Por João Bernardo

Tradução para o FRANCÊS.

Não poderemos entender o mito campestre sem nos apercebermos de que ele vigora num nível estritamente ideológico, servindo de adorno ao crescimento da grande produção fabril. São regimes promotores da industrialização ou até francamente tecnocráticos que propõem a pretensa harmonia rural como padrão de comportamento genérico. Assegurar a ordem e a obediência às hierarquias numa sociedade em mudança contínua, conseguir o milagre de enxertar a estabilidade dos modos de vida e de pensamento sem comprometer a necessária instabilidade da economia e os ritmos acelerados da produção — eis a ambição de quem promove o mito do campesinato e das suas raízes. As maiores companhias transnacionais sustentam hoje organizações não-governamentais destinadas a alertar a opinião pública acerca dos riscos da poluição e a promover outras boas causas, e nada há de contraditório nesta conjugação, já que os mesmos grupos económicos que poluem ou destroem o meio ambiente ganham redobradamente, depois, a vender serviços de limpeza da poluição e a reconstituir o meio ambiente. Exactamente da mesma maneira, em todos os regimes fascistas, sem excepção, existiam duas correntes, uma industrializadora e modernista, fazendo a apologia do mundo urbano e fabril, e a outra tradicionalista e ecológica, glorificando o mundo rústico.

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Um dos estabelecimentos fabris instalados por Ford nas zonas rurais (junto ao rio Raisin, em Dundee, Michigan)

A mitificação da agricultura familiar foi gerada em conjunto com a produção fabril em série. Henry Ford é uma figura que qualquer pessoa associa imediatamente à indústria de massas, mas ele foi também um incansável apologista da sociedade agrária e da agricultura familiar. «Sou um homem do campo», afirmou em 1918, uma das muitas declarações do mesmo estilo que prodigou ao universo. «Quero ver cada acre da superfície terrestre coberto por pequenas quintas, onde habitem pessoas felizes e satisfeitas». Estes devaneios ruralistas não eram politicamente inocentes, porque foram desenvolvidos poucos anos depois em The International Jew (O Judeu Internacional), uma obra que Ford assinou e que tanto contribuiu para divulgar o anti-semitismo, exercendo uma influência directa sobre o racismo alemão e nomeadamente sobre Hitler. Na primeira edição de Mein Kampf Hitler classificou Henry Ford como um «grande homem» e durante vários anos ornamentou com uma fotografia dele a sua mesa de trabalho. Aliás, mais tarde o Terceiro Reich homenagearia Henry Ford com uma condecoração. «A teoria mais desastrosa», escreveu ou mandou escrever o grande industrial, «é a que estabelece um contacto íntimo e uma harmonia entre as ideias modernas e as catástrofes delas resultantes, dizendo que “tudo são sinais de progresso”, porque, se realmente forem, então será de um progresso que conduz ao abismo. Ninguém pode assinalar um progresso efectivo no facto de que, onde os nossos antepassados usavam moinhos de vento ou hidráulicos, nós empreguemos motores eléctricos. Sinal de um verdadeiro progresso seria a resposta a esta pergunta: que influência essas rodas exercem sobre nós? Foi a sociedade da época dos moinhos de vento melhor ou pior do que a actual? Foi mais uniforme nos costumes e na moral? Tinha mais respeito pela lei e formava caracteres mais elevados?».

«O Judeu Internacional» foi originariamente publicado em folhetim no jornal de Ford.
«O Judeu Internacional» foi originariamente publicado em folhetim no jornal de Ford

Estas linhas, assinadas por um dos empresários que mais contribuiu para tornar obsoletos os velhos moinhos e propagar os novos motores, só parecerão extraordinárias se não virmos, na continuação do livro, que Ford pretendia defender o que considerava serem valores autenticamente norte-americanos contra o cosmopolitismo e o desenraizamento atribuídos aos judeus. Não eram os motores das suas fábricas mas os agentes da finança internacional judaica quem poria em causa as harmonias agrárias, e assim o ruralismo de Ford fazia parte do seu anti-semitismo. Ele considerava que os tractores saídos das suas linhas de montagem contribuiriam para revitalizar as famílias rurais, e com o mesmo objectivo defendia a implantação de pequenos pólos industriais disseminados nos campos e movidos pela energia hidráulica. «As fábricas e as quintas deviam ter sido organizadas não como concorrentes mas como colaboradoras», postulou Ford. O certo é que, pondo o dinheiro onde pusera as palavras, mandou construir alguns pequenos estabelecimentos fabris, integrados no complexo de indústria automóvel e cuja mão-de-obra estava dispensada do trabalho industrial nas ocasiões em que precisasse de atender às exigências da agricultura. Aquele fanático da produção fabril de massas nunca perdeu o entusiasmo pelas excursões campestres nem o gosto pelas danças aldeãs, e parecia encontrar na calma dos campos as mesmas lições de humildade, de modéstia e de respeito que o chefe do fascismo português professava.

«A agricultura», disse Salazar em Maio de 1953, «pela sua maior estabilidade, pelo seu enraizamento natural no solo e mais estreita ligação com a produção de alimentos, constitui a garantia por excelência da própria vida, e, devido à formação que imprime nas almas, manancial inesgotável de forças de resistência social». Estas timoratas palavras foram proferidas a propósito do primeiro Plano de Fomento, e como o presidente do Conselho receava que o desenvolvimento económico provocasse o colapso do seu morigerado país, explicou que «aqueles que não se deixam obcecar pela miragem do enriquecimento indefinido, mas aspiram, acima de tudo, a uma vida que embora modesta seja suficiente, sã, presa à terra, não poderiam nunca seguir por caminhos em que a agricultura cedesse à indústria». E avaliando a situação enquanto financeiro e enquanto ideólogo, Salazar concluiu: «Sei que pagamos assim uma taxa de segurança, um preço político e económico, mas sei que a segurança e a modéstia têm também as suas compensações».

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Cartaz da Campanha do Trigo, no fascismo português

É interessante desvendar estas origens históricas da tese da soberania alimentar, sobretudo quando os seus promotores actuais, no MST e nos outros movimentos de luta pela terra, a apresentam como um programa de esquerda ou mesmo anticapitalista. Curiosamente, aquela tese é defendida numa época em que a altíssima produtividade conseguida pelos maiores produtores agro-pecuários e o grande volume de exportações daí resultante asseguram pela primeira vez na história um abastecimento alimentar adequado a todo o mundo. Se um país consumir exclusiva ou preferencialmente os alimentos ali produzidos e se isolar das redes do comércio mundial, a sua situação alimentar torna-se precária porque não consegue resistir às oscilações das colheitas próprias. As fomes catastróficas, que periodicamente são noticiadas pelos jornais e pela televisão e servem às organizações não-governamentais para angariar donativos, ocorrem sistematicamente em países ou regiões que por algum motivo estão isolados das redes mundiais de comércio. Não é a seca mas a incapacidade de se ligar ao mercado que provoca a fome. Porém, o facto de os resultados práticos da tese da soberania alimentar estarem patentes aos olhos de quem quiser ver não perturba os seus apóstolos, tanto mais que o tipo de socialismo que eles defendem se confunde com uma economia de escassez.

