Para Marat o problema fundamental do Estado é o controlo exercido sobre os representantes e este controlo deve ser permanente. Por João Bernardo

Esta série de quatro artigos foi escrita e entregue ao Passa Palavra em meados de Dezembro de 2011, seis meses antes da publicação do manifesto Ponto Final.

marat-1Em Les Chaînes de l’esclavage (As Cadeias da Escravidão), obra publicada originariamente em inglês em 1774, quinze anos antes do começo da Revolução Francesa, bem como noutros escritos da mesma altura, nomeadamente no Discours Adressé aux Anglois… (Discurso Dirigido aos Ingleses…), Jean-Paul Marat analisou a experiência da democracia britânica, para concluir que o problema fundamental do Estado é o controlo exercido sobre os representantes e que este controlo deve ser permanente. «[…] «como cabe ao povo escolher os representantes, cabe-lhe dar a conhecer as suas opções e defendê-las; no entanto, uma vez eleitos, os nossos deputados não nos dão o direito de nos pronunciarmos sobre a validade das eleições; arrogam-se esse privilégio. […] se a nação dá carta branca aos seus deputados, deve pelo menos garantir-se com o direito de os desaprovar e os reprimir, se abusarem dos seus poderes. […] como os reprimir, como os punir? […] Os membros do parlamento podem […] imolar-nos impunemente sem ser chamados a prestar contas e sem correr nenhum risco além do de não ser eleitos de novo. […] quem os impedirá de se tornarem independentes do povo que os constituiu? Cabe à nação sancionar as leis feitas pelos seus representantes […]» [1].

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Jean-Paul Marat

Em todas as páginas de Les Chaînes de l’esclavage o povo é soberano, mas Marat entendeu a soberania como uso da soberania. Contrariamente aos teóricos seguidores da tradição de Montesquieu, que viam a garantia da liberdade no equilíbrio recíproco que os representantes estabelecem entre eles, Marat radicou a liberdade no exercício do controlo. Da falta de controlo deriva a ascensão lenta do despotismo. É este o tema principal da obra, como foi o tema principal da vida — e da morte — de Marat. O essencial de Les Chaînes… é a descrição das formas lentas e subtis, imperceptíveis, como os representantes se emancipam do controlo popular e fundam a sua tirania; da forma como as instituições evoluem e dão origem ao seu contrário. O processo de evolução do Estado é, pois, o processo da diminuição ou da extinção do controlo. Por isso Marat pôde conceber a opressão como interna e não externa. Nesta perspectiva ele é um anti-Maquiavel, porque em O Príncipe o despotismo é imposto de fora ao povo, enquanto para Marat é o povo quem, pelo seu descuido, gera o Príncipe. São os cidadãos, eles próprios, a produzir os instrumentos da sua opressão. Parece que nesta obra Marat estava a responder às interrogações sobre O Príncipe que Spinoza formulara no § 7 do quinto capítulo do seu Tractatus Politicus.

Contra a ascensão lenta do despotismo, Marat via uma solução única, o ataque imediato do povo. Les Chaînes… pretende-se um guia prático e, se expõe o processo de desenvolvimento da tirania, é para que possamos evitá-lo. A garantia do controlo reside na pequena extensão do Estado. Quanto mais vasto o Estado se tornou, mais dissolveu as ligações sociais entre os habitantes e mais lhes dificultou qualquer controlo. Uma das finalidades da acção revolucionária, portanto, é dar coesão aos elementos heterogéneos do povo, e Marat enunciou as condições da vitória da insurreição: 1º) existência de um dirigente que guie as massas; 2º) que a insurreição seja geral; 3º) que os insurrectos estejam unidos; 4º) que a união reine também quanto aos objectivos finais; 5º) que a insurreição seja desencadeada no bom momento táctico; 6º) que os insurrectos sejam experientes no manejo das armas; 7º) que os novos dirigentes não degenerem [2]. E assim Marat deixou-nos no ponto crucial, precisamente onde havia começado, perante a necessidade de controlar os novos dirigentes. Não há repouso.

