Por Ricardo Noronha

Breve crónica de um dia de Março

O leitor do Passa Palavra certamente dispensará que eu me alongue aqui em descrições exaustivas dos acontecimentos verificados na greve geral realizada em Portugal a 22 de Março. Grande parte do que estava em causa é sobejamente conhecido e, em diversos aspectos, a caracterização avançada num texto escrito a propósito da greve geral de 24 de Novembro continua a manter a sua actualidade. A mobilização sindical dirigiu-se a empresas de transportes, ao sector empresarial do Estado e a sectores vitais da administração pública. A impressão generalizada é que a greve não conseguiu paralisar parte substancial da economia do país e teve uma repercussão menor nos locais de trabalho do que a de Novembro. Vai também ganhando forma uma crescente sensação de esgotamento das fórmulas de mobilização habituais.

Em Lisboa, após ter sido convocada para as 16h00 uma manifestação promovida pela Plataforma 15 de Outubro (que integra diversos activistas, grupos e movimentos sociais), a CGTP divulgou a sua própria manifestação, que efectuou o mesmo percurso (Rossio-Chiado-S.Bento, bem no centro de Lisboa) mas partiu cerca de duas horas antes, a tempo de evitar o contágio. Como se escreveu no Indymedia, tratou-se da “Greve Geral com mais apelos à participação de que há memória, com possibilidades para todos os gostos”, até porque outra manifestação foi convocada em Lisboa, para a Praça do Saldanha, em frente à Bolsa de Valores, pelas 13h00, com a intenção de se dirigir ao Rossio e integrar a manifestação convocada para as 16h00. A tudo isto juntou-se uma iniciativa de ciclistas solidários com a greve e uma concentração de desempregados promovida pelo “Movimento Sem Emprego” também no Rossio.

No Porto, a ida do Primeiro-Ministro (Passos Coelho) à Universidade da cidade, por ocasião do seu aniversário, motivou a realização de um «Flash piquete de “boas-vindas” ao Passos Coelho», a par da concentração sindical na Praça dos Leões.

Em ambas as cidades a greve ficou marcada pela actuação da polícia. Se de madrugada o Corpo de Intervenção demonstrou a sua utilidade face aos piquetes da Carris e da recolha do lixo, foi durante o dia que o seu trabalho mereceu uma atenção mais prolongada. A manifestação que desceu a Av. Almirante Reis vinda do Saldanha foi acompanhada de perto (na verdade foi cercada de perto) por um numeroso dispositivo policial, tendo alguns manifestantes atirado ovos contra as fachadas de diversas instituições bancárias. Em frente à sede do Banco de Portugal a polícia ameaçou uma carga, quando dois agentes à paisana tentaram deter um manifestante e foram rapidamente repelidos. Esta manifestação chegou ao Rossio cerca das 15h30, após nova tentativa de detenção frustrada pela resistência dos manifestantes.

Entretanto, no Porto, Passos Coelho foi recebido por manifestantes que lançaram cenouras e ovos à sua passagem, tendo-se verificado detenções e bastonadas.

Quando a manifestação convocada pela plataforma 15 de Outubro saiu do Rossio, em Lisboa, já havia notícias vindas de S. Bento (onde fica a Assembleia da República) que relatavam confrontos entre o serviço de ordem da CGTP e membros dos Precários Inflexíveis, um grupo de activistas ligado ao Bloco de Esquerda.

A manifestação subiu a Rua do Carmo em direcção ao Chiado, sem incidentes a registar, com o som de uma banda de samba entrecortado por petardos [traques] ruidosos mas inofensivos. Na Rua Garrett, logo a seguir, a polícia tentou a sua sorte pela terceira vez, e conseguiu arrancar um manifestante do seio da manifestação, alegadamente apenas para o “identificar”. Constatando que este estava a ser agredido no chão, os outros manifestantes procuraram resgatá-lo, sendo imediatamente afastados à bastonada. Num espaço de tempo de poucos minutos ficaram diversas pessoas feridas, prostradas e/ou a sangrar. Uma parte dos manifestantes não conseguiu sequer esboçar uma resposta, ficando simplesmente atordoada com a ferocidade da violência policial. Outra parte, porém, rapidamente se serviu do que encontrou à mão (nomeadamente o material de uma esplanada próxima) para atirar à polícia e erguer uma barreira ao avanço do Corpo de Intervenção, que carregou indiscriminadamente sobre todas as pessoas que se encontravam numa das zonas mais movimentadas da cidade. Nesse preciso momento, dois fotojornalistas foram agredidos pela polícia, como o comprovam imagens entretanto divulgadas pelo mundo fora.

A manifestação reagrupou-se uns metros mais à frente, no Largo Camões, tendo prosseguido até S. Bento encaixada entre dois fortes dispositivos policiais. Apesar da presença de inúmeros agentes à paisana no local, não se registaram mais tentativas de detenção ou incidentes relevantes.