O problema é mais grave ainda porque as oscilações das colheitas agrícolas serão tanto maiores quanto menos industrializado for o cultivo e quanto mais difundida for a agro-ecologia. Soberania alimentar e agro-ecologia são elementos de uma mesma nebulosa ideológica. Basta olhar para as primeiras páginas de qualquer atlas histórico, onde está figurada a evolução das curvas demográficas, para se perceber num relance que o modo de produção capitalista permitiu um aumento sem precedentes não só da quantidade da população mas igualmente da esperança média de vida. A fome crónica e as epidemias, dois factores que nos modos de produção pré-capitalistas provocavam a estagnação demográfica, foram em grande medida solucionadas pelo capitalismo, que possui a capacidade técnica para operar uma resolução cabal. Aliás, foi precisamente este o contexto material que suscitou o aparecimento do socialismo moderno. O socialismo nasceu da compreensão de que a produção industrial de massa e a aplicação dos princípios da indústria ao campo proporcionam a satisfação de todas as necessidades materiais e tornam possível o desenvolvimento de uma civilização em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência. É nesta perspectiva e nesta dimensão histórica que devemos entender a importância da agricultura industrializada e a sua consequência em termos de concentração do capital, o agronegócio. Mas não é no plano das realidades que vivem as boas almas ecologistas e, em nome do mito da natureza, preferem condenar a população à escassez e à iminência das catástrofes alimentares.

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Crescimento populacional desde o século XIV até ao século XXI

Se pegarmos numa calculadora e fizermos o exercício de atribuir aos trabalhadores agrícolas dos principais países produtores de alimentos o baixo grau de produtividade que caracteriza os camponeses nos países e regiões onde se pratica a agricultura familiar tradicional, constataremos que se chega a uma redução catastrófica da produção agrícola e pecuária. É certo que a agro-ecologia se identifica com um socialismo da miséria; porém, a queda brutal de produtividade que seria provocada pela generalização desse sistema a todo o mundo já nem a miséria traria, mas o extermínio pela fome.

A experiência histórica dos fascismos, tal como a das empresas de Henry Ford, mostra que, para não ter resultados económicos negativos, a apologia do arcaísmo rural ou ficou reservada ao plano ideológico ou foi compensada por medidas de carácter oposto. Afinal de contas, mesmo quando o mito campestre surtiu efeitos institucionais, estas instituições tiveram a função única de servir de fachada ideológica.

Depois do que Henry Ford disse, escreveu e fez em prol da agricultura familiar, é esclarecedor que os estabelecimentos fabris que implantou em áreas rurais tivessem sido tão pouco numerosos que a sua mão-de-obra proveio de menos de mil famílias, o que mostra que aquelas noções tiveram apenas um valor de exemplo e foram desprovidas de consequências práticas. Mas mesmo enquanto exemplo estavam condenadas a fracassar. Ford defendia que a mecanização das fainas da terra, aumentando os rendimentos das famílias rurais e prolongando-lhes as horas de lazer, promoveria a aquisição de bens consumo e, além disso, permitiria aos agricultores empregar-se suplementarmente nos pequenos estabelecimentos fabris dispersos pela vizinhança, o que lhes melhoraria o nível de vida. Curiosamente para um industrial, ele considerou estas questões na perspectiva do mercado de consumo e não na dos movimentos de mão-de-obra. Na realidade, a crescente mecanização da agricultura, diminuindo o número de pessoas necessárias no campo, provocou uma debandada para as grandes cidades e pôs termo àquela sociedade rural que Henry Ford idealizara.

Mussolini na Batalha do Trigo
Mussolini na Batalha do Trigo

O efeito perverso das utopias ruralizantes verificou-se em todos os outros casos. Apesar de o movimento estético futurista ter marcado o fascismo italiano com uma inconfundível coloração industrial e urbana, Mussolini não tinha ilusões sobre a hostilidade que lhe votava o operariado das cidades. «É necessário dar ao fascismo um carácter predominantemente rural», declarou ele no conselho nacional do seu partido em Agosto de 1924, quando as repercussões do assassinato do socialista Matteotti punham em perigo o regime. Exaltando as pretensas virtudes bucólicas, Mussolini tomou uma série de medidas para reforçar o peso do sector rural na economia e na sociedade. Por um lado, a Batalha do Trigo, proclamada no Verão de 1925, procurou aumentar a produção agrícola. Com o mesmo intuito foi apresentado, em Outubro de 1928, um programa destinado a converter à agricultura vastos solos incultos e, quando conveniente, intensificar os cultivos. Por outro lado, anunciou-se em 1928 e 1929 a Batalha Demográfica, com a dupla finalidade de impedir o abandono dos campos e de colocar obstáculos à emigração para as cidades. Mas os próprios promotores destas medidas confessaram que os seus objectivos eram mais sociais do que económicos e se destinavam a reforçar a base conservadora. No plano económico foram um verdadeiro fracasso, não conseguindo suster a industrialização nem favorecer a ruralização. Foram-no igualmente no plano demográfico, a tal ponto que, para não se reconhecer publicamente a efectiva diminuição da população rural, adulteraram-se os resultados do recenseamento de 1936, classificando como trabalhadoras agrícolas as mulheres do campo que no censo de 1931 tinham sido consideradas donas de casa e aumentando indevidamente os números da população masculina dedicada à agricultura. Afinal, o que parecia ser uma política económica e demográfica resumira-se a uma encenação com intuitos propagandísticos.

Carlos Botelho pintou a visão rural do fascismo português
Carlos Botelho pintou a visão rural do fascismo português

Fazendo-se eco da política agrícola mussoliniana, a Campanha do Trigo lançada em 1929 pelo regime fascista português parece ter evitado a ruína total de boa parte dos pequenos produtores cerealíferos. Apesar disto, quer pelo sistema de preços praticado, quer pela organização do crédito, quer pela orientação dos subsídios, os principais beneficiados foram os grandes lavradores e os latifundiários, e as oportunidades de mercado criadas favoreceram mais ainda os industriais da moagem e dos adubos e os fabricantes de máquinas e utensílios agrícolas. É certo que Salazar procurou manter a pequena propriedade rural. Mas, não lhe sendo dadas condições para prosperar, agravou-se, afinal, a sua dependência relativamente aos grandes lavradores. Os camponeses modestos, que sempre figuraram em lugar de honra nas actividades culturais promovidas pelo Secretariado da Propaganda Nacional e tão frequentemente foram elogiados em termos idílicos nos discursos do presidente do Conselho, tinham um valor apenas ideológico. Uma publicação do Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular, continuador do Secretariado da Propaganda Nacional, proclamou que «o necessário, o verdadeiramente belo seria transformar Portugal rústico numa constante exposição viva de arte popular». Os camponeses eram vistos como peças de museu e deviam ser mantidos como tal. Já num discurso pronunciado em 1935 Salazar apelara a que «respiremos o ar puro e saudável da natureza e das mentalidades dos campos, longe destes sorvedouros de vidas, energias e saúde que são as cidades», e dois anos depois, na abertura da X Conferência da União Internacional contra a Tuberculose, ele admitiu que «a civilização materialista do nosso tempo» fosse responsável pelo recrudescimento daquela doença e enalteceu a «alegria do trabalho», a «modéstia dos desejos e ambições», a «satisfação das pequenas, simples e saudáveis coisas». Mas tudo somado, em 1966, num Portugal arrastado pela industrialização dos demais países, o ditador obsoleto reconheceu que «por mim, e se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria; mas se quereis ser ricos não chegareis lá pela agricultura […] A faina agrícola […] é, acima de tudo, uma vocação de pobreza».

Esta «vocação de pobreza» levou o salazarismo a promover a formação de hortas na periferia de Lisboa e no interior do Porto e das outras maiores cidades. Durante os ócios, que deixavam assim de o ser, os operários eram incentivados a cultivar legumes e criar pequenos animais domésticos, produzindo suplementos alimentares que compensassem os baixos salários. Num círculo vicioso, este trabalho gratuito pressionava as remunerações no sentido da baixa, instaurando uma forma dupla de mais-valia absoluta. Aliás, não só nos fascismos mas em todos os outros regimes capitalistas a agricultura familiar tem servido de fonte de mais-valia absoluta, baseada no facto de o tempo de trabalho não ser contabilizado como custo na economia doméstica. Remeto o leitor para o que escrevi a este respeito num livro de fácil acesso (ver as Referências no final deste artigo). Mas é interessante verificar que aquela modalidade de agricultura familiar estimada pelo salazarismo é tida hoje pela esquerda ecológica como a última novidade, chegando alguns ao ridículo de cultivar hortas nas calçadas, quando ocupam simbolicamente praças por aqui e por acolá.