A lucidez de que Marat deu provas muitos anos antes da tomada da Bastilha permitiu-lhe ver desde cedo na Revolução Francesa não a liquidação dos privilégios, mas a substituição de privilégios novos aos antigos. Escreveu ele em L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo) de 9 de Outubro de 1790: «Continuais no erro, quando atribuís todo o mal aos aristocratas. […] não são eles quem está à frente das coisas; quem dita a lei são os atrozes ministros, os partidários do rei e os deputados do povo […]» [3]. Dois dias depois, insistiu Marat: «Desventurados cidadãos, não fizestes mais do que mudar de senhores; e os novos desprezam-vos tal como o faziam os cortesãos […]» [4]. Se escapam ao controlo de todos os momentos, os representantes tornam-se novos déspotas. «[…] os nossos indignos representantes, que se tornaram nossos senhores […]», como ele escreveu em L’Ami du Peuple a 10 de Novembro do mesmo ano [5].

marat-4A liberdade era, para Marat, fruto de uma luta permanente, mas estas lutas não abriam o caminho para o fim das lutas sociais. Ele não pensava a sociedade sem Estado. Pensava o exercício do controlo sobre os representantes, mas não o fim dos representantes. A permanente existência de representantes, que permanentemente tentam escapar ao controlo, e a permanente luta do povo para impor este controlo — eis o processo, contraditório na sua essência, como Marat concebeu o Estado da liberdade. Daqui deduziu o papel do dirigente revolucionário. Não era um chefe militar ou burocrático, destinado a enquadrar massas. Era um activista, um proclamador, um agitador, que despertava os apáticos e esclarecia os ignorantes. Daí também o seu estilo, aquela mistura constante de excitação e de desilusão, aquele desesperado optimismo, os inumeráveis «Cegos cidadãos, será que nunca abrireis os olhos?». No antepenúltimo número do seu jornal a ser publicado, a 12 de Julho de 1793, na véspera do seu assassinato, Marat exclamou uma derradeira vez: «Se pelo menos fôssemos mais sábios no futuro! […] o meu desespero é o de ser sempre o cassandra da revolução» [6].

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Jean-Paul Marat

Durante a revolução Marat voltou inúmeras vezes ao problema do controlo permanente dos representantes e da sua revogabilidade, e o direito à revogabilidade foi proposto no seu projecto de constituição. «[…] para prevenir os caminhos secretos da corrupção, convém que os Mandantes [os eleitores] usem o direito que têm de revogar os poderes de um deputado que abandone constantemente os interesses da Pátria e de prosseguir a punição de um Deputado que lhes tenha faltado à palavra» [7]. E a questão foi abordada desde o nº 1 de L’Ami du Peuple, em 12 de Setembro de 1789, na pág. 10. Em 1 de Outubro de 1789, num artigo de L’Ami du Peuple intitulado Observações essenciais sobre a escolha dos nossos delegados à Assembleia Nacional, Marat escreveu que «para manter o próprio legislador nos limites do dever, insistamos num aspecto que os Estados Gerais sempre deixaram de lado; refiro-me à Soberania do Povo, ao direito sagrado que têm os Mandantes de revocar à vontade os Delegados, de nomear substitutos e de marcar com o selo da infâmia aqueles que traíram o seu dever» [8]. Marat nunca deixou de definir a soberania popular como o uso dessa soberania e voltou incessantemente ao tema do controlo dos representantes em todas as instituições do Estado, incluindo no exército, onde propôs a nomeação e a revocação dos oficiais pelos soldados. A aplicação desta medida entre os militares foi sugerida muitas vezes, mas, com particular clareza quanto ao problema da revocabilidade, no nº 139 do jornal, em 20 de Junho de 1790, e no nº 160, em 12 de Julho.

A questão do controlo era tão decisiva que deveria até suscitar uma nova arquitectura, como Marat aconselhou em L’Ami du Peuple de 7 de Setembro de 1790. «Em vez dessas magníficas salas de espectáculo, seriam necessários, oh! homens vãos e frívolos, vastos templos dedicados à Justiça e construídos em forma de rotunda, de acordo com as leis da Acústica, onde vinte mil espectadores sentados em bancadas tivessem perante os olhos tanto as partes como os juízes; onde a instrução do processo só pudesse ser feita em presença do público e onde os opressores e os prevaricadores não ousassem sequer pestanejar, com medo de ser trucidados. Até que isto suceda, sereis escravos» [9]. O problema de uma nova arquitectura regressou dois anos depois, em L’Ami du Peuple de 19 de Setembro de 1792. «É necessário que a Convenção Nacional esteja ininterruptamente perante os olhos do povo, para que ele a lapide se ela se esquecer dos seus deveres. Assim, para mantê-la no caminho da liberdade, é indispensável uma sala cujas tribunas contenham quatro mil espectadores. Esta sala já devia estar construída e peço que se trabalhe sem demora nesse projecto» [10].