Uma violência despropositada?

Não deixa de ser surpreendente o eco que a carga policial efectuada no Chiado mereceu na comunicação social portuguesa e estrangeira. Parece ser difícil ignorar que a agressão a dois jornalistas desempenhou aqui um papel assinalável e tornou mais difícil lançar sobre os acontecimentos a habitual cortina de fumo a que a PSP costuma recorrer nestas ocasiões. Ainda assim, as primeiras notícias difundidas pela Agência noticiosa oficial, a Lusa, para quem trabalhava precisamente um dos repórteres agredidos, noticiavam candidamente que a carga policial se devera à destruição de uma esplanada por parte dos manifestantes. Os restantes meios de comunicação reproduziram-na sem se darem ao trabalho de a confirmarem e só a abundância de imagens captadas e de testemunhos variados permitiu desmontar essa primeira versão dos acontecimentos, de evidente inspiração policial.

Aqui se podem ver alguns vídeos que mostram mais ou menos a sucessão de acontecimentos.

O facto é que calhou os dois repórteres agredidos estarem no local errado à hora errada, uma vez que a jornalista da AFP já veio esclarecer que se encontravam ambos mais abaixo, a enviar para a sua redacção o material já recolhido, quando tudo começou, tendo sido surpreendidos pela velocidade dos acontecimentos. Uns minutos antes ou uns minutos depois, existiria a grande probabilidade de ambos se encontrarem na cabeça da manifestação e tudo isto teria acontecido sem que se encontrassem lá jornalistas, mas com idêntica violência a abater-se sobre manifestantes e transeuntes anónimos. Como tem acontecido com frequência.

Se alguma coisa se tornou evidente com tudo isto é que a incredulidade de quem assiste ao comportamento da polícia em situações deste género corresponde à obstinada recusa em aceitar que esse comportamento é absolutamente rotineiro e habitual, variando apenas consoante a classe social, a identidade étnica ou a localização geográfica das pessoas sobre as quais ele se abate. Aqueles bastões não batem com menos força na Cova da Moura ou na Arrentela ou em Chelas do que no Chiado. Nem a sua ameaça é mais democrática contra os piquetes de greve do que contra os profissionais da informação. Mas foi necessário que tudo acontecesse ali, à vista das estátuas de Pessoa e de Camões, para que circulassem como uma demonstração incontornável do que é a violência do Estado num contexto de austeridade.

Aspirando a uma polícia democrática, vinculada ao primado do Direito e absolutamente transparente, multiplicam-se os apelos de esclarecimento do que aconteceu por parte de diversos sectores e até um inquérito foi aberto pela Inspecção Geral da Administração Interna. Mas esta polícia, que já se tornou célebre por disparar sobre carros em fuga em “operações stop”, por executar crianças de 14 anos com um tiro na cabeça, por espancar cidadãos nas esquadras e por percorrer os bairros pobres como um exército ocupante, sempre pôde contar com a maior das complacências por parte da comunicação social e pelas instituições do Estado que têm a seu cargo fiscalizá-la. A sua violência é proporcional ao seu sentido de impunidade e enquanto se ler nos jornais, como se fosse a verdade mais evidente do mundo, que “a polícia foi obrigada a intervir” nesta ou naquela situação, sem que seja necessário verificar o que a levou a intervir e de que forma interveio, episódios destes continuarão a repetir-se, com ou sem jornalistas à mistura.

Da mesma maneira, todos os esforços para diabolizar exclusivamente os agentes fotografados no momento das agressões, punindo-os disciplinarmente para fazer deles bodes expiatórios de uma situação indesejável, apenas perpetuarão o equívoco que trata como uma excepção aquilo que é efectivamente uma regra. Quando batem indiscriminadamente sobre todos os manifestantes, os agentes da polícia fazem-no integrados num aparelho de violência altamente hierarquizado e segundo as ordens que recebem. Não se trata de abusos que seria desejável corrigir, mas de métodos e funções que se aplicam numa base quotidiana.

Acresce a isto que o rigor com que se reprime e pune selvaticamente cada ilegalidade levada a cabo numa manifestação ou num acto de protesto contrasta, de forma assaz evidente, com a complacência com que se lida com ilegalidades levadas a cabo ao mais alto nível, em conselhos de administração, ministérios e secretarias de estado. Observe-se a candura com que o sindicato dos magistrados públicos organizou recentemente o seu congresso, contando com avultados patrocínios de diversas empresas e grupos económicos que se encontram sob investigação por serem suspeitos de irregularidades e ilegalidades de vários tipos. Semelhantes processos têm por hábito arrastar-se duradouramente pelas barras dos tribunais, não sendo raro que venham a prescrever. Observe-se em alternativa a forma célere e expedita como se julgam nos tribunais, em processos sumaríssimos, os pobres coitados apanhados a roubar em super-mercados ou a vender haxixe nas ruas. A lista de exemplos possíveis é de tal forma extensa que este texto se arriscaria a não ficar concluído caso eu a quisesse continuar. A violência da carga policial no Chiado não é menos despropositada do que a ordem social em que vivemos, porque é dela inseparável. Trata-se de uma violência de classe e que tem objectivos políticos muito claros. É ela que explica a arrogância com que a burguesia portuguesa debate se uma redução de 20% dos salários reais será suficiente para tornar a economia suficientemente atractiva para os seus investimentos.