«A Terra Não Mente». Um camponês cumprimenta o marechal Pétain
«A Terra Não Mente». Um camponês cumprimenta o marechal Pétain

Outro exemplo das contradições implícitas no tema do regresso à natureza e da apologia da agricultura familiar foi fornecido em França pelo regime fascista conservador estabelecido em Vichy sob a égide das autoridades militares do Terceiro Reich, que ocupavam o país. Por um lado, a propaganda oficial e, mais do que tudo, os discursos do velho marechal Pétain invocavam a necessidade de regenerar a França através das virtudes rústicas e exaltavam como modelo o pequeno camponês. Mas, por outro lado, só pouco mais de mil e quinhentas famílias pediram os subsídios previstos na nova legislação e regressaram à actividade rural. E entretanto a reorganização económica do sector agrícola, em vez de obedecer aos interesses dos pequenos camponeses, foi entregue a técnicos estreitamente ligados à grande agricultura capitalista, nomeadamente à Confederação Geral dos Plantadores de Beterraba e à Associação dos Produtores de Trigo, e a intervenção do Estado destinou-se mais a estimular o aumento da produtividade do que a defender a exploração familiar.

Mas é no Terceiro Reich que melhor podemos analisar o mito da natureza e a política de promoção da agricultura familiar.

Referências

A primeira citação de Henry Ford e a terceira encontram-se em Allan Nevins e Frank Ernest Hill, Ford. Expansion and Challenge, 1915-1933, Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1957, págs. 226 e 227. Note-se que na primeira citação traduzi «farmer» por «homem do campo» para evitar as ambiguidades do termo «camponês» aplicado aos Estados Unidos. A segunda citação de Ford foi extraída do seu livro El Judío Internacional. Un Problema del Mundo, Leipzig: Hammer, 1932, pág. 121 (sub. orig.). A opinião de Hitler sobre Henry Ford encontra-se em Mein Kampf, Londres: Pimlico, 1995, pág. 583. A primeira passagem citada do discurso de Salazar em Maio de 1953 encontra-se em Fernando Rosas, Fernando Martins, Luciano do Amaral e Maria Fernanda Rollo, O Estado Novo (1926-1974), em José Mattoso (org.) História de Portugal, vol. VII, [Lisboa]: Estampa, [s. d.], pág. 457. As outras duas passagens encontram-se em Fernando Rosas, «O Salazarismo e o Homem Novo: Ensaio sobre o Estado Novo e a Questão do Totalitarismo», Análise Social, 2001, XXXV, nº 157, pág. 1035. As declarações de Mussolini em Agosto de 1924 vêm citadas em Adrian Lyttelton, La Conquista del Potere. Il Fascismo dal 1919 al 1929, Roma e Bari: Laterza, 1982, pág. 406. A frase empregue numa publicação do Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular encontra-se em Joaquim Pais de Brito, «O Estado Novo e a Aldeia mais Portuguesa de Portugal», em O Fascismo em Portugal. Actas do Colóquio Realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980, Lisboa: A Regra do Jogo, 1982, pág. 530. A citação do discurso de Salazar em 1935 pode ler-se em José Machado Pais, Aida Maria Valadas de Lima, José Ferreira Baptista, Maria Fernanda Marques de Jesus e Maria Margarida Gameiro, «Elementos para a História do Fascismo nos Campos: A “Campanha do Trigo”, 1928-38», Análise Social, 1976-1978, XIV, nº 54, pág. 354. As passagens do discurso de Salazar em 1937 estão em João Ameal (org.) Anais da Revolução Nacional, [s. l.]: Majesta, 1956, vol. IV, pág. 182. O trecho do discurso de Salazar em 1966 encontra-se citado em Fernando Rosas et al., op. cit., pág. 417. O meu livro referido é Economia dos Conflitos Sociais e a passagem mencionada encontra-se nas págs. 105-110 da edição Cortez (São Paulo, 1991) ou nas págs. 144-150 da edição Expressão Popular (São Paulo, 2009).

Esta série reúne os seguintes artigos:
1) a mitificação do camponês
2) a agricultura familiar no fascismo
3) a agricultura familiar no nazismo

25 COMENTÁRIOS

  1. Caro João,
    “Curiosamente, aquela tese é defendida numa época em que a altíssima produtividade conseguida pelos maiores produtores agro-pecuários e o grande volume de exportações daí resultante asseguram pela primeira vez na história um abastecimento alimentar adequado a todo o mundo.”

    E quanto aos impactos ambientais do atual modelo do agronegócio? E quanto aos igualmente importantes impactos do atual modelo de pecuária? Isto não deve ser levado em conta quando se defende a “compreensão de que a produção industrial de massa e a aplicação dos princípios da indústria ao campo proporcionam a satisfação de todas as necessidades materiais e tornam possível o desenvolvimento de uma civilização em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência”? Estes procedimentos também não ameaçam a sobrevivência humana e da natureza como um todo?

    Procurando rapidamente achei estes dois links, por exemplo, com dados em relação ao segundo aspecto:

    http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/efeitos_globais_do_bife_brasileiro_imprimir.html

    http://blogdaamazonia.blog.terra.com.br/2009/12/10/metade-das-emissoes-de-gases-de-efeito-estufa-do-brasil-vem-da-pecuaria/

    Um abraço,
    Júlio

  2. Júlio, ambos os artigos reforçam exatamente um dos argumentos centrais desta série.
    Quanto mais rudimentar for uma técnica, mais poluente será em termos relativos às técnicas mais sofisticadas.
    Tanto na questão do desmatamento, motivada por uma forma de produção extensiva arcaica, como na possibilidade de diminuição na emissão de metano, através de melhoramentos genéticos nos rebanhos.

    Abraço.

  3. O material apresentado é bem interessante. Fico com algumas questões, no entanto:
    1) O texto apresenta a história da idealização rural nos começos do sec XX, ou por grandes capitalistas ou por Estaditas europeus de direita. Antes deste momento, como era articulada a ideologia agrícula? Era algo que também era trabalhado pelos líderes nacionais ou estava relegada ao movimento campesino apenas?
    2) o que me leva ao seguinte questionamento: o texto se pauta quase exclusivamente em apresentar como os lideres fascistas enalteciam o ruralismo familiar e etc. Creio que se faz necessário expor também como o campesinato da mesma época se colocavam em relação à isso. Penso dessa forma para que tenhamos uma noção minimamente autonoma do que pensavam os trabalhadores do campo com relação ao que os líderes autoritários de sua época falavam.
    Como anarquista não posso achar que a discussão deve se limitar à forma de propaganda ou aos modelos autoritários de produção.

