colocadas ao final do texto é fundamental recorrer ao que escreveram aqueles autores, mesmo que seja para superá-los.
Pergunta João Bernardo: “Continuarão a identificar o imperialismo com os Estados Unidos e a reproduzir em todos os matizes a visão do Brasil como um país coitadinho? Ou serão capazes de proceder a uma enorme remodelação ideológica e de considerar que o capitalismo brasileiro é desde já, neste momento, um imperialismo emergente?”
Dizia Ruy Mauro Marini já em 1974, no Prefácio à 4ª edição de seu “Subdesarrollo y Revolución” (peço permissão para transcrever um grande trecho, pois me parece fundamental para a discussão):
“Se observa, así, el surgimiento de una nueva división internacional del trabajo, que transfiere —desigualmente, téngase presente— etapas de la producción industrial hacia los países dependientes, mientras los países avanzados se especializan en las etapas superiores; simultáneamente, se perfeccionan los mecanismos de control financiero y tecnológico de estos últimos sobre el conjunto del sistema. La circulación del capital a escala mundial se intensifica y se amplía, al mismo tiempo que se diversifica su acumulación. Sin embargo, siguen actuando las tendencias a la concentración y a la centralización, propias de la acumulación capitalista, aunque ahora también en beneficio de naciones de composición orgánica intermedia. A esto corresponde, desde el punto de vista estrictamente económico, el subimperialismo.
El subimperialismo se define, por tanto:
a) a partir de la reestructuración del sistema capitalista mundial que se deriva de la nueva división internacional del trabajo, y
b) a partir de las leyes propias de la economía dependiente, esencialmente: la superexplotación del trabajo, el divorcio entre las fases del ciclo del capital, la monopolización extremada en favor de la industria suntuaria, la integración del capital nacional al capital extranjero o, lo que es lo mismo, la integración de los sistemas de producción (y no simplemente la internacionalización del mercado interno, como dicen algunos autores).
Desde el primer punto de vista, se puede señalar que, entre más de ochenta países dependientes considerados, sólo alrededor de seis ostentan un producto bruto en el cual la producción industrial incide en una proporción cercana al tercio —lo que apunta a una composición orgánica más alta, en principio; entre éstos, en América Latina, se encuentran Brasil, Argentina y México. Sobre el segundo punto, es en esos países donde se observa —paralelamente a un agravamiento de las características anteriormente señaladas respecto a la industrialización dependiente— un mayor desarrollo de los monopolios y del capital financiero, en estrecha conexión con el proceso de integración al capital extranjero.
Hemos dicho ya, en otras oportunidades, que la concreción histórica del subimperialismo no es una cuestión meramente económica. La existencia de condiciones propicias a su desarrollo no asegura de por sí a un país su conversión en un centro subimperialista. Sin embargo, sí se puede afirmar que el subimperialismo corresponde al surgimiento de puntos intermedios en la composición orgánica del capital a nivel mundial, a medida que éste progresa en la integración de los sistemas de producción, así como a la llegada de una economía dependiente a la fase del monopolio y del capital financiero. Igualmente se puede identificar a Brasil como la más pura expresión del subimperialismo, en nuestros días.
Para concluir este prefacio, habría que reiterar la importancia del estudio del subimperialismo para el desarrollo del movimiento revolucionario latinoamericano. Parece ser una ley de la historia que el predominio de una nación sobre otros pueblos confiere a los movimientos políticos que éstos emprenden un carácter unificador. Así fue en Latinoamérica misma, donde las guerras de liberación del siglo XIX se llevaron a cabo en el marco establecido por España y Portugal. En una amplia medida, el hecho de que las colonias españolas, al revés de lo que pasó con Brasil, hubieran conformado una multiplicidad de estados nacionales, al revés de los tres o cuatro que debieran de haber formado, se debe, entre otras causas, a las insuficiencias de su desarrollo económico —que se mantuvo por lo general centrado en torno a una explotación de minerales que anunciaba las futuras economías de enclave— y a la debilidad del control ejercido hacia el interior por los centros político-administrativos creados por la metrópoli.
En la fase de la integración de los sistemas de producción, que el imperialismo promueve hoy, si es cierto que se echan las bases para la revolución mundial, como previó Marx, no lo es menos que ésta pasa por las mediaciones establecidas por particularidades regionales, que determinan su curso y limitan su amplitud. Como quiera que sea, los procesos que tienen lugar hoy día en el sudeste asiático, en el Medio Oriente o en Africa negra nos están mostrando que las corrientes revolucionarias tienden a rebasar los marcos nacionales y arrastran consigo a pueblos enteros. La aplicación a esas regiones del concepto de subimperialismo, particularmente por Andre Gunder Frank y Samir Amin, parece contribuir a aclarar la naturaleza de esos procesos, aunque quede todavía un largo trecho a recorrer antes que el subimperialismo se convierta allí en un elemento explicativo eficaz.
No pasa lo mismo en América Latina. Sea porque ha sido ella la primera región donde el problema se planteó, sea porque aquí el fenómeno, a través de Brasil, adquirió peso y dimensión, el subimperialismo ha pasado a desempeñar un papel determinante en el curso del proceso político de nuestros pueblos. Respuesta de la reacción nacional y extranjera al ascenso de las luchas de clases en la región que se inicia con la Revolución cubana, la afirmación y la proyección externa del subimperialismo brasileño se ha dado parí passu con la agudización de las luchas populares en otros países, particularmente los que están en su zona de influencia más directa: Uruguay, Bolivia, Chile y, en cierta medida, Argentina. Desde 1965 se inició la presión de Brasil sobre Uruguay, considerado por los ideólogos del régimen, juntamente con la Guyana, como un punto de primera prioridad en su esquema continental de seguridad; en 1971, cuando los movimientos populares alcanzaban su punto más alto, Brasil desató su gran ofensiva, que, además de afectar radicalmente la situación uruguaya, favoreció la caída de los gobiernos de Torres en Bolivia y de Allende en Chile. Paralelamente, la presencia brasileña se acentuaba en Ecuador y se proyectaba hacia Portugal y Africa.
Lo mismo que la noción de subimperialismo, la actuación brasileña en el exterior ha dado lugar a posiciones encontradas por parte de las fuerzas políticas y los intelectuales latinoamericanos. Conviene hacer sobre ello algunas consideraciones. La influencia del subimperialismo brasileño no se da autónomamente, sino que se encuentra articulada con la de Estados Unidos, aunque ostente un cierto grado de autonomía e iniciativa respecto a este país. Esto se ha visto claramente cuando, en 1971, mientras Estados Unidos se inclinaba hacia una política más moderada respecto al gobierno de Torres, Brasil propugnaba —y logró imponer— una política más dura. Los acontecimientos bolivianos de 1971 revelaron además lo esencial de la estrategia contrainsurreccional que se aplica hoy en América Latina, la misma que adoptaron las fuerzas golpistas en Brasil en 1964 y que se puso en práctica después en Chile: preparar una sólida base de apoyo para la contrarrevolución (el triángulo Río-Minas-São Paulo, en Brasil; la provincia de Santa Cruz, en Bolivia, y las provincias sureñas de Chile), capaz de permitir el golpe de Estado fulminante o una correlación de fuerzas favorable en el caso de que el intento de golpe desembocara en la guerra civil.
Esta flexibilidad táctica está ya indicando que el éxito de la contrarrevolución depende, en última instancia, de la situación interna del país. En Chile, como en Bolivia, la intervención brasileña y norteamericana debió pasar a través de ésta y, en consecuencia, era a las masas chilenas, sus partidos y el gobierno de la Unidad Popular que cabía pronunciar la última palabra sobre la decisión del proceso que habían puesto en marcha en 1970. Como quiera que sea, la derrota a la que fue llevado el pueblo de Chile, así como el de Bolivia y Uruguay, le ha costado sufrir en carne propia los métodos de explotación y opresión que se han aplicado en Brasil. La supresión de todas sus conquistas sociales y políticas, las matanzas, la tortura, la rebaja de salarios, la extracción forzosa de plusvalía a que están siendo sometidos los trabajadores chilenos son suficientes para demostrar la gravedad de la amenaza que representa para los pueblos de América Latina la existencia de un sistema como el subimperialismo brasileño, que exporta necesariamente la superexplotación y el terror.
Y, sin embargo, los sucesos chilenos de 1973 amenazan con volverse para el subimperalismo brasileño en una victoria pírrica. El alto grado de organización y conciencia a que habían llegado los obreros y el pueblo de Chile, la presencia de una izquierda revolucionaria que ha sabido madurar en las acciones armadas y en la lucha de masas, los lazos de solidaridad y acción común que se están estableciendo entre ella y otras vanguardias del Cono Sur, todo ello está creando las premisas para el inicio, en América Latina, de una amplia contraofensiva revolucionaria y popular, que ponga término a la oleada reaccionaria desatada en la última década. Fábrica por fábrica, ciudad por ciudad, país por país, empieza a forjarse, sobre la base de quince años de lucha, un movimiento revolucionario que sabrá liquidar en nuestra América las formas monstruosas de dominación que nos ha impuesto el gran capital nacional y extranjero.” (Em:
http://www.marini-escritos.unam.mx/073_subdesarrollo_prefacio_es)
A longuíssima citação me pareceu necessária, pois aqui se evidencia a necessidade de que a discussão sobre “Nunca antes na história desse país…” passe a palavra ao debate sério e rigoroso sobre o subimperialismo (ou imperialismo brasileiro, ou capital-imperialismo, como chama a Virgínia Fontes). Obviamente, aqui não se esgota a discussão: é só o começo. Mas pelo menos é um bom começo, e não uma leitura pré-estabelecida, com relações automáticas entre diferentes perspecticas teóricas e políticas. Por certo, muito mais que uma incorporação da CEPAL, a teoria marxista da dependência nasceu como uma crítica teórico-pratica às posturas dos PC’s latino-americanos, esses sim ligados às posições desenvolvimentistas. Mas isso fica para próximos comentários…
E seguimos o debate!
Saudações!