Como manter na ordem um milhão de desempregados e apontar-lhes a porta de saída, como explicar aos doentes a quem se cobra a hemodiálise que não há alternativa, como cortar salários ou liberalizar despedimentos, como transferir rendimentos do Estado para os grandes grupos económicos, como utilizar a austeridade para fazer os pobres pagarem a crise? Todas estas questões têm uma resposta semelhante: com uma violência «despropositada» sobre os que tentam resistir e travar esse processo, sobre quem não aceita empobrecer tranquilamente, sobre quem não engole a fábula do “vivemos acima das nossas possibilidades”. O Governo tem diversos instrumentos e estratégias para levar a cabo a sua política e cumprir o acordo estabelecido com a Troika – desde comissões inter-ministeriais a receitas extraordinárias, passando pelos impostos e pelas privatizações – mas nenhum lhe oferece tantas garantias quanto o Corpo de Intervenção. E este não serve tanto para punir as ilegalidades quanto para dissuadir as resistências.

O que fazer quando tudo arde?

E contudo, são cada vez mais as pessoas que se juntam para protestar fora dos esquemas habituais, que se organizam à margem das instituições e recusam ser enquadradas por partidos de Esquerda. As notícias e as imagens e as ideias correm o mundo e cada vez mais gente se dá conta dos tempos decisivos que vivemos. O processo pode ser lento e acidentado, mas está em curso. Foi sobre isso que a polícia carregou no Chiado e a resposta parece ser bastante evidente: mais polícia menos polícia, estas pessoas vieram para a rua e não estão dispostas a ser intimidadas. É bastante provável que olhemos para trás daqui a alguns anos e identifiquemos este dia como um momento decisivo e clarificador, em que os dados da questão se apresentaram de forma mais inequívoca do que em qualquer outra ocasião anterior.

Com serviços mínimos que na prática esvaziam a greve de efectividade, com a arma do desemprego e da precariedade para intimidar os trabalhadores a aceitar a prepotência patronal, com intervenções policiais sobre os piquetes de greve, tudo aponta o terreno da ilegalidade como o mais óbvio para quem não se contenta com protestos simbólicos. A correlação de forças foi de tal forma balanceada a favor do capital que se torna difícil imaginar um conflito social capaz de alimentar a mais pequena perspectiva de triunfo exclusivamente dentro das margens da legalidade.

Ao orientar a resistência para um calendário regular de manifestações e para a enésima tentativa de diálogo à Esquerda, as organizações partidárias esforçam-se para não perder o controlo da situação e alimentam a mesma ambição de sempre: utilizar a rua como rampa de lançamento eleitoral e subordinar a dinâmica do conflito ao primado das instituições do Estado. Politicamente, é esse o ciclo que se vive em Portugal desde o crepúsculo do processo revolucionário. Mas do ponto de vista social, as condições para que isso continue a acontecer vão-se rarefazendo a uma velocidade assinalável. A Esquerda está especializada em resistir e defender os direitos conquistados. Mas tem cada vez menos para oferecer à medida que há cada vez menos direitos a defender. Como é que a defesa de direitos poderá mobilizar para uma luta os trabalhadores a recibos verdes ou dependentes de empresas de trabalho temporário, já para não falar dos que se encontram no mercado negro ou dos que pura e simplesmente não têm emprego? As ruas começam a encher-se de gente que fala outra língua e se move de outra maneira, que se apercebe que não terá quaisquer direitos que não os que souber conquistar e que pode contar apenas com a sua força colectiva. A correlação entre o défice de conflituosidade social e as enormes desigualdades existentes em Portugal começa a tornar-se incontornável para quem assistir às notícias na televisão uma vez por semana: Atenas, Barcelona ou Oakland assemelham-se cada vez mais entre si e não parecem assim tão distantes daqui.

Os sinais aí estão para quem os quiser ver e, mesmo se o futuro permanece uma incógnita, pontuado por inúmeros cenários e encruzilhadas possíveis, algo mexe sob a superfície de uma sociedade aparentemente pacificada e resignada ao seu triste fado. Ainda é cedo para fazer as contas. Os abutres voam em círculos sobre o que julgam ser a sua presa. É deixá-los pousar.

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