  4. Caro João Bernardo,

    Creio que os regimes autoritários se serviram da mitificação dos camponeses tanto quanto da mitificação dos operários para estabelecerem uma ideologia da obediência e da estabilidade sob força sugestiva e atraente da imagem de uma identidade nacional, isto é, de uma encarnação da tradição. Quanto a isso, parece-me secundária discussão acerca de qual categoria ou grupo social se fez mais útil a esses propósitos autoritários, embora me arrisque a supor que, nos países periféricos do capitalismo, nos quais a ideologia autoritária justificava-se sob o signo da “modernização” coube antes ao operário que ao camponês atender a esse desígnio; não por outra, os levantes revolucionários que se verificaram nesses países nasceram quase sempre no seio das classes camponesas, não porque estas estivessem arraigadas aos seus modos de vida tradicionais, mas porque tal modernização, que compreendia o processo acelerado de industrialização e urbanização, custava-lhes a terra e punha em risco a sua sobrevivência. Esse processo ainda está em curso e segue promovendo os mesmos efeitos – expropriações, proletarização precária, instabilidade dos ganhos para subsistência etc.
    Talvez valha a pena precisar a diferença entre segurança e soberania alimentar. A primeira é bem descrita no texto, envolve a garantia de abastecimento alimentar pela via das trocas comerciais entre países, com a eventual substituição da produção pela importação, desde que, é claro, o país que precisa buscar fora os alimentos de sua população tenha capacidade econômica para importar. A soberania alimentar diz respeito à autonomia do país sobre os meios de alimentação de sua população, não exclui decerto a importação, mas enfatiza a produção interna como sua principal estratégia. Não é preciso assinalar que a soberania alimentar depende da soberania territorial, e que com a aquisição de terras por estrangeiros, por multinacionais estrangeiras que produzem commodities de exportação, as populações ficam expostas ao risco alimentar por oscilações dos preços agrícolas no mercado internacional tanto quanto por ameaças climáticas, que, a despeito de toda a tecnologia, não deixam de existir. Em favor disso, pode-se citar que, segundo a FAO, havia em 2010 1,02 bilhão de pessoas passando fome, contingente superior ao registrado em 1995, 825 milhões; nesse período, não faltaram aprimoramentos técnicos, surgiu a novidade dos transgênicos e a indústria de agrotóxicos alargou seus mercados.
    Este é outro relevante para a questão da segurança alimentar: a qualidade dos alimentos. As pesquisas sobre os danos causados por agrotóxicos à saúde de trabalhadores e consumidores têm começado a ganhar destaque: evidências como a presença de agrotóxico em leite materno, proporção de casos de câncer entre trabalhadores rurais e danos à água causados por pulverização aérea de veneno, apesar de sistematicamente abafadas pela ação das indústrias de insumo agrícola junto a governos, vêm tendo crescente divulgação. A agroecologia se apresenta neste debate não como um regresso ao idílio terrenal, mas como uma técnica alternativa, intensiva em conhecimento, generalizável e produtiva desde que se democratize o acesso à terra. Quanto à questão da produtividade, ficou provado, ao menos no Brasil, com a divulgação do ultimo Censo Agropecuário, que a produtividade da agricultura familiar por hectare é superior à do agronegócio, e que ela, a despeito de deter apenas 1/4 das terras agrícolas do país, responde por 70% da produção de alimentos. Não se trata de uma economia da escassez (isto é, da concentração), mas de uma economia do excedente.
    Peço-lhe licença para propor uma última indagação. Se a concentração dos meios e das técnicas de produção no meio rural, operada no modo capitalista, “resolveu” o problema do abastecimento alimentar, por que não podemos enaltecer benefícios semelhantes criados pelo capital em todos os demais setores da produção social? É apenas no meio rural que ele exerceu essa virtude benfazeja e criou alhures suas mazelas? Quero com isso significar que este argumento da produtividade pode ser universalizado em favor do sistema capitalista, se empregado unilateralmente. A produção concentrada gera uma desigualdade de acesso aos seus produtos em qualquer setor, e no agrícola não sucede diferentemente; nele talvez se manifeste com mais força a fato de que o acesso de uma família ao produto social seja medido pelo seu acesso aos meios de produção. Grato pelo espaço, um abraço, Alexandre

  5. Caro Alexandre,
    1) A mitificação do camponês destina-se a fornecer ao capitalismo uma âncora de estabilidade, o que não sucede com qualquer mitificação do operário, que tem outros fins.
    2) A soberania consiste no exercício do poder de Estado, e o Estado exerce o seu poder formal tanto sobre as propriedades privadas detidas por cidadãos do país como sobre as detidas por estrangeiros, quer estas digam respeito à indústria, aos serviços ou à agricultura. Como já escrevi várias vezes neste site acerca do que julgo serem as transformações económicas e geopolíticas operadas pelas companhias transnacionais, escuso agora de me repetir.
    3) Uma coisa é a produção de alimentos, outra coisa é o acesso aos alimentos produzidos, e é necessário distinguir se a fome ocorre devido ao primeiro factor ou devido ao segundo. O primeiro diz respeito principalmente às técnicas de produção; o segundo, ao grau de desigualdade na distribuição dos rendimentos.
    4) Quando se comparam produtividades agrícolas é necessário,
    a) no caso de se avaliar a produtividade por hectare, não confundir as produções da cultura extensiva, que diz respeito a um único género em vastas áreas, com as da cultura intensiva, que diz respeito a géneros variados em pequenas áreas;
    b) no caso de se avaliar a produtividade do trabalho, ter em conta se o amanho da terra está a cargo de assalariados, com uma jornada de trabalho fixa, ou de famílias proprietárias ou arrendatárias, que não contabilizam o seu próprio esforço como um custo e podem por isso proceder a jornadas enormes.
    5) Eu escrevi neste artigo que «o socialismo nasceu da compreensão de que a produção industrial de massa e a aplicação dos princípios da indústria ao campo proporcionam a satisfação de todas as necessidades materiais e tornam possível o desenvolvimento de uma civilização em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência». A abundância permitida tecnicamente pelo capitalismo verifica-se em todos os sectores económicos, não só na agro-pecuária mas também na indústria e nos serviços. Mas, como sempre na economia, é necessário distinguir valores absolutos e valores relativos. O crescimento do consumo absoluto (junto com a melhoria médica e sanitária) permitiu o enorme crescimento populacional, mas a concentração do capital pressiona ao aumento da desigualdade, que é uma noção relativa. Ora, a definição estatística de pobreza diz respeito aos valores relativos. Isto significa que o consumo, que se mede em termos absolutos, pode aumentar e ao mesmo tempo a pobreza, que se mede em termos relativos, pode aumentar também.
    Cordialmente,
    João Bernardo

  6. Caro João,

    aqui queria deixar-te uma pergunta indirecta a este teu texto e que se prende com o facto de apesar de a cultura camponesa se ter efectivado maioritariamente no âmbito da mistificação da propriedade familiar e de ter considerado as relações de produção em que se inseria como “naturais” (como tu tens apresentado nestes textos) gostava de te perguntar como foi então possível aos movimentos camponeses se terem revoltado em alguns contextos políticos como no México, na Rússia, em Espanha, na China, Cuba, etc. Ou seja, como foi possível então ao campesinato ter participado em determinados processos revolucionários (independentemente dos posteriores resultados dos mesmos) onde parece ter questionado (pelo menos em momentos), pela sua prática, essa mundivisão naturalizante? Admito estar enganado até porque não é uma área que me possa aventurar mto a discorrer, mas esta foi uma interrogação que me surgiu ao ler estes teus dois textos.

    Abraço

  7. Valente de Aguiar,
    Eu trato nesta série de artigos não do campesinato mas da mitificação do camponês. Por vezes os camponeses reais têm correspondido a esse mito ou têm-se esforçado por lhe corresponder. Noutras ocasiões têm rompido com esse mito, e são os casos que indicas, além de outros. Na minha opinião foram não só lutas camponesas mas também lutas contra a mitificação do campesinato.
    As grandes lutas históricas do campesinato não se fizeram em nome de valores arcaicos, pré-capitalistas, nem para sustentar esses valores. Mas ainda aqui há ciladas. Com o multiculturalismo hoje dominante nas universidades e no jornalismo (infelizmente a academia desceu ao nível do jornalismo) pretende-se apresentar as lutas camponesas como se fossem, todas elas, lutas pela preservação das sociedades arcaicas, ou seja, em linguagem franca, pela preservação dos temas das teses. Outro dia uma aluna de doutoramento, cujo objecto de estudo é um dado quilombo, confidenciava-me, muito chorosa, que só os velhos mantêm o dialecto e as tradições mas que os novos se querem inserir no mercado de trabalho e abandonaram a língua e os costumes dos anciãos. E eu pensei que, se ela não fizer o doutoramento depressa, as cobaias morrem.