Agripino,
Diante da acusação de que os argumentos apresentados pelo autor não se sustentam, fiquei aguardando o contraponto, que você demonstrasse as supostas inconsistências. Mas você não fez isso, ficou apenas na acusação. Ficarei no aguardo da “profundidade”…
Releia a citação e veja quantas vezes aparece a palavra “trabalhadores”, “burguesia” ou “classe” versus as palavras “nação”, “países”, “povos” etc. Apesar de Marini levar em conta a dinâmica interna das classes em dadas escalas de análise, o eixo fundamental de sua teoria da dependência (em especial aquela de Dialética da Dependência) leva em conta mais a geopolítica (ou seja, a disputa político-econômica entre nações) que a dinâmica das classes através do globo. Isto é um verdadeiro biombo, que impede perceber a dinâmica das classes no interior do “Centro”, e como ela afeta as próprias relações com a “Periferia”. Mas Marini, infelizmente, está em boa companhia ao usar o biombo geopolítico: Marx fazia exatamente o mesmo séculos atrás. Tudo isto dá à passagem “rasa e irresponsável” do texto uma precisão extrema — embora, evidentemente, tal afirmação o incomode por você incorrer no mesmo equívoco. Isto em nada desmerece os esforços militantes de Marini ou os de Marx; apenas evidencia algumas limitações importantes, cujas consequências precisam ser analisadas com rigor.
Alguns leitores têm tomado esta série de artigos por aquilo que ela não é ou por muito menos do que aquilo que é. Chego a perguntar a mim mesmo se lhes interessam os artigos ou apenas os comentários.
Iniciei o primeiro artigo citando Gunnar Myrdal e Mário Pedrosa, o que desde logo marca um amplo leque político de esquerda e coloca a questão no plano mundial e não apenas brasileiro. Convém olhar para além do umbigo de um país, mesmo quando se trata de países enormes, e procurei chamar a atenção para os lugares distantes onde se encontram as raízes ideológicas do Brasil Potência. Para alguns leitores é um esforço inútil, porque não se interessam pelo que não conhecem. Talvez para outros tenha tido alguma utilidade.
O objectivo do artigo anterior, onde analisei a política da «nação proletária», era fornecer o quadro geral onde poderia depois apresentar as teses económicas de Manoilescu. Mas quando me dizem que nada disso tem a ver com a extrema-esquerda brasileira eu fico pasmado com tanta distracção. Os discursos sobre a «soberania» — «soberania económica», «soberania alimentar» — feitos pelos ideólogos dos principais movimentos sociais brasileiros são discursos típicos de nação proletária. O mais notável, na minha opinião, é a candura com que a generalidade da extrema-esquerda brasileira se deixa permear por este tipo de discursos sem sequer se dar conta das suas implicações. E ai de quem se permita chamar-lhe a atenção!
Assim, a relação genética é dupla. Por um lado, processou-se no plano político. Por outro lado, processou-se no plano económico, através da influência exercida pelas teses de Manoilescu sobre a CEPAL. A obra de Joseph Love que eu citei, e insisto que é indispensável lê-la, constitui um modelo de historiografia porque segue com uma minúcia bem documentada os caminhos percorridos pelas teses de Manoilescu até chegarem à CEPAL. A partir daí, as ideias económicas e de política económica defendidas por Celso Furtado exerceram uma influência determinante não só sobre a esquerda brasileira mas sobre a extrema-esquerda também, directa e indirectamente, disseminando-se no ambiente cultural mais amplo.
Os teóricos da dependência a quem eu me refiro neste artigo de forma genérica e sem os nomear são, antes de mais, os relacionados com o CEBRAP, que exerceram uma influência incomparavelmente maior do que Ruy Mauro Marini ou Theotônio dos Santos. Além disso, eles não se resumem aos cidadãos brasileiros. E por que haviam de resumir-se? O Brasil está no mundo. Decerto os dois nomes que logo ocorrem aos leitores versados no assunto são Paul Baran e Paul Sweezy, que desenvolveram quadros de análise com uma influência persistente, ainda hoje, na extrema-esquerda mundial e na brasileira também. CEPAL, CEBRAP, Sweezy e Baran, são estes — e não alguns teóricos eventualmente interessantes mas obscuros — os pontos de referência da formação ideológica mais ampla.
Pode ter havido alguns, poucos, teóricos da dependência a pensar em termos de classe e a aproximar-se do entendimento de que a desigualdade entre os países do centro e os da periferia resultava da desigual distribuição de mais-valia no interior dos capitalistas. Mas eles são os menos conhecidos, o que por si só é esclarecedor. Segundo esses teóricos, os capitalistas desfavorecidos procurariam compensar esta situação mediante uma sobre-exploração dos trabalhadores. Ora, aquela sobre-exploração era concebida nos moldes da mais-valia absoluta, e esses teóricos da dependência não imaginavam que a sobre-exploração na periferia pudesse assumir a forma de mais-valia relativa, ou seja, que na periferia se pudesse encetar um processo de acumulação rápida do capital baseado no crescimento da produtividade. Se a mais-valia absoluta é sinónimo de atraso tecnológico e estagnação económica e, portanto, representa a eternização da situação de dependência periférica, a passagem à mais-valia relativa conduz ao crescimento económico e, portanto, à possibilidade de ultrapassar a dependência. E quando isto sucede ao mesmo tempo que o centro sofre uma crise, estão criadas as condições para a inversão geopolítica do capitalismo mundial. É o que tem sucedido desde 2008. O novo centro, porém, está a formar-se numa época em que as economias nacionais foram superadas pela transnacionalização do capital. A transnacionalização não fez com que o desenvolvimento do capitalismo deixasse de ser desigual, mas alterou o mapa dessa desigualdade, desenhando uma nova geopolítica, muito mais complexa, sem corresponder às fronteiras das nações. A divisão entre centro e periferia, além de não ser estacionária, passou a permear praticamente todos os países. Parece-me preferível abandonar esses termos e mencionar apenas a articulação entre mais-valia relativa e mais-valia absoluta, que dita a nova geopolítica, imbricada e permanentemente mutável, atravessando os países, as companhias transnacionais e até cada cadeia produtiva.
O Jõao Bernando tem razão quando diz: ”Pode ter havido alguns, poucos, teóricos da dependência a pensar em termos de classe e a aproximar-se do entendimento de que a desigualdade entre os países do centro e os da periferia resultava da desigual distribuição de mais-valia no interior dos capitalistas. Mas eles são os menos conhecidos, o que por si só é esclarecedor.”
Pois é, de fato, e me pareceu que o ponto do Agripino era exatamente esse. Eles são tão desconhecidos que qualquer crítica deve ser muito bem colocada, para não perpetuar o esquecimento e deformação a que foram submetidos. Há uma confusão em falar dos ”teóricos marxistas da dependência” referindo-se ao pessoal ligado à CEBRAP, talvez daí venha a confusão. É bom que o João Bernardo tenha esclarecido depois.
No entanto, a sequência do trecho acima citado me parece que repete a confusão. Qualquer leitura de ”Dialética da dependência” é capaz de perceber que o Marini fala precisamente de articulação da mais-valia absoluta com a relativa. O João Bernardo afirma: ”Segundo esses teóricos, os capitalistas desfavorecidos procurariam compensar esta situação mediante uma sobre-exploração dos trabalhadores. Ora, aquela sobre-exploração era concebida nos moldes da mais-valia absoluta, e esses teóricos da dependência não imaginavam que a sobre-exploração na periferia pudesse assumir a forma de mais-valia relativa, ou seja, que na periferia se pudesse encetar um processo de acumulação rápida do capital baseado no crescimento da produtividade”.
Curioso é que essa apreciação equivocada é a mesma de FHC e, por tabela, também a do pessoal da Unicamp – terá tido influência? Vejam o contraste com o que diz Marini ao final do seu livro mencionado (assim como o Agripino, vou tomar a liberdade de citá-lo em extenso):
”Es en este sentido que la economía dependiente —y por ende la superexplotación del trabajo— aparece como una condición necesaria del capitalismo mundial, contradiciendo a quienes, como Fernando Henrique Cardoso, la entienden como un suceso accidental en el desarrollo de éste. La opinión de Cardoso, emitida en un comentario polémico a mi ensayo,[6] es la de que, teniendo a la vista que la especialidad del capitalismo industrial reside en la producción de plusvalía relativa, todo lo que se refiere a las formas de producción basadas en la plusvalía absoluta, por significativa que sea su importancia histórica, carece de interés teórico. Sin embargo, para Cardoso, ello no implica abandonar el estudio de la economía dependiente, una vez que en ésta se da un proceso simultáneo de desarrollo y de dependencia, lo que hace que, en su etapa contemporánea, ella esté basada también en la plusvalía relativa y en el aumento de la productividad.
Señalemos, inicialmente, que el concepto de superexplotación no es idéntico al de plusvalía absoluta, ya que incluye también una modalidad de producción de plusvalía relativa —la que corresponde al aumento de la intensidad del trabajo. Por otra parte, la conversión de parte del fondo de salario en fondo de acumulación de capital no representa rigurosamente una forma de producción de plusvalía absoluta, puesto que afecta simultáneamente los dos tiempos de trabajo al interior de la jornada laboral, y no sólo al tiempo de trabajo excedente, como pasa con la plusvalía absoluta. Por todo ello, la superexplotación se define más bien por la mayor explotación de la fuerza física del trabajador, en contraposición a la explotación resultante del aumento de su productividad, y tiende normalmente a expresarse en el hecho de que la fuerza de trabajo se remunere por debajo de su valor real.
No es éste, sin embargo, el punto central de la discusión. Lo que se discute es si las formas de explotación que se alejan de la que engendra la plusvalía relativa sobre la base de una mayor productividad deben ser excluidas del análisis teórico del modo de producción capitalista. El equívoco de Cardoso está en responder afirmativamente a esta cuestión, como si las formas superiores de la acumulación capitalista implicaran la exclusión de sus formas inferiores y se dieran independientemente de éstas. Si Marx hubiera compartido esa opinión, seguramente no se habría preocupado de la plusvalía absoluta y no la habría integrado, en tanto que concepto básico, en su esquema teórico.[7]
Ahora bien, lo que se pretende demostrar en mi ensayo es, primero, que la producción capitalista, al desarrollar la fuerza productiva del trabajo no suprime sino acentúa, la mayor explotación del trabajador, y segundo, que las combinaciones de formas de explotación capitalista se llevan a cabo de manera desigual en el conjunto del sistema, engendrando formaciones sociales distintas según el predominio de una forma determinada.