No Journal de la République française (Jornal da República Francesa) de 10 de Janeiro de 1793, Marat publicou um importante artigo, reproduzindo um discurso que não pôde pronunciar na Assembleia, acerca da condenação do rei. Aí defendeu a absoluta necessidade de um sistema representativo, pois numa nação com as dimensões da França seria impossível que todo o povo estivesse permanentemente a reunir-se para tratar de qualquer assunto. Além disso, o comum das pessoas não tinha competência para deliberar sobre grande parte das questões. E se as assembleias de base se multiplicassem, seria impossível prosseguir a vida económica. Entrar-se-ia assim numa situação de caos permanente. Portanto, as decisões deviam ser tomadas pelos representantes eleitos e a eles cabia governar. «Será então necessário, direis, que ele [o povo] deposite uma confiança cega nos seus mandatários? Claro que não. Mas, meus senhores, há um único meio exequível de os obrigar a nunca comprometerem a soberania. É declarar que todos os seus decretos serão simplesmente provisórios, é restringir-lhes a sanção apenas às leis constitucionais; é estabelecer solenemente como último artigo da declaração dos direitos que qualquer decreto que comprometa as leis constitucionais é absolutamente nulo, ilegal, opressivo, tirânico e que é lícito opor-se ao seu cumprimento, por todos os meios possíveis, mesmo à mão armada. Cláusula indispensável, mas sempre posta de lado, sempre adiada pelos legisladores desleais, que pretendiam tornar ilusórios tanto os direitos dos cidadãos como a soberania do povo» [11].

marat-2Marat deu assim o passo decisivo. Aquilo que, relativamente aos representantes individuais, era o direito do povo a exercer a revocabilidade, para o conjunto dos órgãos representativos tornou-se o direito do povo a desencadear a insurreição.

E o desenvolvimento do processo revolucionário mostrou que o controlo permanente não devia aplicar-se apenas aos organismos do Estado, mas também às instituições partidárias, às secções. Em 23 de Junho de 1793, em Le Publiciste de la République française (O Publicista da República Francesa), Marat escreveu: «[…] pedi que a permanência das secções fosse suprimida em toda a República. Esta permanência é a causa principal das catástrofes verificadas recentemente em diversas grandes cidades do Estado; porque os intrigantes [12] precipitam-se em grande número para as secções, dominam-nas e levam-nas a tomar as decisões mais liberticidas, enquanto os jornaleiros, os operários, os artesãos, os lojistas, os camponeses, numa palavra, a multidão dos desfavorecidos, obrigados a trabalhar para viver, não podem estar presentes para reprimir os inimigos da liberdade; apresentei há doze dias esta medida ao Comité de Salvação Pública, que percebeu a sua importância e prometeu um relatório; desconheço os motivos do seu silêncio» [13].

Notas

[1] Discours Adressé aux Anglois le 15 avril 1774, sur les vices de leur Constitution, & les moyens d’y remédier, em Les Chaînes de l’esclavage, Paris: Union Générale d’Éditions, 1972, págs. 287-289.

[2] Les Chaînes de l’esclavage, op. cit., págs. 168-181.