  8. Caro João Bernado,

    Acredito que em certa medida há uma generalização sua acerca do pensamento, ideias e praticas sobre campesinato e sua capacidade de resistência politica. No texto fica claro a aproximação que você faz, historicamente, das ideias fascistas do campesinato (que muito tem haver com a mitificação e naturalização do folclore) com às atuais reivindicações da agricultura familiar (que nunca foi programática para o MST) e da reforma agrária.
    Mas me parece que apesar de alta carga literária histórica, falta dados de pesquisas recentes acerca da produtividade no campo e qual esta é mais eficiente. E de como a produção em larga escala é danosa em si mesma, pela sua característica monocultura.
    Veja, diferentemente da Europa o Brasil tem um mundo rural, com cidades rurais, dependentes da economia capitalista camponesa. Bem além de se configurar como uma politica publica de redução da miséria, de forma clara, ela também tem a capacidade de empoderamento. Cabe ai a militância, a organização politica deste camponês.
    O campesinato ele é sem duvida pela própria natureza de suas relações no capitalismo, conservador, ainda guarda resquícios de uma estrutura pré capitalista. Mas eu não consigo enxergar que todas as noções acerca da luta campesina e da agricultura familiar são meras reproduções disso. A utilização do discurso mítico, o qual você quis fazer próximo ao dos militantes da agricultura familiar e da Reforma agraria, são como disse discursos… como os do Banco Mundial de empoderamento de comunidades. Muitas vezes se aproximando de falas e ideias marxistas clássicas, como a de participação e ação social. Ou seja é necessário não apenas ressaltar o discurso mas de onde este é proferido e sua intenção.
    Desculpe se as ideias parecem um tanto desconexas, mas um comentário e longe de um argumentação mais elaborada.
    Espero o próximo texto

  9. Penso que o interesse de Ford pela ideal vida campestre se deve antes à questão prática de que um refúgio bucólico era possível à nova cidade americana apenas com a invenção que sua empresa massificou.

    Da sonhada Broadacre City de Wright aos subúrbios tão característicos do modo de vida dos EUA –a possibilitar, “enraizar” e tornar compulsório o automóvel na cultura, com todas as suas consequências decorrentes no mundo inteiro, hoje de conhecimento geral— a vontade de ter o campo ou seu simulacro num cotidiano urbano era evidente.

    Seria interessante, inclusive, saber se o autor dirige e é favorável ao automóvel (não pelos inerentes malefícios que acarreta ao meio ambiente, mas aos também inerentes, cotidianos, “naturalizados” malefícios sociais que trás a dependência ao transporte individual motorizado).

    Essa questão é importantíssima e está completamente atrelada ao “mito da natureza”. Para tanto, basta ver a maior parte da publicidade automobilística e também a necessidade (hoje real) dos camponeses aos veículos motorizados, desmistificados ou não.

    Bem haja.

  10. O comentário de Rodrigo recordou-me algo que eu deveria ter incluído no primeiro artigo desta série. Na história da pintura ocidental, só com o desenvolvimento dos centros urbanos é que a paisagem se desprendeu do fundo dos quadros e se tornou um objecto pictórico próprio. Na sequência deste processo, algumas das grandes remodelações estéticas do primeiro modernismo — embora não todas — tiveram como objecto formal o campo, que muitas vezes era só os arredores de Paris. A paisagem é o campo para os habitantes da cidade. Depois, com o futurismo e o dadaísmo, e mais cabalmente com a lição dada pelos artistas norte-americanos a partir da década de 1950 (Rauschenberg, pop art, minimalismo, etc.), a paisagem rural desapareceu enquanto evocação mítica e a arte passou a assumir plenamente o mundo em que vivemos, urbano e industrial. A mitificação estética do campo recomeçou a partir da década de 1980, e convém saber que pós-modernismo foi um termo surgido na arte, para designar um novo tipo de arquitectura que se pretendia ecológica. De então em diante, uma vertente muito considerável do conceptualismo é ecológica e ruralizante, e nada me dá mais vontade de rir do que ver essas instalações, não no campo, mas expostas nas galerias e museus das grandes cidades. Ressurgiu a paisagem. E embora seja agora uma paisagem de novo tipo, ela continua a ser o campo para os habitantes da cidade.

  11. Fiquei muito interessado em ler o livro Le Projet Culturel de Vichy: Folklore et Révolution Nationale, 1940-1944, de Christian Faure.

    Alguém tem alguma alternativa a pagar 31 libras esterlinas por um exemplar usado na Amazon?

    Grato (e desculpem pelo não-comentário)

  12. ”Não é a seca mas a incapacidade de se ligar ao mercado que provoca a fome. Porém, o facto de os resultados práticos da tese da soberania alimentar estarem patentes aos olhos de quem quiser ver não perturba os seus apóstolos, tanto mais que o tipo de socialismo que eles defendem se confunde com uma economia de escassez.”

    Não sei se entendi… significa então que a esquerda, ou qualquer um, deve tratar a fome como um problema facilmente resolvido pelo livre comércio e pela economia de mercado?
    Se há meios de produção para satisfação das necessidades alimentares de todos… me parece que nesse ponto fica uma resolução liberal, onde bastaria então um ”correto” ou ”oportuno” posicionamento no mercado internacional.

    Essa passagem me é bem engraçada

    ”O socialismo nasceu da compreensão de que a produção industrial de massa e a aplicação dos princípios da indústria ao campo proporcionam a satisfação de todas as necessidades materiais e tornam possível o desenvolvimento de uma civilização em que ficará ultrapassada a luta pela sobrevivência. É nesta perspectiva e nesta dimensão histórica que devemos entender a importância da agricultura industrializada e a sua consequência em termos de concentração do capital, o agronegócio. Mas não é no plano das realidades que vivem as boas almas ecologistas e, em nome do mito da natureza, preferem condenar a população à escassez e à iminência das catástrofes alimentares.”
    Visto que a verdade contida nela é muito forte mas, ao mesmo tempo, vejo essas mesmas afirmações nas bocas de reacionários. Acho que pontos onde o marxistas e estes outros podem convergir ainda que se preserve o oposto nos objetivos me incomoda, na real.

    Aliás, não só nos fascismos mas em todos os outros regimes capitalistas a agricultura familiar tem servido de fonte de mais-valia absoluta, baseada no facto de o tempo de trabalho não ser contabilizado como custo na economia doméstica.
    Próprio Marx não contabiliza o trabalho doméstico no Capital apesar de ser relativo à reprodução e manutenção da força de trabalho se não me engano

    Mas é interessante verificar que aquela modalidade de agricultura familiar estimada pelo salazarismo é tida hoje pela esquerda ecológica como a última novidade, chegando alguns ao ridículo de cultivar hortas nas calçadas, quando ocupam simbolicamente praças por aqui e por acolá.
    hahahaha
    Quanto a isso, se não me engano, o próprio Papa publicou encíclica tratando da questão do ”cuidado com a casa”, sendo esta o planeta, e tem defesas às iniciativas ”micro” como essas. Mais um exemplo das proporções do ecologismo, pelo visto

    Enfim, quando ao que falei sobre o acesso via mercado internacional, e às outras coisas, fica nebuloso pra mim em que ponto estamos servindo de defensores do capitalismo e seus modos, ou de certa forma ocultando os problemas inerentes ao sistema… se assumirmos, por exemplo, que há capacidade produtiva e basta um ”alinhamento” com o mercado internacional na questão da fome, por que a mesma lógica não se aplica a quaisquer outros problemas..? Não sei se me faço claro e não sei se me confundo..