[… Cortei, mas recomendo a leitura]
Lo que importa señalar aquí, en primer lugar, es que la superexplotación no corresponde a una supervivencia de modos primitivos de acumulación de capital, sino que es inherente a ésta y crece correlativamente al desarrollo de la fuerza productiva del trabajo; suponer lo contrario equivale a admitir que el capitalismo, a medida que se aproxima de su modelo puro, se convierte en un sistema cada vez menos explotativo y lograr reunir las condiciones para solucionar indefinidamente sus contradicciones internas. En segundo lugar, según el grado de desarrollo de las economías nacionales que integran el sistema, y del que se verifica en los sectores que componen cada una de ellas, la mayor o menor incidencia de las formas de explotación y la configuración específica que ellas asumen modifican cualitativamente la manera como allí inciden las leyes de movimiento del sistema, y en particular la ley general de la acumulación de capital. Es por esta razón que la llamada marginalidad social no puede ser tratada independientemente del modo como se entrelazan en las economías dependientes el aumento de la productividad del trabajo, que se deriva de la importación de tecnología, con la mayor explotación del trabajador, que ese aumento de la productividad hace posible.
No por otra razón la marginalidad sólo adquiere su plena expresión en los países latinoamericanos al desarrollarse en éstos la economía industrial.
La tarea fundamental de la teoría marxista de la dependencia consiste en determinar la legalidad específica por la que se rige la economía dependiente. Ello supone, desde luego, plantear su estudio en el contexto más amplio de las leyes de desarrollo del sistema en su conjunto y definir los grados intermedios mediante los cuales esas leyes se van especificando. Es así como la simultaneidad de la dependencia y del desarrollo podrá ser realmente entendida. El concepto de subimperialismo emerge de la definición de esos grados intermedios y apunta a la especificación de cómo incide en la economía dependiente la ley según la cual el aumento de la productividad del trabajo (y por ende de la composición orgánica del capital) acarrea un aumento de la superexplotación. Es evidente que dicho concepto no agota la totalidad del problema.
Como quiera que sea, la exigencia de especificar las leyes generales del desarrollo capitalista no permite, desde un punto de vista rigurosamente científico, recurrir a generalidades como la de que la nueva forma de la dependencia reposa en la plusvalía relativa y el aumento de la productividad. Y no lo permite porque ésta es la característica general de todo desarrollo capitalista, como se ha visto. El problema está pues en determinar el carácter que asume en la economía dependiente la producción de plusvalía relativa y el aumento de la productividad del trabajo.
En este sentido, se pueden encontrar en mi ensayo indicaciones que, aunque notoriamente insuficientes, permiten vislumbrar el problema de fondo que la teoría marxista de la dependencia está urgida a enfrentar: el hecho de que las condiciones creadas por la superexplotación del trabajo en la economía capitalista dependiente tienden a obstaculizar su tránsito desde la producción de plusvalía absoluta a la de plusvalía relativa, en tanto que forma dominante en las relaciones entre el capital y el trabajo. La gravitación desproporcionada que asume en el sistema dependiente la plusvalía extraordinaria es un resultado de esto y corresponde a la expansión del ejército industrial de reserva y al estrangulamiento relativo de la capacidad de realización de la producción. Más que meros accidentes en el curso del desarrollo dependiente o elementos de orden transicional, estos fenómenos son manifestaciones de la manera particular como incide en la economía dependiente la ley general de la acumulación de capital. En última instancia, es de nuevo a la superexplotación del trabajo que tenemos que referirnos para analizarlos.
Estas son algunas cuestiones sustantivas de mi ensayo, que convenía puntualizar y aclarar. Ellas están reafirmando la tesis central que allí se sostiene, es decir, la de que el fundamento de la dependencia es la superexplotación del trabajo. No nos queda, en esta breve nota, sino advertir que las implicaciones de la superexplotación trascienden el plano de análisis económico y deben ser estudiadas también desde el punto de vista sociológico y político. Es avanzando en esa dirección como aceleraremos el parto de la teoría marxista de la dependencia, liberándola de las características funcional‑desarrollistas que se le han adherido en su gestación.”
Posso estar equivocado, mas não vejo muita diferença aqui com o que diz o mesmo João Bernardo em outro comentário sobre o texto ”Nunca antes na história desse país…”. Lá diz ele: ”A articulação entre aquilo que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa e mais-valia absoluta tem caracterizado o capitalismo em todas as épocas e em todos os países, embora em graus variáveis.” É essa articulação que o Marini pretende explicar, mas seu projeto de pesquisa-militância foi abortado, em geral com golpes militares, seja aqui no Brasil em 1964, seja no Chile em 1973. No México, onde ele seguiu em parte suas pesquisas, ele criou o Centro de Informação, Documentação e Análise do Movimento Operário na América Latina (CIDAMO). E aproveito a deixa para falar do comentário do Manolo.
É fato que naquela passagem transcrita pelo Agripino não aparece classe, trabalhadores e burguesia. Mas no mesmo livro ”Subdesarrollo y revolución” existe um capítulo de quase 100 páginas sobre o movimento revolucionário latino-americano, onde se trata precisamente de classes, burguesia, trabalhadores, etc. Aliás, está disponível na internet uma análise dele escrita em 1985 sobre o movimento operário brasileiro: http://www.marini-escritos.unam.mx/031_mobrero_es.htm
Acho que o ponto da debate que se travou aqui é que para parte da chamada ”extrema-esquerda” não existe aquela relação ”genética” à qual acertadamente o João Bernando tenta apontar e que é perigosíssima pára a esquerda. E é precisamente essa parte da esquerda que, após ter sido marginalizada, merece ser resgatada (criticamente, mas também de forma correta) para responder às mesmas perguntas que finalizam o texto.
Acho que era isso por enquanto…
Nos comentários dessa série de artigos publicados pelo passapalavra, tem aparecido ocasionalente o nome de Virgínia Fontes e sua recente obra O Brasil e o capital-imperialismo. Esta obra tem uma grande importância por estar retomando (assim como faz o passapalavra, embora por caminhos distintos) a discussão acerca do caráter imperialista do “capitalismo brasileiro”. Minha leitura dessa obra ainda é parcial, mas noto alguns pontos polêmicos que dizem respeito a muito do que se está discutindo por aqui. Um conceito central para autora, na definição do imperialismo, é o de “expropriação”, articulado com o de “acumulação primitiva”. Fontes nega, ao que me parece corretamente, que a acumulação primitiva seja algo que “aconteceu” no “início do capitalismo”. Ela defende que o processo de expropriação é próprio do capitalismo em sua fase imperialista. Ninguém tem dúvida acerca do poder do capital de destruição de formas pré-capitalistas de propriedade, de produção e de relações sociais. O conceito de expropriação assume uma gama bastante grande de relações sociais, na perspectiva de Fontes, algumas interessantes, como a noção de que os trabalhadores são constantemente exproriados dos meios de produção no curso do “desenvolvimento” do capitalismo. Outras bastante questionáveis, como os processos de privatização, onde as agências estatais são vistas como “bens coletivos” expropriados, comparados às terras comunais. Aqui se repete a velha confusão entre propriedade estatal e propriedade social. O conceito acaba assumindo um escopo de fenômenos demasiadamente heterogêneos, perdendo em certos momentos sua força analítica.
O que me parece mais problemático é o fato de a autora centrar demasiadamente a análise nas ditas formas arcaicas de desenvolvimento do capital, onde predominam a mais-valia absoluta, a subsunção formal, os movimentos de resistência à proletarização, etc., situação onde predomina muitas vezes uma perspectiva agrarista das lutas sociais. Ainda que a autora negue em vários momentos que seu olhar esteja voltado ao passado pré-capitalista, em sua obra (ao menos até onde fui) ficam brechas onde perspectivas terceiro mundistas podem buscar novos argumentos para sua legitimação. Ao centrar demasiadamente a análise na exproriação, embora não se fixe apenas nisto, a autora descuida da dimensão acerca do papel dos ciclos da mais-valia relativa no capitalismo avançado. Sem adentrar a essa discussão, como caracterizar com precisão o Brasil capital-imperialista, que há muito já não é uma economia baseada principalmente na mais-valia absoluta? Não cheguei ainda ao final da obra, para ver com maior clareza como a autora lida com esse debate.
Só uma observação: não seria melhor os debatedores tentarem sintetizar suas posições? Do jeito que a coisa anda é muito provável que ninguém chegue ao fim dos debates.
Sou leigo sobre teoria da dependência, por isso não vou opinar (muito).
Mas pelas leituras dos comentários nos dois artigos me parece que, se a teoria da dependência tematizou uma posição “subimperialista” do Brasil, e mais especificamente na América Latina, por outro lado não teria tematizado a realidade atual, que é a do Brasil numa posição imperialista emergente(e não subimperialista). É bom frisar isso. O que está sendo levantado em alguns artigos neste site não é um “subimperialismo” brasileiro, tão somente sobre Bolívia, Argentina, ou mesmo à Africa. Mas um que se dá também sobre o Canadá, a Nova Zelândia etc. O “imperialismo emergente” não é regional, e por isso não é “sub”.
Eis que Leo Vinicius, analisando “a realidade atual”, anuncia a boa nova: o Brasil adquiriu uma posição imperialista, ainda que emergente!
Brasil imperialista? Discordo completamente!!!
E discordo por adotar um critério claro: TECNOLOGIA.
O Brasil não domina e nem está perto de dominar nenhum setor produtivo pertencente à fronteira tecnológica. As maiores empresas, líderes nos setores de alta tecnologia, são sediadas em países que não são o Brasil.
Aí o João Bernardo escreve sobre a transnacionalização do capital. Ok! But, o Estado nacional que sedia as empresas retém a mais-valia produzida globalmente através de um mecanismo chamado remessa de lucros. Há vários estudos que apontam que o Investimento Direto Externo efetuado pelas empresas gringas instaladas nos países periféricos é inferior à remessa de lucro enviada às matrizes.
Liderar o domínio sobre os setores de alta tecnologia significa nada mais nada menos que dominar a revolução tecnológica em curso e isso abre possibilidades tremendas para desencadear processos civilizatórios sobre os outros povos. E os processos civilizatórios são regidos/centralizados por uma formação socio-cultural que adquire a força de um império. Isso é o Darcy Ribeiro quem escreveu em seu O Processo Civilizatório. O grande Darcy fez uma teoria do imperialismo (!!!) que poucos conhecem, pois é mais um boicotado na academia. Ele analisou a história da humanidade a partir das revoluções tecnológicas e percebeu que as formações socioculturais (o que hoje conhecemos como países) se desenvolveram dominando outras e isso foi possível porque graças ao domínio tecnológico adquiriram um poder produtivo e militar extraordinários. Os processos civilizatórios constituem centros que se desenvolvem de maneira relativamente autônoma (movimento de acerelação evolutiva) e periferias dominadas que se desenvolvem por movimentos de incorporação histórica/modernização reflexa.
O Brasil não é imperialista porque não irradia pelo globo nenhum processo civilizatório; não domina nenhuma revolução tecnológica contemporânea; não exerce influência significativa (sócio-cultural-política-econômica) sobre nenhuma nação, excetuando alguns países da américa latina e algumas fábricas da Odebrecht, Gerdau, Vale, Petro em outros países… Empresas essas limitadíssimas às revoluções tecnológicas de séculos passados.
O Brasil é atualmente um país dependente, talvez nem subimperialista. Na tipologia de Wallerstein, pertence a semi-periferia. O Brasil sofre os processos de aceleração evolutiva desencadeados pelos países que dominam a revolução tecnológica atual (nano-tecnologia; eletrônica; robótica; softwares; fármacos; bio-tecnologia; energia renovável…). Vocês sabem quais países dominam esses setores; e vocês sabem que esses mesmos países permitiram o transbordamento aos países periféricos da produção de tecnologias que correspondem às revoluções tecnológicas passadas. Isso é teoria do ciclo do produto!
O Brasil não consegue nem uma política razoável de ciência e tecnologia, não destina verba para isso. Mal consegue pôr seus jovens na universidade em condições dígnas de estudo; nossos graduandos têm poucas bolsas de iniciação científica e os pós-graduandos sofrem com bolsas miseráveis, quando as conseguem; os laboratórios universitários não possuem material; o Brasil tem uma baixíssima produção de patentes; as empresas privadas investem um percentual ínfimo de seu faturamento em P&D; e por aí vai… E por fim, o que o grande BNDES (que o João Bernardo gosta tanto de citar) financia: o estádio do Corinthians e grandes obras de construção civil. Sem domínio da fronteira tecnológica não se criam as condições para aquisição de poder produtivo e militar extraordinário, que, por sua vez, são as condições do imperialismo. Não estou defendendo que o Brasil deva se tornar uma nação imperialismo; digo apenas que ele não o é.
E isso significa dizer que ficarei chorando e tendo uma visão do Brasil como um país “coitadinho”, como disse o João B? Não, trata-se apenas da realidade. Estou olhando apenas para o umbigo de um país? Também não. Olho para o capitalismo global estratificado entre países que possuem posições diferentes na divisão internacional do trabalho. E essa diferenciação resulta em consequências sentidas pelas populações desses países. Embora seja evidente que também haja pobres e desempregados nos países centrais, não se pode comparar o nível de vida (em termos de consumo de água, por exemplo; ou renda percapita; ou IDH) alcançado por lá. A crise do capitalismo iniciada em 2008 está revertendo isso? Não sei…
“Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto”, sim, e daí? Teria que conferir dados, mas o Brasil já passou por outros períodos da história (Vargas, JK, Ditadura civil-militar) em que produziu, exportou e investiu muito! E a pauta de produtos produzidos e exportados quase não se alterou. Se esse é o critério, o Brasil é imperialista há muito tempo, já passamos a situação de “emergentes”.
João Bernardo, esse trecho de seu comentário é totalmente equivocado:
“Segundo esses teóricos, os capitalistas desfavorecidos procurariam compensar esta situação mediante uma sobre-exploração dos trabalhadores. Ora, aquela sobre-exploração era concebida nos moldes da mais-valia absoluta, e esses teóricos da dependência não imaginavam que a sobre-exploração na periferia pudesse assumir a forma de mais-valia relativa, ou seja, que na periferia se pudesse encetar um processo de acumulação rápida do capital baseado no crescimento da produtividade. Se a mais-valia absoluta é sinónimo de atraso tecnológico e estagnação económica e, portanto, representa a eternização da situação de dependência periférica, a passagem à mais-valia relativa conduz ao crescimento económico e, portanto, à possibilidade de ultrapassar a dependência.”
Apenas reproduz o desconhecimento fruto do boicote recebido pelos autores da teoria marxista da dependência; boicote liderado por FHC e difundido na Unicamp por “ilustres pensadores” como José Serra, Guido Mantega e João Manuel Cardoso de Melo…
E por outro lado, você fala em “inversão geopolítica do capitalismo mundial”. Onde? Onde? Onde?
Ainda: você sugere abandonar os termos da dependência e mencionar apenas a articulação entre mais-valia absoluta e relativa. Bom a Clea Silva mostrou como o Marini fala precisamente de articulação da mais-valia absoluta com a relativa e suas consequencias para os países… dependentes!
Para mim o ponto mais importante do artigo do João Bernardo é o alerta para os perigos de diluir a estratificação das classes na homogeneização da nação. Esse é o perigo do fascismo, abdicar da luta de classes para tratar dos “grandes temas da nação”. Esconder ou relativizar os ataques à classe trabalhadora na defesa de um “país forte”.
Porém, eu vejo um mundo em que os Estados Nacionais ainda possuem grande poder (as empresas transnacionais não romperam as fronteiras nacionais, pois têm sempre um Estado como âncora a qual recorrer em tempos de crise) e por isso não posso abandonar os termos nação, nacionalismo, povo… O velho equilíbrio entre capital e coerção se mantém desde há muito… Mas usando esses termos, não acredito que estou deixando de lado a luta de classes, pois tenho consciência de que a maneira como posso reagir ao capitalismo global (além de aqui degladiar virtualmente) é estando na rua, participando dos movimentos aos quais tenho acesso em minha região e, por isso mesmo, colocando-me ao lado dos trabalhadores, dos estudantes, dos grevistas, das cooperativas, do MST, das manifestações e protestos que ocorrem no mundo, etc. Contrário portanto aos capitalistas — fazendo esses parte ou não do Estado.
E siga o debate!
Vários leitores têm-se alongado a insistir que houve um — ou dois ou mesmo três — teórico da dependência que não confundiu a distribuição desigual da mais-valia com a extorsão de mais-valia e não converteu a luta de classes num confronto de nações. Um teórico da dependência imune ao nacionalismo. Mas, curiosamente, esses leitores empregam os termos do mais lamentável nacionalismo, o nacionalismo do ressentimento. Eis um interessante exemplo de negação do conteúdo pela forma.
Silva Fernandes,
Se você ler direito meu comentário verá que eu não afirmei que o Brasil é imperialista, ou imperialista emergente. Afirmei que esse era o ponto que estava sendo levantado em artigos neste site (e não uma posição subimperialista brasileira)!
A mim sinceramente não interessa discutir em termos de imperialismo, seja norte-americano, seja brasileiro. Não sou nacionalista. Para mim o que importa é a luta de classes.
O incrível é que mesmo num site como o do Paulo Henrique Amorim, que é abertamente brizolista (portanto nacionalista), já não se esconde a posição imperialista do Brasil, como por exemplo através da Vale. No entanto marxistas parece que, como quase sempre, perdem o bonde da história.
Sobre tecnologia, recomendo a Silva Fernandes dar uma olhada nisto aqui:
http://pt.scribd.com/doc/51762876/Knowledge-Networks-and-Nations
Trata-se de um relatório da The Royal Society, a academia britânica de ciências, que aponta o Brasil como potência emergente em desenvolvimento tecnológico. Se quiser um resumo em português deste mesmo documento, ei-lo:
http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=potencias-cientificas-emergentes-ciencia-global&id=020175110330
João Bernardo: fiquei buscando o aludido “nacionalismo do ressentimento” que você aponta (bem de longe), mas não encontro… Não me senti aludida, mas seja mais explítico, pois se não fica o tom de acusão que desmerece o debate.
Parece que existe um certo gosto da “polêmica pela polêmica” em alguns leitores…
Creio que levar o “debate” nesse tom não vai levar a grandes avanços…
Não me espanta que Clea Silva não encontre traços de nacionalismo, se está habituada a ele sem o identificar. Para mim, o comentário de Silva Fernandes, além dos erros de facto que são tão numerosos como os factos evocados, está eivado de nacionalismo, mas não foi só ele que me suscitou a observação. Respiguei rapidamente as passagens seguintes, nos comentários a ambos os artigos desta série:
«Você deveria pesquisar em primeiro lugar a história intelectual do Brasil (sim, ela existe! e não é “terceiro-mundista” em nada!)»; «o tipo de nacionalismo revolucionário pregado por Darcy Ribeiro»; «o grande Darcy»; «foi o próprio JB quem decidiu discutir o pensamento político brasileiro com fontes japonesas e italianas»; «são muitos os exemplos históricos em que o nacionalismo resultou em importantes movimentos de contestação e de luta por uma sociedade anti/pós capitalista»; «o Estado nacional pode desempenhar funções e praticar políticas sócio-econômicas que contribuam com o fortalecimento da democracia e da organização popular»; «os Estados nacionais existem e não estão completamente submetidos às empresas transnacionais, tendo dessa forma, força para se opor às nações centrais e propor o novo».