  13. Caro Gabriel,

    Quando se analisam as grandes fomes atribuídas às secas verifica-se que elas se restringem geralmente a uma só região de um país, sem que as colheitas nas outras regiões tivessem sofrido. Claro que, desde que existisse poder de compra, se houvesse livre comércio das regiões com abundância para as regiões com deficiência a mortandade não ocorreria, mas a questão consiste em saber por que não houve. Por que motivo, por exemplo, as elites do país preferiram esbanjar subsídios, ajuda económica e lucros das exportações em despesas de luxo e em contas bancárias na Suíça e nos paraísos fiscais, em vez de os aplicarem na promoção das camadas sociais mais pobres e na construção de infra-estruturas de transporte. Ora, esta questão tem sido muito mais analisada por economistas e sociólogos geralmente conotados com o capitalismo do que por pessoas consideradas de esquerda. Como escrevi noutro lugar ( https://passapalavra.info/2014/05/93828/ ): No dia em que surja um movimento negro que critique a formação de elites negras e as relações de desigualdade e exploração entre negros com a mesma veemência com que critica o racismo antinegro, então esse movimento passará a fazer parte constitutiva do processo geral de renovação da classe trabalhadora.

    Isto leva-me a uma questão que você já evocou noutros comentários, a de que eu afirmaria coisas que andam também na boca da direita. Mas sucede que quando analiso um assunto não me preocupo absolutamente nada com a cor política atribuída aos autores que consulto. Preocupo-me com os dados concretos, com os factos, com os números nas estatísticas e acolho de bom grado todos os raciocínios que me ajudem a interpretar esses dados concretos e me abram novas perspectivas, me estimulem a imaginação. É assim que deve proceder um cientista. Se eu não o fizesse, estaria a papaguear lugares-comuns, e não vale a pena escrever para repetir o que já está escrito.

    Ou, formulado ainda mais sinteticamente, a esquerda aprenderá muito quando deixar de se olhar ao espelho.

  14. João meu bom

    Sem dúvida alguma a esquerda tem que parar de se olhar no espelho. Inclusive acredito que em outros comentários entre nós falamos sobre como uma leitura ”limitada” ou ”religiosa” de Marx pode prejudicar a análise factual das coisas como são hoje.
    Quando me refiro à semelhança com a direita, tentando aqui me explicar um pouco melhor, seria, talvez, no sentido das estratégias discursivas. Quero dizer que fico me estranha um pouco essas aproximações justamente por que esse tipo de discurso pode levar ao enaltecimento do sistema capitalista, sua legitimação e não sua crítica; apesar de entender perfeitamente a sua colocação (e concordar, pois é um fato).
    É óbvio que com poder de compra e uma logística bem desenvolvida, como você bem disse, não haveria fome por conta da seca. O capitalismo desenvolvido é melhor que o capitalismo mal desenvolvido, inclusive para a classe trabalhadora, como você já bem disse aqui no site. Mas isso, talvez, coloque em cheque o papel que a crítica capitalista deve assumir hoje. Estamos aqui criticando esse modo de produção que se renova e leva cada vez mais ”progresso” a (algumas) pessoas… nossa crítica então é pela inclusão dos que estejam fora do capitalismo desenvolvido e seus progressos?
    Sem dúvida, como você fala, a análise do porquê não ocorre essa condição é o importante. E nesse ponto me parece importante a análise marxista, mas me parece que há uma certa convergência a, no âmbito prático, apenas apoiarmos o desenvolvimento mais ”igualitário” do capitalismo. Quando Bjor Lomborg diz, numa entrevista, que deveríamos usar o enorme montante de dinheiro dos acordos ambientais para fazer os subdesenvolvidos mais ricos, estamos falando de um tipo de desenvolvimentismo e talvez seja isso o que nos resta no curto prazo.

    Ao mesmo tempo, se o movimento negro conseguir, para a população negra, através das reivindicações e legislações, melhorar as condições de vida dessa população(que é parte da população trabalhadora), não é isso ótimo? Embora não englobe a estrutura própria do capital mas, até então, o que o faz? Como sabemos as próprias pressões sociais levaram o capitalismo a se desenvolver mais e elevar as condições gerais de vida da população (ainda que não inteira, claro).
    Nesse sentido me pergunto a que serve a crítica ao movimento negro que apóia (ou não critica) a exploração do negro pelo negro, a não ser fazer claras suas contradições? Se for esta a razão, acredito que seja válida nesse sentido. Fora dele, se os movimentos identitários conquistam ou atuam no sentido de ganhos salariais, maior capacitação, etc; no que diferem de qualquer outro movimento, mesmo operário?

  15. Caro Gabriel,

    Note que eu referi o Lomborg a propósito do livro The Skeptical Environmentalist e não de declarações em algumas entrevistas. É a análise crítica do movimento ecológico feita por alguém que ocupou uma posição relevante num dos mais importantes movimentos ecológicos que me interessa destacar.

    Quanto ao mais, se um movimento identitário se limitasse a conseguir uma melhoria dos salários e das condições de trabalho para uma certa identidade, ou presumida identidade, em nada se distinguiria de qualquer sindicato ou de qualquer luta específica a um sector profissional. É o que sucedia com as antigas formas de feminismo, quando as mulheres lutavam por salários, condições de trabalho e perspectivas de promoção iguais às dos homens. O mesmo se podia dizer de algumas grandes lutas encabeçadas por movimentos negros. Porém, o que diferencia o identitarismo é: 1) a afirmação de que uma dada característica constitui por si mesma uma identidade; 2) a reivindicação de um exclusivismo, tanto de espaços como de expressão ideológica, para essa presumida identidade; 3) a projecção dessa presumida identidade numa inversão de hierarquias, almejando uma renovação das elites. Ora, com um racismo de sinal contrário e com um sexismo de sinal contrário não avançamos nem um milímetro. Assim, enquanto as simples reivindicações salariais — por região, por empresa, por categoria profissional — confundem sexos e cores de pele e geram a consciência de uma condição comum de classe trabalhadora, os identitarismos erguem um obstáculo a essa consciência comum e reforçam os ressentimentos particularistas, porque vincam e perpetuam presumidos caracteres específicos em vez de os diluírem, e porque viram uns caracteres contra outros.

  16. João

    Os pontos que você sintetizou aqui me parecem fornecerem combustível às distorções que aponta e mesmo reafirmação das diferenças. Entendo que não podemos negar as opressões sofridas, mas a superação disso, se tratada dessa forma, fica realmente complicado criar um senso de coletivo. Penso que lutar por ”igualdade” talvez seja considerado vago ou amplo demais para aplicação de políticas que afetem a vida prática, e por isso, também, os movimentos acabam se convertendo em lutas por espaços exclusivos..
    A coisa toda da ecologia, que ressurge em muito assumindo o espaço vago do ”socialismo”, se articula com os movimentos identitários, distantes dos movimentos antigos (como você citou no caso do feminismo), para ocultar as questões próprias de classe, mas no caso da ecologia, você traça sua linha desde a origem nos teóricos fascistas de forma bastante clara; e quanto a esses identitarismos? Se não na exata origem, há pontos de inflexão que levaram ao fim de qualquer proposta próxima dos primeiros movimentos feministas e negros?

  17. Caro Gabriel,
    Não sei responder à sua pergunta, porque estudei somente os identitarismos já constituídos e só nesta fase os comparei com a tradição ideológica da extrema-direita e com o fascismo, especialmente na área germânica. Quanto ao movimento negro, num comentário ao artigo Cortem as Cabeças!, há pouco publicado no Passa Palavra, creio que Letícia Leal acertou no alvo ao escrever: «parece que todas as linhas que caminham para uma definição pura e exata do que é negro possuem uma linha similar ao eugenismo» ( http://passapalavra.info/2018/12/124143/ ). Quanto ao feminismo moderno, abordei muito resumidamente a questão no último capítulo do meu livro Labirintos do Fascismo ( https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1361/mode/2up ), mas fi-lo mais extensamente no artigo Considerações Inoportunas e Politicamente Incorretas Acerca de uma Questão dos Nossos Dias, publicado na revista Novos Rumos, vol. 21, nº 45, 2006 ( http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/2122/1750 ). Como hipótese de trabalho, talvez se possa começar por constatar que o novo tipo de feminismo, hierarquizador e excludente, surgiu depois de estar já muito avançado o processo de promoção das mulheres, desencadeado pelo tipo anterior de feminismo, igualitário e incluente. Estas que se autopromovem agora como corajosas guerreiras coroam-se em grande medida com os louros de um combate que foi conduzido por outras, com outros princípios e outros objectivos.