E prevendo que alguém me venha dizer que não devo mencionar erros de facto sem ser mais explícito, os existentes no comentário de Silva Fernandes são, por ordem, os seguintes:
1) Nos últimos anos tem havido uma numerosa literatura sobre os avanços tecnológicos operados pelas companhias transnacionais sediadas nas economias emergentes ou operados por filiais de transnacionais localizadas nessas economias. Dei exemplos disso num artigo publicado neste site: http://passapalavra.info/?p=28241 Quem quiser ter uma visão de conjunto introdutória do problema pode ler, por exemplo, o World Investment Report 2005.
2) Atribuir a Darcy Ribeiro aquela teoria sobre os centros de inovação e difusão tecnológica revela desconhecimento da historiografia. Na área em que mais pesquisei, trata-se de uma ideia relativamente antiga, que encontrei defendida pela primeira vez por historiadores norte-americanos. E, noutra perspectiva, cabe a este respeito lembrar Schumpeter.
3) As empresas citadas, Odebrecht, Gerdau, Vale e Petrobras, são reconhecidamente inovadoras tanto no plano da tecnologia material quanto no da tecnologia social, ou seja, nas formas de administração de empresa e de organização do trabalho. Esse reconhecimento é patente tanto em literatura económica publicada no Brasil como em literatura de língua inglesa.
4) As inovações tecnológicas actuais não são mais geradas nem dominadas por países, mas por companhias transnacionais. Nas antigas companhias multinacionais o poder da sede emanava sobre as filiais porque estas reproduziam em ponto pequeno a forma de organização da sede. Nas actuais companhias transnacionais as cadeias produtivas são integradas, embora estejam dispersas pelo mundo. Foi isto que permitiu, ou que impôs, o fenómeno que indiquei no ponto 1.
5) Quanto à relação dos empréstimos do BNDES com o fomento à inovação, tanto nas grandes empresas como nas pequenas e médias, seria conveniente estudar a repartição dos empréstimos do Banco e os critérios que lhe presidem, em vez de citar fora de propósito um exemplo único.
6) Quanto à inversão geopolítica do capitalismo mundial, precipitada pela crise financeira, convém ler o que se tem escrito em torno do decoupling.
7) O que caracteriza as companhias transnacionais é precisamente não terem «um Estado como âncora ao qual recorrer em tempos de crise», mas, pelo contrário, poderem deslocar por todo o mundo os elementos da cadeia de produção e os centros administrativos, sem se prenderem a um ou outro Estado, de modo a iludir ou minorar os efeitos de uma crise.
No final de contas, Felipe tem razão. Eterniza-se o debate reclamando que o autor de um artigo esclareça aspectos e corrija erros que deviam ser os próprios autores dos comentários a elucidar ou a não cometer.
Felipe, acho que todos os comentários até aqui foram precisamente para gerar debate. Caso contrário, de quê serviriam? Se todos devem concordar com os artigos publicados, melhor que nem exista esse espaço de discussão. Ao meu ver o debate até aqui me pareceu bastante valioso, útil para esclarecer alguns posicionamentos, arguementar mais em torno ao tema, trazer informações pertinentes, oferecer novas formas de se aproximar de uma mesma questão, etc. Aliás, meu comentário foi exatamente neste último sentido, ou seja, para lembrar que há tempos alguns intelectuais-militantes têm tratado de responder questões similares àquelas que fecham o artigo. Pode não ter sido suficiente o que disseram, ou mesmo pode estar completamente equivocado, mas seria estupidez da esquerda passar por alto dos escritos do Marini, pois ele já apontava que ”o capitalismo brasileiro é desde já, neste momento, um imperialismo emergente”. Simples.
As questões postas por JB nesses 2 artigos são muito importantes, inescapáveis a quem quer pensar a revolução hoje. Os artigos e comentários me serviram nem tanto pra responder questões abertas pra mim mas especialmente pra adicionar novas dúvidas ao “já solidificado”. Como sabemos a dialética (história) não é uma massa inerte e portanto remexer o conhecimento tido como certo é fundamental, daí a necessidade da autocrítica permanente. Muitos comentários “críticos”, além do lamentavelmente indiscutível ranço nacionalista, se mostraram muito fechados ao novo e em geral buscaram se defender pautando-se nas debilidades sociais do Brasil, o que indicaria o caráter não-imperialista desse país. Ora, há aqui um pressuposto equivocado. Um país se pôr no sistema do capital numa posição “imperialista” não significa necessariamente ganhos civilizatórios à sociedade de tal país. “País” aqui significa apenas a capa estatal que serve de apoio tático e estratégico a um capital transnacional, que não é de forma alguma obrigado a “civilizar por tabela” o Estado que “representa”. Se antes isso era por si evidente, é porque a dinâmica do capital lhe propiciava isso. Com a crise estrutural (Mészáros) essa capacidade de concessões materiais à classe trabalhadora “interna” se torna cada vez mais inconveniente e progressivamente inviável pois o capital conta cada vez menos com seus mecanismos de “deslocamento das contradições”, os quais inclusive explicam em grande parte as próprias desigualdades nacionais de desenvolvimento capitalista. Durante muito tempo a “civilidade por tabela” foi mesmo uma verdade relativa, na medida em que o capital externo aproveitava os mercados de consumo internos pra realizar parte da produção, mas hoje em dia me parece que esses mercados internos periféricos são largamente dispensáveis, ainda que hajam exceções importantes em determinados setores do capital para os quais compensa expandir o consumo de seus produtos para determinados mercados da periferia do sistema (basta pensar na expansão do mercado automobilístico no Brasil). Mas mesmo isso é secundário quando se pretende o entendimento do sistema do capital contemporâneo e suas implicações/possibilidades de transição, pois como o JB ressaltou em algum lugar, o capital não é acumulação de objetos, mas o estabelecimento, reprodução e (eu acrescentaria, e certamente JB concordaria) controle de um tipo específico de relação social, que impõe determinada sociabilidade. Isso é o central, como foi ressaltado por muitos aqui: os conflitos classistas, o antagonismo capital-trabalho. Enfim, posso estar errado ou em desacordo (em algum ponto) com o autor do texto, mas na minha opinião a iniciativa de JB é importantíssima pois chama a atenção pro lado curiosamente deixado de lado pelo “pensamento crítico” terceiro mundista e seu apego obsessivo aos velhos esquemas nacionalistas anti-imperialistas enquanto desconsidera o rodar do mundo (que, é verdade, muitas vezes roda pra voltar pro mesmo lugar – daí a atualidade de Marx) e não faz a necessária autocrítica permanente. Aproveitando, uma pergunta: JB, vc considera que suas críticas dirigidas explicita e implicitamente a alguns pensadores brasileiros nesses 2 artigos são aplicáveis também à teoria de Florestan Fernandes?
Só um detalhe…
A despeito da minha caracterização do estado como suporte tático e estratégico do capital transnacioanl, concordo com o tópico 7 do comentário acima de JB, que talvez seja um elemento caracterizador mais importante mesmo. Entretanto, penso que o capital transnacional se vale das duas potencialidades: não só da potencialidade do “deslocamento” mas também de se servir de Estados nacionais de toda forma que lhe convir, p.ex.a fim de quebrar protecionismos, isenção de impostos, asseguramento de monopólios, resguardo político e econômico em tempos de crise, etc: O que convir e for necessário no momento, pra assegurar os lucros.
A propósito do comentário de Pablo, é interessante recordar uma passagem de um texto do prof. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, actual presidente da Associação Nacional de História, Dois Projetos Radicalmente Diferentes, onde o autor defendeu a candidatura de Dilma Rousseff à presidência da República: «É inegável que as formulações econômicas, mas também sociais e políticas do governo Lula têm a sua matriz no pensamento nacional-desenvolvimentista cepalino, mais precisamente no pensamento do maior economista brasileiro, o paraibano Celso Furtado, por quem Lula sempre teve uma admiração quase devocional». Esta afirmação é exacta, ninguém duvida, mas o curioso é que ela pudesse ser feita tão tranquilamente. Ora, o objectivo destes meus dois artigos era precisamente chamar a atenção dos leitores para as raízes das teses da CEPAL, mas parece que a maioria dos que escreveram comentários achou pouco ou nada relevante a existência de uma continuidade ideológica entre um fascista romeno — o notável economista (e menos notável político) Manoilescu — e os orientadores da política económica do PT no governo. Não se trata de analogias nem de coincidências, como o livro de Joseph Love demonstrou, e mais uma vez insisto na importância desta obra. Mas, muito mais profundamente do que o plano em que Love situou a sua análise, trata-se de um quadro comum a um certo nacionalismo e a uma certa extrema-esquerda, que mostrou os seus resultados funestos ao longo de todo o século passado. Neste âmbito, é talvez possível que a obra de Florestan Fernandes não escape; mas infelizmente eu não estou em condições para formular uma opinião fundamentada, porque só o li de maneira ocasional e não sistemática. Mas longe de mim a ideia de excomungar autores! Leio de todos os quadrantes, sem excepção, e procuro ler todos de maneira crítica. Compreendo muito bem que haja pessoas que acreditam em Deus, que olhem para o ar, para a imensidão, ou para a desgraça humana, e concebam Deus. O que realmente me custa a admitir é que haja quem divinize professores universitários.
Para tentar esclarecer parte do debate aqui travado, que parece ser feito entre surdos.
O objetivo do artigo do JB é extramante válido e merece debate. Ele de fato conseguiu revelar as raízes da CEPAL e chamar a atenção para o fato de que existe uma certa “continuidade ideológica entre um fascista romeno — o notável economista (e menos notável político) Manoilescu — e os orientadores da política económica do PT no governo.” Até aí, perfeito.
No entanto, nesse intuito acabou generalizando para autores da “teoria marxista da dependência” as mesmas críticas dirigidas à CEPAL. Aqui entra o problema. Depois ele esclareceu que estava se referindo ao FHC, Serra, entre outros. Agora a crítica volta a ser válida, mas com um porém: esses não são marxistas. Para quem estuda o extenso e importante debate sobre a dependência, são considerados “teóricos marxistas da dependência” autores como Vania Bambirra, Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, entre outros.
O que muitos comentários tentaram afirmar (ao meu ver com suficentes argumentos) foi que estes últimos autores, e em particular o Marini, trataram do mesmo tema que agora está em pauta: o imperialismo “brasileiro”. Voltar a esses autores de uma forma crítica não significa ficar atado ao “terceiro-mundismo” e não perceber o novo. Trata-se simplesmente de conhecer uma interpretação crítica e pertinente, para superá-la de acordo com a realidade atual. O difícil é que muitos querem fazer a crítica a esses autores sem nem mesmo conhecê-los, o que ao meu ver tem como resultado uma perda de capacidade crítica tremenda. Além disso, essa postura crítica à priori reproduz o enorme boicote que tais autores sofreram não só na academia, mas também nos meios políticos da esquerda.
Aliás, para quem vem estudando a fundo a controvérsia sobre a dependência, sobretudo os autores marxistas, não há nada de surpreendente na frase reproduzida do Albuquerque Jr. Desde o começo do governo alguns têm tentado postular um “novo-desenvolvimenetismo” como rumo ideológico ao país, resgatando obviamente o velho desenvolvimentismo, mas também abrindo a matriz ao neoliberalismo. Mas isso é assunto para um artigo à parte…
Queria apenas sintetizar o debate, tentando precisar algumas das posições aqui apresentadas. Espero que mais gente se interesse a ler criticamente – ou seja, sem endeusamento – os autores antes mencionados, pois ajudam a entender o presente, ainda que obviamente não o resolvem.
Saludos!
Dentro da programação da série, as teses do grupo de que Ruy Mauro Marini é o representante mais conhecido serão tratadas dentro de contextos específicos, em vários artigos. Pedimos aos mais sequiosos que aguardem.
Atenciosamente,
Coletivo Passa Palavra
Caro JB, chego atrasado ao debate. Vi que você já publicou outro artigo, mas espero que ainda seja tempo para fazer dois apontamentos/perguntas.
O artigo e os comentários me pareceram muito pertinentes e me alegra ver a paciência e o rigor com que você responde a todos. Imagino que você já tenha travado esses debates milhares de vezes, mas segue incansável defendendo sua posição.
Acima bem chamaram a atenção para a passagem do artigo em que você alerta sobre os riscos de diluir a estratificação das classes na homogeneização da nação. Esse trecho me chamou a atenção e me fez lembrar uma passagem d’A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. Não sei se a relação é cabível, mas me parece que Marx&Engels afirmam que essa homogeneização ocorre em tempos de potencial revolucionário, embora não ocorra entorno da nação, mas entre as próprias classes. Isto é, em tempos revolucionários uma classe coloca o seu interesse como universal (mesmo que ele seja particular) e se une/homogeneíza com as “classes subalternas”. O interesse de uma classe coincide então com o interesse de uma coletividade. E os autores exemplificam com o caso da Revolução Francesa em que a burguesia colocou seu interesse como sendo comum às classes subalternas, fazendo uma “aliança de classes” contra a aristocracia. A pergunta é: não há momentos (ou pelo menos houve momentos) em que homogeneizar a luta de classes na nação resultou em ações progressistas? Isso porque alguns interesses pertencentes às classes subalternas/ao proletariado, podem ser atingidos com o próprio ascenso da burguesia por meio do crescimento da nação. Acho que você mostrou isso no artigo sobre o socialismo da abundância/miséria, em que a burguesia trouxe ao proletariado as promessas dos socialistas.
Abaixo a passagem d’A Ideologia Alemã (Boitempo, 2007, p. 48-49):
“Toda nova classe que toma o lugar de outra que
dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de
todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas idéias a forma da
universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A classe revolucionária, por já
se defrontar desde o início com uma classe, surge não como classe, mas sim como representante de toda a
sociedade; ela aparece como a massa inteira da sociedade diante da única classe dominante. Ela pode fazer isso
porque no início seu interesse realmente ainda coincide com o interesse coletivo de todas as demais classes não dominantes e porque, sob a pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pode se desenvolver como interesse particular de uma classe particular. Por isso, sua vitória serve, também, a muitos indivíduos de outras classes que não alcançaram a dominação, mas somente na medida em que essa vitória coloque agora esses indivíduos na condição de se elevar à classe dominante […] Cada nova classe instaura sua
dominação somente sobre uma base mais ampla do que a da classe que dominava até então, enquanto, posteriormente, a oposição das classes não-dominantes contra a classe então dominante torna-se cada vez mais aguda e mais profunda”.
Um outro ponto que me parece digno de discussão nesse debate entre classe e nação é a expressão nacional-popular (não chega a ser um conceito). JB, você acha esse termo útil? Tem alguma capacidade explicativa e algum uso possível para a esquerda? Desconfio que sei a sua resposta, mas te pergunto porque um marxista como Gramsci a utiliza e acho que nas condições históricas em que ele escrevia era útil, talvez hoje não mais o seja.
Através da Marilena Chauí descobri que o Gramsci criou/utiliza a expressão nacional-popular de maneira contrária ao uso burguês e fascista, caracterizando o nacional-popular justamente como uma contra-hegemonia ao fascismo. Segundo Chauí, “nacional como resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada pela classe dominante, popular como expressão da consciência e dos sentimentos populares, feita seja por aqueles que se identificam com o povo, seja por aqueles saídos organicamente do próprio povo”
(Chauí, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas).
Ainda sobre o nacional-popular há outra passagem (que talvez lhe causará náuseas) na tese de doutorado de Claudio Reis, justamente sobre “O nacional-popular em Antonio Gramsci”, que diz o seguinte sobre a importância que Gramsci dá ao intelectual nacional-popular: trata-se daquele intelectual que,
em oposição ao intelectual cosmopolita, alienado em relação à sua própria realidade local não reconhecendo os
problemas específicos da vida nacional, incorpora os anseios das classes subalternas como fonte de suas
atividades específicas (Reis, 2009:153-154).
O que você acha de um intelectual nacional-popular?
A tese de doutorado está disponibilizada aqui: http://cutter.unicamp.br/document/?code=000447455
Caro Honório,
Vou procurar responder às suas questões, mas não se queixe de eu ser longo, porque as questões são complexas. Quanto à primeira, sobre a fusão de classes em épocas revolucionárias, o facto empírico é exacto, mas eu entendo a questão de modo bem diferente do de Marx e de Engels. Resumindo o meu raciocínio aos passos principais, uma classe não domina outra como um objecto exterior, como um de nós pode pegar num copo. Uma classe domina outra na medida em que dita o modelo de organização da outra. Uma classe que domina auto-organiza-se; uma classe dominada é hetero-organizada. Esta é uma definição que qualquer administrador de empresa aceitará. Na vida quotidiana, tanto no trabalho como nos lazeres, a organização dos trabalhadores é ditada pelos capitalistas, não tanto pelos órgãos repressivos, cuja função é mais a de estar presentes do que de actuar, mas sobretudo pelo urbanismo e outras formas de enquadramento. Trata-se, no entanto, de uma imposição à distância e em linhas gerais, que deixa um espaço para o que correntemente se chama privacidade. Foi esse espaço que os fascismos pretenderam abolir, sobretudo Hitler, que dissertou muito lucidamente sobre o facto de as massas serem especialmente perigosas quando parecem passivas, porque é então que, subterraneamente, longe da vista das elites, elas se constituem como uma força própria. Por isso os fascismos procuraram impor à população um estado de mobilização permanente. Ora bem, numa época revolucionária tudo se agudiza e o espaço da privacidade desaparece ou contrai-se. Na Revolução Francesa, durante a ditadura do Comité de Salvação Pública, aquando do chamado Terror, a burguesia conseguiu levar ao auge a hetero-organização das restantes classes sociais. O inverso sucede numa revolução conduzida pela classe trabalhadora. Os trabalhadores auto-organizam-se e desarticulam internamente os seus inimigos sociais, que ficam hetero-organizados. Trotsky tem uma passagem brilhante a este respeito na sua História da Revolução Russa, quando diz que se podia ter a certeza de que a revolução triunfara no momento em que porteiros e zeladores, que eram todos eles informadores da polícia, se passaram para o lado dos trabalhadores. Eu testemunhei um esboço deste processo em França em 1968, e testemunhei um grau muito adiantado deste processo durante um ano e meio, em Portugal, da Primavera de 1974 até ao Outono de 1975. Como vê, não recorro à noção de entidade nacional para explicar um fenómeno que considero nos termos das relações sociais de trabalho, na dualidade entre a auto-organização e a hetero-organização.
Agora vou contar-lhe uma história. Desde há muito tempo que eu estudo o fascismo, e há bastantes anos atrás deparei na Storia del Fascismo, de Enzo Santarelli, com uma referência ao facto de Gramsci, na Primavera de 1921, ter procurado entrar em contacto com Gabriele d’Annunzio pouco depois de este ter regressado de Fiume. Ignoro se você conhece D’Annunzio e a sua importância política no fascismo, de qualquer modo não tenho aqui espaço nem tempo para me alongar nisso. Digo apenas que ele era o representante da ala mais radical, mais populista, do fascismo, e tinha estado pouco antes no auge da glória. A informação de Santarelli deixou-me muitíssimo espantado e ele dava uma única referência, um artigo de Nino Daniele publicado em 1933 em I Quaderni della Libertá, nº 4, uma obscura revista de meia dúzia de leitores editada e difundida na imigração italiana em São Paulo. Encontrei noutro autor uma breve menção ao mesmo facto, referindo igualmente o artigo de Daniele. E quando eu estava já resignado ao triste destino de procurar traços da revista nas bibliotecas públicas paulistas encontrei-a microfilmada na BDIC de Nanterre. E era isso mesmo. Gramsci, um dos principais chefes do recém-constituído Partido Comunista italiano, prevendo que a breve prazo se desencadearia uma revolução no país, tentou que D’Annunzio o recebesse, para lhe propor que ele fosse o propagandista do futuro exército revolucionário, em defesa da «pátria proletária». Nino Daniele fora o intermediário, mas D’Annunzio considerou que não lhe era politicamente conveniente receber Gramsci e recusou o contacto. Os artigos que Gramsci escreveu nessa época no seu jornal L’Ordine Nuovo, defendendo a existência de clivagens no interior do fascismo, entendem-se a outra luz quando conhecemos o teor da sua proposta frustrada a D’Annunzio. Especialmente significativos naquele sentido são os artigos de Janeiro e Fevereiro de 1921, sobretudo o de 19 de Fevereiro. E ele não desistiu, porque insistiu depois no mesmo tema, nomeadamente no artigo de 9 de Agosto. E reflexos disso se podem encontrar ainda nas muito conhecidas Oito Lições sobre o fascismo, que Togliatti proferiu bastante mais tarde no exílio soviético, onde ele disserta, ou divaga, sobre a conveniência de aproveitar as clivagens internas do fascismo, atraindo uma parte para a revolução. É a esta luz que eu entendo as noções de Gramsci que você evoca. Eu dediquei à questão sete páginas de um livro e ninguém se importou com isso. É certo que o livro foi editado em portugal e Gramsci na Europa é uma figura bastante esquecida, longe de gozar da popularidade que o PT lhe conferiu no Brasil. Mas enfim, o nº 4 de I Quaderni della Libertá dorme desde 1933 nas bibliotecas de S. Paulo sem que os pesquisadores se comovam com o testemunho de alguém que sabia que Gramsci havia pretendido dar um lugar central no seu exército da «pátria proletária» ao ex-ditador de Fiume, a figura mais proeminente do fascismo radical.