    Caro Ulisses,
    Muito obrigado pela Longa Vida, mas em vez de «rides again» talvez seja mais exacto dizer «is travelling by coach», porque se trata de uma antologia de velhos textos meus, originariamente publicados entre 1975 e 1986.

  18. No novo governo neofascista italiano, o ministério da agricultura foi renomeado para ministério da soberania alimentar

  19. Caro João Bernardo,

    Para mim, é um deleite ler seus textos (ainda que sejam mais antigos e que eu tenha minhas discordâncias). Alguns pontos me trouxeram o desejo de agregar novos pontos de vista, provavelmente porque lhe escrevo em 2023 e a partir de um território tropical, onde estão pipocando estudos a respeito das produções agroecológicas e da questão agrária como um todo, a despeito dos desejos dos grandes proprietários. Comentários feitos antes do meu já trouxeram alguns desses pontos.

    Um dos que gostaria de trazer é que sinto uma fragilidade na noção de agroecologia exposta, como necessariamente avessa à modernização tecnológica, e como algo que caminhe sempre junto à agricultura familiar, mas, para além disso, me incomoda a noção da soberania alimentar como excludente de importações e exportações.

    Na questão da agroecologia, arrisco dizer que o MST é o único produtor agroecológico do Brasil (há outros, muito pequenos e pulverizados, e apenas as cooperativas do MST têm representação no mercado que mereça a menção). Entretanto, 70% da dieta do brasileiro consiste em produtos da agricultura familiar (que não é agroecológica) (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Essa agricultura familiar, que supre 70% da demanda, ocupa somente 18% da terra agricultável. Não seria absurdo crer que uma reforma agrária bastante modesta já poderia garantir o sustento da população brasileira como um todo, usando apenas 25 ou 30% da terra agricultável – restando, ainda, todo o restante do país voltado para a exportação. Assumir, porém, que essa exportação precisa ser no formato latifúndio + monocultura de cereais, o plano imperialista desenhado para esta terra, é colocar a terra agricultável brasileira a serviço da alimentação de porcos chineses e europeus, pois o latifúndio ocupa as posições de poder na política brasileira desde o Império, e cria incentivos para políticas de exportação baseadas em exportações de baixa complexidade que lhes rendam mais lucros, enquanto corta incentivos para outros tipos de produção. É isso que a falta de soberania tem nos oferecido, uma vez que uma produção voltada à dieta humana custa mais caro e torna a vida do produtor uma triste caminhada pela miséria. Achei peculiar ver como os governos fascistas defendiam a soberania alimentar, mas o meu sentimento é de que esse incentivo vem de noções e interesses diferentes, até porque o fascismo não costuma negligenciar o interesse do capital, e falar em soberania alimentar sem falar em abolição da grande propriedade rural é um equívoco, pelos pontos já explicados.
    Uma profunda reforma agrária, que exportasse excedentes, mas pudesse realmente garantir a prioridade dos interesses da população na produção, é uma proposta muito mais interessante, mas demanda o fim do domínio do latifúndio na política. Mas, não falei ainda da agroecologia.

    Eu percebo que a agroecologia é, de fato, muito permeada pelo mito do bom-selvagem no Brasil, muito porque os estudos etnográficos atribuem à ação milenar de diversos povos indígenas a resiliência da floresta amazônica (isso são estudos publicados muito após a publicação do seu texto, é bom pontuar). Entretanto, nas necessidades materiais atuais, os habitantes do sul global são expostos a muito maior quantidade de componentes tóxicos, e uma enorme perda de biodiversidade valiosa que vem culminando em uma perda de uma floresta que garante as temperaturas e precipitações necessárias para a sobrevida humana em todo o continente americano, além das sementes patenteadas representarem uma rebuscada forma de aquisição de terras pelo capital agroindustrial e a agricultura patronal. Acredito ser o momento de buscarmos solucionar esse novo problema: a solução não sendo uma “volta às origens” arcaica e idealizada, mas maior profundidade nas investigações científicas sobre formas de produzir sem a dependência dessas específicas tecnologias danosas à saúde do trabalhador e que abrem portas para maior acumulação (ressalto que a agroecologia não se opõe ao uso de maquinário e, inclusive, esse é um crescente ramo de desenvolvimento no Brasil para sistemas agroflorestais).
    Outro ponto é que a relação entre desenvolvimento tecnológico e menor destruição ecológica não é sempre verdadeira e, na verdade, é bastante questionável. É algo que varia entre indústrias, atividades, demandas, e territórios. Quando analisamos certas indústrias utilizando a metodologia MusiaSEM, vemos, na verdade, o contrário em muitas situações, como a pesca, ou técnicas agrícolas aplicadas em diferentes biomas. Alerto apenas para que tenhamos cuidado ao partir dessa premissa.

    Deixo algumas indicações de livros interessantes: -A dialética da Agroecologia, de Luiz Carlos Pinheiro Machado (ex-diretor da Embrapa, propõe um modelo agroecológico de produção em larga escala que inclui uma eficiente pecuária)
    -Agrofloresta, ecologia e sociedade (gratuito para download)

    Agradeço pelos textos. É difícil encontrar bons materiais sobre ecofascismo na nossa língua. Um abraço!

  20. Essa afirmação de que a agricultura familiar produz 70% dos alimentos foi amplamente divulgada e é falsa, foi feita distorcendo dados e forçando interpretações do Canso Agropecuário de 2006. Mesmo antes do Censo Agropecuário posterior, de 2017 (disponível aqui: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3096/agro_2017_resultados_definitivos.pdf), houve um importante artigo explicando a questão: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/1386/1376.

    Um dado interessante do último senso, mas que os defensores da agroecologia ignoram, diz respeito ao uso dos endemoniados agrotóxicos: o percentual de uso é muito maior nas pequenas propriedades e a consultoria técnica é muito menor.

    Em 2017, do total de estabelecimentos que declaram utilizar agrotóxicos, 80% tinham menos de 5 hectares de lavouras.

    Do total de estabelecimentos com menos de 1 hectare e que usam agrotóxicos, apenas 12% receberam orientação técnica.
    Do total de estabelecimentos com menos de 2 hectares e que usam agrotóxicos, apenas 18% receberam orientação técnica.
    Do total de estabelecimentos com mais de 50 hectares e que usam agrotóxicos, apenas 80% receberam orientação técnica.
    Do total de estabelecimentos com mais de 100 hectares e que usam agrotóxicos, apenas 83% receberam orientação técnica.
    Do total de estabelecimentos com mais de 200 hectares e que usam agrotóxicos, apenas 85% receberam orientação técnica.
    Do total de estabelecimentos com mais de 500 hectares e que usam agrotóxicos, apenas 91% receberam orientação técnica.

  21. Cara Isabel,

    Muito obrigado pelo seu comentário. Não posso agora senão esboçar uma breve resposta, seguindo a ordem em que as suas questões foram colocadas. Talvez não chegue a ser uma resposta, mas pistas para prosseguir o raciocínio.

    Antes de mais, eu não duvido do êxito económico do MST. Aliás, o Passa Palavra deixou-o bem documentado no artigo MST S.A. O MST seguiu o mesmo caminho que os sindicatos percorreram em todo o mundo, tornando-se empresas capitalistas.

    Espero ter mostrado no meu ensaio MST e agroecologia: uma mutação decisiva como o MST, que inicialmente procurara transformar os assentamentos em cooperativas de produção que aplicassem a agro-indústria, foi levado pela modificação dos sistemas de crédito decidida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso a definir uma nova política, promovendo a agricultura familiar e adoptando a agro-ecologia. Foi essa a mutação decisiva.