João Bernardo, obrigado pelas considerações.
“Uma classe que domina auto-organiza-se; uma classe dominada é hetero-organizada.”
Compreendo o que você quer dizer, mas numa livre interpretação, isso implica que a luta das classes dominadas seja por auto-determinação, um “direito a auto-determinação dos povos” – que me parece ser o discurso dos movimentos sociais “arcaizantes”, principalmente o indigenista e mesmo o discurso da ONU. (Sei que “movimentos sociais arcaizantes” pode soar uma expressão desmerecedora e simplificadora da realidade desses movimentos).
Porém, alguns movimentos sociais costumam não pensar em classes, mas justamente em povos, nações…
“O inverso sucede numa revolução conduzida pela classe trabalhadora. Os trabalhadores auto-organizam-se e desarticulam internamente os seus inimigos sociais, que ficam hetero-organizados.”
Isso é coerente com a histórica luta dos trabalhadores por diminuição da jornada de trabalho, que por sua vez pode ser entendida como uma luta por auto-determinação do tempo. Auto-determinação que é uma maneira de escapar da dominação do capital que age como num circuito fechado, tanto nos momentos de trabalho, quanto nos momentos de ócio + sono. (como você já escreveu no «Economia dos Conflitos Sociais»).
Isso me leva a importante autor, o Andre Gorz, que tem boas proposições e análises, entre outros, nessa questão da auto-determinação do tempo.
Não conhecia o D’Annunzio e a sua importância política no fascismo; tampouco sabia que Gramsci era esquecido na Europa, pois aqui no Brasil ele é realmente muito popular. Parece-me que ele é especialmente popular nos cursos de Serviço Social.
Contudo, essa possível tentativa de aproximação de Gramsci com o fascismo não invalida sua obra e sua contribuição ao marxismo. Ou invalida?
Honório,
A autodeterminação nacional tem deixado os povos independentes muito pouco autodeterminados, pois passaram a ser dominados por novas elites. Olhe o que se passou em África, e o que antes se passou na América Latina. Por isso, na minha opinião a luta pela auto-organização ocorre fundamentalmente nas relações de trabalho.
Quanto a Gramsci, se a importância de um pensador dependesse de não cometer ziguezagues políticos, ninguém se salvava. A realidade é muito complicada, e quem quer actuar fora dos caminhos já feitos não encontra precedentes e guia-se como? Quem sabe os erros que cada um de nós está a cometer hoje? Acho que devemos analisar criticamente as figuras revolucionárias do passado, mas não as culpabilizar. No caso de Gramsci, note que eu não mencionei uma tentativa de aproximação ao fascismo, mas a uma parte do fascismo que ele considerava susceptível de ser absorvida pelo processo revolucionário. A realidade mostrou que as coisas caminharam de outro modo. O que me incomoda não é o facto de ele ter tido uma percepção errada, porque a teve quando os acontecimentos estavam em curso. O que me incomoda é o facto de, passadas décadas, as pessoas recortarem os personagens do passado à medida das suas devoções, transformando figuras contraditórias em modelitos.
Eu achei que não seria necessário repetir as críticas que eu fiz antes, mas estou vendo que é imprescindível fazer uma boa observação teórico-metodológica:
As “raízes ideológicas do Brasil potência” seriam quais?
1) Segundo o JB, seriam apenas uma importação do fascismo europeu e japonês, que nos leva a nos fazermos de coitadinhos. Engraçado, já vi propagandistas racistas fazerem a mesma crítica ao movimento anti-racista: que eles teriam, em relação a etnias oprimidas, a mesma tese de supremacia racial, seria, portanto, um “racismo invertido” que se fundamenta em que os negros, judeus, ciganos, etc. “se fazem de coitadinhos”. Não deixa de ser engraçado que um pregador da “white supremacy” acuse os outros de serem supremacistas. Também é engraçado que alguém que acuse os intelectuais do Terceiro Mundo de “se fazerem de coitadinhos” comece negando a eles qualquer iniciativa intelectual, criatividade teórica ou contato com a realidade histórico-social, reduzindo-os a “importadores de idéias”.
2) Não deixa de ser estranho que um artigo sobre a ideologia do Brasil potência se limite a comentar textos e discursos de autores e políticos romenos, italianos, japoneses, etc., enquanto que os latino-americanos merecem no máximo algumas alusões. Dizer, “ah, eu citeio Mario Pedrosa”, “eu mencionei o CEPAL”, significa nada, quando se dedica 4/5 do texto ao comentário de Manoilescu ou Corradini, sob o pretexto de que “Vargas PARECE QUE LEU o primeiro”. Uma frase não é uma análise de conteúdo. Se o alvo eram as teses “desenvolvimentistas”, deverias começar pela análise dos próprios economistas, sociólogos e políticos desenvolvimentistas. E já existem trabalhos científicos que analisam isso. Sabia que existem livros de história da economia política, da sociologia e do pensamento político brasileiros? E neles o que é exposto não é apenas a relativa originalidade deste pensamento, mas também a sua heterogeneidade. Não adianta ficar reclamando que alguém citou o Marini, sob a acusação de que ele seria “um ou outro teórico marxista da dependência”. Mesmo entre Roberto Simonsen e Celso Furtado, entre este e FHC, entre FHC e Marini e Theotonio dos Santos, existem divergências gritantes, inclusive em relação à ação política. Marini é um intransigente revolucionário, Furtado era um reformista , Simonsen era conservador e defendia o projeto que acabou por ser o vencedor, a “modernização conservadora”.
3) Pelo visto, a interpretação da história do pensamento, que necessita tanto da contextualização quando da análise interna dos textos, é substituída pela ANALOGIA com Corradini ou Manoilescu, de onde se lança a acusação de que os nacionalistas de esquerda seriam apenas…fascistas? Fascistas se fazendo de coitadinhos, incapazes de criar análises e programas sociológico-econômicos originais, reduzidos à importação de idéias! O pior é que quando tenta comentar o texto em si mesmo, o resultado não é melhor, como mostra a confusão entre a super-exploração do trabalho, em Marini, com a mais-valia absoluta. Alguém que lê isso, e que já leu Marini, é tentado a pensar que o comentário é feito de segunda mão, sem a leitura direta do texto.
4) Finalmente, a tese da importação de idéias e as acusações de “coitadismo” e de “fascismo” se complementa com outra, o dedutivismo: toda a ação da esquerda brasileira não passaria de uma aplicação mecânica do “conceito” de “nação proletária”. Os trabalhos de Caio Prado Júnior, Roberto Simonsen, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Paul Singer, Atílio Borón, Raul Pebrish, Léon Pomer, etc. não passariam de fascistas plagiadores que apoiavam políticos fascistas! Sem sequer lê-los, já é possível excecrá-los e decretar a fogueira para as suas obras! COMO A DIEITA BRASILEIRA CONCORDA COM ISSO! Mais um artigo destes, e talvez sejas convidado para escrever para a Veja!
5) O que se perde de vista, em termos práticos, é a conexão entre um anti-imperialismo consequente e um movimento proletário autônomo. Dizer que o anti-imperialismo invariavelmente é fascista, baseado na idéia de “nação proletária” e o escambau, perde de vista: a) a mesma acusação poderia ser feita ao antifascismo, contra o qual alguém de má-fé poderia dizer que é apenas a inversão simétrica do fascismo, e que serve para ocultar a luta e classes, e Bordiga, conhecido “comunista conselhista”, levantou esta tese, antecipando-se a Le Pen ao dizer que o holocausto é apenas um detalhe na história; b) não existe “o anti-imperialismo que é um “nacionalismo ressentido, fascista, se fazendo de coitadinho e importando idéias por ser incapaz de produzi-las por si mesmo”, existem anti-imperialismos, assim como existem divergências profundas entre os teóricos da dependência, que não se resumem a “Marini contra o resto”, e alguns deles podem, sim, ter elementos progressistas, que são óbvios demais em Furtado, ou revolucionários, como se pode ver em Marini, contanto que se dê ao trabalho de lê-lo. O problema é opôr, abstratamente, o anti-imperialismo ao movimento autônomo dos trabalhadores, esquecendo (ao contrário de Rosa Luxemburg, Lênin, Trotsky, Gramsci) que, em sociedade “periféricas”, de “terceiro mundo” ou “dependentes”, a luta do proletariado é imediatamente anti-imperialista. Ou será que a “lei do desenvolvimento desigual e combinado”, cuja influência no Brasil não foi pouca, é a “prova” de que Trotsky também era fascista?