    Quanto ao mito dos famigerados 70%, remeto para o meu longo ensaio Contra a ecologia, onde, na quarta parte, A agroecologia e a mais-valia absoluta, escrevi o seguinte:
    «[…] um dos argumentos invocados pelos defensores brasileiros da agroecologia é o de que as explorações familiares, ocupando apenas 24,3% da área dedicada à agricultura e à pecuária, produziam a maior parte dos alimentos consumidos no país. É comum a afirmação de que a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos, e o secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário tomou-a como sua em Julho de 2011. No entanto, o que Caio Galvão de França et al. escreveram numa obra editada por aquele Ministério [Caio Galvão de França, Mauro Eduardo Del Grossi e Vicente P. M. de Azevedo Marques, O Censo Agropecuário 2006 e a Agricultura Familiar no Brasil, Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009] é que “cerca de 70% a 75% da produção agropecuária do país destinou-se ao mercado doméstico”, o que é muito diferente, e estes autores acrescentam, sem especificar a percentagem, que “a agricultura familiar é responsável por garantir boa parte da segurança alimentar do país, como importante fornecedora de alimentos para o mercado interno”».

    Naquele mesmo texto forneço dados abundantes que mostram, por um lado, a escassa produtividade da agro-ecologia e, por outro lado, as condições de mais-valia absoluta que sempre acompanham as explorações de carácter familiar.

    A certo passo do seu comentário você escreveu que «o fascismo não costuma negligenciar o interesse do capital, e falar em soberania alimentar sem falar em abolição da grande propriedade rural é um equívoco». É-me impossível agora, e num comentário que não pode ser demasiado longo, discorrer acerca da importância que os fascismos atribuíram às explorações agrícolas familiares. A situação variou consoante os diferentes regimes, mas verificou-se em todos eles. Basta-me aqui recordar o caso do Terceiro Reich, o único regime fascista que erigiu a agro-ecologia em doutrina oficial e ao mesmo tempo instituiu um sistema de morgadios destinado a preservar e reforçar as pequenas famílias camponesas. Tratei essa questão no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022) vol. II, págs. 158, 190-192 e vol. VI, pág. 222-225.

    A chamada soberania alimentar leva obrigatoriamente a um aumento do preço dos bens agro-pecuários. Em regra, quaisquer restrições no mercado provocam uma subida dos preços. Se se exportar aquilo que um país produz em condições de maior rentabilidade e se com os lucros obtidos se importarem alimentos produzidos mais eficazmente do que no país importador, estes alimentos conseguem-se a mais baixo preço. Aliás, deparamos aqui novamente com o carácter mítico atribuído à natureza, porque não há motivos económicos para lançar um tabu específico sobre as exportações de alimentos, que em tudo obedecem aos mesmos mecanismos do restante comércio externo.

    Mas a questão fundamental consiste em reconhecer que a agricultura orgânica foi uma invenção surgida nos meios fascizantes da antroposofia e adoptada como doutrina oficial pelo Ministério dos Abastecimentos e da Agricultura do Terceiro Reich. Ora, este fio da história foi cortado e continua a ser sistematicamente escondido pelos ecologistas das últimas décadas. Não é sintomática essa deliberada ocultação da história?

  22. Um trecho do comentário de Isabel foi abordado acima por JB, mas sob outros aspectos. De acordo com Isabel, «o fascismo não costuma negligenciar o interesse do capital, e falar em soberania alimentar sem falar em abolição da grande propriedade rural é um equívoco». Logo, cabe salientar ainda um outro problema, para além daqueles elencados por JB, a falsa afirmação de que o capital está associado apenas à grande propriedade. Consta neste relatório que a estrutura fundiária francesa, relativa às Superfícies Agrícolas Utilizadas (SAU – Surface Agricole Utilisée) sofreu uma transformação nas últimas décadas, passando de 19 ha em 1970 para 55 ha em 2010. Atentando apenas para as dimensões dessas propriedades, independente do tipo de tecnologia e de organização de sua produção agrícola, estamos falando de pequenas propriedades rurais, ainda que esteja ocorrendo uma ampliação territorial na média destes empreendimentos. Concluindo, além de ser notório que reformas agrárias tenham sido medidas específicas de revoluções burguesas clássicas, quebrando as estruturas fundiárias feudais e aristocráticas, permitindo uma dinamização econômica necessária para um capitalismo ainda nascente, temos casos onde “capitalismos nacionais” convivem muito bem com uma estrutura fundiária de pequenas propriedades, diga-se, privadas. É o caso da França acima descrito, mas não o único. O capital só não se dá muito bem com a abolição da propriedade privada, toda ela (não em termos formais e jurídicos, com sua respectiva estatização, como ocorreu nos capitalismos de Estado soviético e chinês, por exemplo), e a respectiva socialização das terras produtivas, na forma de explorações coletivas sob novas relações sociais de produção horizontais e igualitárias, sem abrir mão de uma tecnologia altamente produtiva (pouco trabalho-intensiva), que venha a ser transformada por essas novas relações. Mas, não é isso que se vê sendo defendido geralmente. No suposto “anticapitalismo agroecológico” se mantém uma estrutura fundiária baseada na pequena e média propriedade privada, discute-se a “função social da propriedade” ao invés da sua supressão, assim como se ignora totalmente o proletariado rural altamente qualificado do agronegócio, entendendo como “trabalhador” apenas os pequenos produtores rurais e agricultores familiares, em condições de exploração de mais-valia absoluta. Somado aos elementos trazidos acima por JB, já sabemos onde isso termina…

  23. Irado,

    Já que você abordou esse problema, talvez valha a pena prosseguir um pouco a argumentação. A Europa comunitária desde cedo instaurou mecanismos de preservação da pequena e média propriedade rural, que aliás são muitíssimo dispendiosos economicamente. O objectivo, porém, não é directamente económico, mas social, pois a repartição das circunscrições eleitorais, beneficiando as zonas rurais, confere o maior poder eleitoral às famílias camponesas, que são intrinsecamente conservadoras. O general de Gaulle teve um papel decisivo nesta construção europeia, e compreende-se, porque toda a sua formação política foi fascista, na área do fascismo conservador da Action Française. Tal como sucedeu com muitos outros, de Gaulle viu-se repartido entre o seu fascismo, que poderia tê-lo levado a apoiar o governo de Vichy, e o seu nacionalismo, que o levou a lutar contra um governo que colaborava com os invasores. Mas o seu quadro ideológico e a sua visão das forças sociais não se alteraram. Aliás, na Polónia e na Hungria, os dois países da União Europeia mais próximos do fascismo, ou de um cripto-fascismo, o pequeno e médio campesinato constitui um dos mais sólidos bastiões governamentais. O caso português oferece um excelente exemplo da acção conservadora das explorações agrícolas familiares. No período revolucionário que sucedeu ao golpe militar de 25 de Abril de 1974 o rio Tejo repartia o país em duas zonas. Nos campos a sul do Tejo predominavam as grandes colectividades agrícolas, resultantes da expropriação popular dos latifúndios, que não foram divididos em propriedades familiares. Pelo contrário, instaurou-se um colectivismo baseado no proletariado agrícola. Era nesta região que o comunismo imperava nos campos. A norte do Tejo predominavam as pequenas e médias explorações familiares. Era essa a população conservadora, que apoiava a extrema-direita e o que restava do fascismo. Se se tivesse desencadeado uma guerra civil, como durante alguns dias pareceu possível em Agosto de 1975, seria essa a linha de demarcação e seriam essas as grandes forças sociais em jogo.

  24. Ora pois João, parece-me que a pequena propriedade é a base para uma possível sociedade do futuro. Mas, uma sociedade de um tipo bem específico, totalmente diferente daquela que podemos chamar de “comunista”…

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