7) Resumindo: o problema do artigo é se resumir a uma falácia da origem (diga-me de onde vens, que te direito o que és), sem provas concludentes, da qual se “deduz” uma acusação, de que nacionalismo=fascismo=anti-imperialismo, coisa sem pé nem cabeça, e que não surpreenderia ler em editoriais da Veja ou nos artigos do Instituto Milenium, mas que é no mínimo uma curiosidade quando encontrado em um texto de quem se diz marxista, mas que esquece com tanta facilidade os princípios fundamentais do método marxista.
Também foi engraçado o comentário sobre Gramsci. Esquecido? Pegue os livros de Eagleton, Jameson, Arrighi, Wallerstein, Burawoy, Losurdo, etc. para ver o quanto “esquecido” ele está. Depois, acusar Gramsci de “semi-fascista” também é engraçado. Já li os artigos dele sobre o fascismo no Ordine Nuovo, não me lembro de ter lido nada disso, mas, para quem acha que onde há as palavras “pátria”, “povo/popular” e “nacional”, é fácil enxergar fascismo até mesmo em Robespierre, Rousseau, Saint-Just, Marx, Engels. John Stuart Mill, filósofo, economista e ADMINISTRADOR COLONIAL britânico, por sua vez, ficaria à salvo de qualquer conexão com o fascismo, afinal, ao invéz de denunciar a exploração do Estado e da burguesia britânicas sobre o povo (ui!) indiano, ele justificava o domínio colonial, argumentando que os povos (ui!) submetidos ao colonialismo eram infantis e bárbaros.
Os leitores têm de um lado estes meus dois artigos. Do outro lado têm os comentários de Matheus, que não só distorcem o que eu escrevi como ainda me atribuem ideias que não tenho nem jamais tive nem se encontram em nenhum livro ou artigo assinado por mim. Com Matheus não vou perder mais tempo. Quanto aos leitores, basta-lhes ler e comparar, se tiverem paciência para isso.
Como assim eu “distorço” o que tu escrevestes? O tema não eram “as raízes ideológicas do Brasil potência”? Então, nada mais óbvio que a objeção de que a pesquisa deveria começar pela análise da história intelectual brasileira, para depois determinar se a origem é exógena ou endógena, e, mesmo se a origem for exógena, estudar como se deu a recepção destas idéias no contexto histórico-geográfico. Até fiz sugestões por onde começar: “Brasil Potência”, “Brasil Grande”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Pesquise a origem destas expressões exatas, e verão que elas nada têm a ver com “nação proletária”, e muito menos com o nacionalismo revolucionário. Sugeri algumas linhas, levantei estas objeções, e a resposta que eu recebi é que na próxima parte teriam respostas. E não tiveram. A segunda parte de “as raízes ideológicas do Brasil potência” insiste no mesmo erro, que se resumem em uma dedução das seguintes hipóteses, todas infundadas:
1) a ideologia do Brasil potência se fundamenta em uma noção de “nação proletária”.
2) a ideologia do Brasil potência foi importada da Europa (de Corradini, Manoilescu e dos fascistas japoneses).
3) a ideologia do Brasil potência foi criada pela centro-esquerda brasileira, em especial o CEPAL.
4) a ideologia do Brasil potência era, teórica e práticamente, um “imperialismo anti-imperialista” (um oxímorom, enfim).
Lendo Oliveira Viana, Joaquim Nabuco, Caio Prado Júnior, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, José Carlos Mariátegui,Florestan Fernandes, Atílio Borón e Darcy Ribeiro, confesso que nunca achei os postulados do que o João Bernardo chama de “tese da nação proletária”: negação da luta de classes no interior das sociedades periféricas da economia-mundo capitalista; redução de todas as contradições sociais ao conflito nacional vs. imperialismo; intervênção baseada em um nacionalismo econômico corporativista e tendendo ao expansionismo, de estilo fascista; e, finalmente, o ponto mais caricaturesco da tese, o “se fazer de coitadinho”. Por outro lado, a verdadeira ideologia do Brasil potência, propagandeada e aplicada pela ditadura civil-militar, também se mantém distante da “tese da nação proletária”, que, pelo meu conhecimento histórico, não era muito importante nem mesmo Europa da qual se originou. A ideologia do Brasil potência propunha uma sociedade brasileira hierarquizada, cristã e capitalista, alinhada aos EUA contra o “perigo vermelho”, embora exercendo uma influência continental decisiva na América do Sul (e, num futuro distante, no mundo). Seu método de ação, aliás, era mais o golpismo e o governo tecnocrático que a mobilização popular dos ditadores fascistas.
Se o alvo seria a política externa do governo Lula, por que recorrer à retórica do “Brasil potência”, da ditadura militar? Muitos supostos exemplos de imperialismo dados aqui são na verdade exemplos de qualquer política externa mínimamente independente. O subimperialismo brasileiro não exclui a dependência econômica ou a articulação com os EUA. Na verdade, NECESSITA do aval estadunidense (e agora chinês e europeu) para exercer uma influência regional que, diga-se passagem, é muito limitada pela Argentina e pela Venezuela. Quando Evo Moralez nacionalizou as empresas brasileiras de petróleo e gás na Bolívia, a reação no Brasil não foi acusar o presidente boliviano de agente de Washingtom: pelo contrário, a acusação foi de “coitadismo”.
O governo Lula realmente possui suas ambições subimperialistas de influência internacional, mas nada próximo de uma nação proletária. A comparação mais acertada (já que o JB parece ter dificuldades em falar de algo sem comparar com a história européia) é o social-imperialismo de Kautsky e Bernstein. Uma espécie de “social-subimperialismo”, que, novamente, sugere antes uma ideologia de reconciliação das classes antagônicas sob uma democracia liberal. Nada de “nação proletária”: o “Brasil potência” pós-ditatorial é um Brasil liberal.
Mas, diante disso, é lícito afirmar que a campanha contra a ALCA foi reacionária? A reivindicação de controle sobre o mercado de capitais e sobre as remessas de lucros das multinacionais, ou pela nacionalização dos recursos naturais e setores estratégicos é apenas pregação de “fascistas terceiro-mundistas”. Deveríamos, portanto, deixar os EUA implantarem a ALCA, e a economia brasileira completamente vulnerável a ataques especulativos, remessas de lucros, destruição e exploração ambiental, e desindustrialização via desnacionalização e privatização da economia? O EZLN, p.ex, seria apenas um movimento fascista terceiro-mundista, por se opôr ao Nafta?
Embora eu tivesse prevenido que não iria perder mais tempo com Matheus, não resisto a observar que no seu nacionalismo aflito e aflitivo ele parece um personagem inventado por mim, para ilustrar o principal eixo de raciocínio destes dois artigos, o da génese e das implicações de um dado tipo de nacionalismo terceiro-mundista. Escreve Matheus no seu último comentário: «Muitos supostos exemplos de imperialismo dados aqui são na verdade exemplos de qualquer política externa mínimamente independente». Pois é. É exactamente isso.
Leio os artigos do João Bernardo e concordo, aprendo muito; agora leio os comentários e algumas das críticas do Matheus e também concordo.
O que será que se passa comigo? Sou um incoerente? Um eclético sem rumo?
Sinceramente, reconheço o perigo de transpor para a nação a luta de classes; mas também vejo que existem nacionalismos e nacionalismos e não vejo automatismos entre nacionalismo e fascismo. Para mim, nem sempre o nacionalismo é acompanhado de perto do fascismo.
Aproveito para divulgar revista e artigo. Ainda não li, mas pode ajudar em nosso debate:
Título do artigo: “Honestamente contraditória: uma visão latino-americana do fascismo” – Fabrizio Rigout.
Endereço:
http://periodicos.incubadora.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/644/712
Carlos Soares,
Tenho escrito e falado muito acerca do fascismo e em lado nenhum pretendi que exista qualquer correspondência automática entre nacionalismo e fascismo. Na minha opinião, o risco do fascismo só começa — e sublinho começa — quando o nacionalismo penetra no movimento operário; ou, simetricamente, quando o movimento operário faz ecoar os seus temas na direita conservadora. É exclusivamente disto que se trata. E é por isso que o nacionalismo é muitíssimo mais perigoso na esquerda do que na direita.
Apenas vou voltando a ler as discussoes suscitadas pelo artigo de abertura desta série. É incrível como se pode aprender num espaco como esse. Carlos Soares, comparto o mesmo drama que voce…estaremos com nossas bússolas desorientadas? Em muitos pontos creio que as observacoes do Matheus e JB se complementam, mas ainda preciso sistematizar as ideias. Sugiro ao coletivo PassaPalavra um texto único que sistematize os debates travados aqui sobre o “Brasil-potencia”. Seria de grande utilidade para esclarecer muitos pontos relacionados ao debate classe x nacao.
Matheus, repito aqui as perguntas que lhe fiz nos comentários a outro artigo:
a) Qual sua posição sobre as afirmações de economistas a respeito do mercado interno brasileiro, que, para eles, teria sido uma, senão a principal, tábua de salvação do país durante a crise de 2008 (que só afetou diretamente o país por três meses)?
b) Qual sua posição a respeito da afirmação da Royal Society, de que o Brasil é “potência emergente” no campo científico, mencionada comentários acima inclusive com endereçamento para o relatório completo?
c) Qual sua posição a respeito do papel do BNDES e dos fundos de pensão (PREVI, PETROS etc.) como motores da economia brasileira — e, portanto, de sua expansão para outros países menos industrializados?
d) Qual sua posição sobre as investidas de transnacionais de origem brasileira sobre economias africanas, onde disputam mercado com empresas chinesas?
e) Na sua opinião, a finada Área de Livre Comércio das Américas era uma imposição dos EUA ou um tratado multilateral de comércio?
f) Na sua opinião, “colonização” e “imperialismo” são termos sinônimos? Do contrário, o que os diferencia?
g) Qual a sua opinião sobre o conceito de socialismo tal como definido no 3º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT)?
h) Qual a sua opinião sobre o tamanho do parque industrial do Brasil comparado com aqueles dos demais países da América do Norte, Central e do Sul?
A estas, adiciono uma nova: você conhece as posições de Marx sobre o livre-câmbio?