[3] Nº 245, pág. 5. O jornal publicado por Marat durante a Revolução Francesa é usualmente designado como L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo). Repetidamente proibido, continuou a ser publicado, durante alguns períodos clandestinamente, com nomes variados, sem que isso lhe retirasse a continuidade. Chamou-se inicialmente Le Publiciste parisien, Journal politique, libre et impartial, par une société de patriotes, Et redigé par M. Marat, Auteur de L’Offrande à la Patrie, du Moniteur et du Plan de Constitution, etc. (O Publicista Parisiense, Jornal Político, Livre e Imparcial, por uma Sociedade de Patriotas, E redigido pelo Sr. Marat, Autor de A Oferenda à Pátria, do Monitor e do Plano de Constituição, etc.). Em Setembro de 1789 o título passou a ser L’Ami du Peuple, ou Le Publiciste etc. (O Amigo do Povo, ou O Publicista etc.). Em 1792 tornou-se Journal de la République française, par Marat, L’Ami du Peuple, député à la Convention Nationale (Jornal da República Francesa, por Marat, O Amigo do Povo, deputado à Convenção Nacional). E mudou outra vez de título em 1793, passando a chamar-se Le Publiciste de la République française ou Observations aux Français, par Marat, L’Ami du Peuple, Député à la Convention Nationale (O Publicista da República Francesa ou Observações aos Franceses, por Marat, O Amigo do Povo, Deputado à Convenção Nacional).

[4] Nº 247, pág. 7.

[5] Nº 276, pág. 3.

[6] Le Publiciste de la République française, nº 240, pág. 4. Na mitologia grega, Cassandra fora uma profetisa da desgraça, em quem ninguém acreditava.

[7] La Constitution, ou Projet de déclaration des droits de l’homme et du citoyen, suivi d’un plan de Constitution juste, sage et libre, À Paris, chez Buisson, Libraire, rue Hautefeuille, Hôtel de Coetlosquet, nº 20, 1789, págs. 27-28.

[8] Nº 21, pág. 181.

[9] Nº 214, pág. 8.

[10] Nº 683 em A. Vermorel (org.), Oeuvres de J. P. Marat (L’Ami du Peuple), Paris: Décembre-Alounier, 1869, pág. 230.

[11] Nº 94, págs. 5-6.

[12] Na terminologia daquela época, intrigante tinha a acepção de conspirador, nomeadamente aplicada aos girondinos.

[13] Nº 224, pág. 3.

A série Dilemas da liberdade tem quatro artigos:
1) Uma incipiente nova ordem da sociedade
2) Os banquetes fraternais
3) Marat: a soberania é o uso da soberania
4) Marat: nomear um ditador detido sob vigilância

18 COMENTÁRIOS

  1. O Marquês de Sade, em outubro de 1792, quando era o comissário na seção de Piques encarregado da fiscalização e administração dos hospitais, escreveu um pequeno texto – Idéias sobre as maneiras de sancionar leis (que foi lido na assembleia de Piques no dia 28 de outubro) onde leva a perspectiva maratiana à sua radicalidade prática. Defendia a manutenção permanente da soberania popular sobre os seus mandatários. Sugeriu um modelo federado de assembleias em ação permanente na discussão e aprovação das leis, a função de um deputado seria apenas a de propor leis, o povo soberano em assembleia é que as aceitaria ou recusaria. O documento de Sade teve ampla divulgação na ocasião. O Marques de Sade convulsionava a revolução nas suas próprias contradições, esgarçava os limites formais da “revolução burguesa”… Em 1795, defendeu o crime como uma virtude, um ladrão rouba alguém porque não tem o mínimo para a sua sobrevivência, o culpado não seria o ladrão, o culpado seria aquele que se deixou roubar porque possuidor de riqueza em excesso.

  2. É curioso que o nome de Sade tivesse passado a ser frequentemente associado ao de Marat, sobretudo depois da peça de Peter Weiss. Todavia, no nº 145 de L’Ami du Peuple, 26 de Junho de 1790, pág. 8, Marat escreveu: «[…] o senhor de Sade, que esteve implicado em tantos casos lamentáveis [também se pode traduzir: desagradáveis], que se dizia que tinha sido levado a tribunal e de quem muito me falaram em Londres […]» («M. de Sade, qui a été impliqué dans tant d’affaires fâcheuses, qu’on disait traduit au Châtelet, et dont j’ai eu les oreilles rebattues à Londres»). Sade era um seguidor de Marat, mas a relação foi mais problemática em sentido inverso.

  3. Não posso afirmar com toda a certeza porque não tenho agora em mãos as referências de consulta, mas creio que os “casos lamentáveis” a que se refere Marat eram aqueles que a infâmia familiar (acusações da sogra) fazia circular pela opinião pública francesa, infâmia essa que infligira a Sade os vários anos de prisão passados antes dos acontecimentos de 1789. O documento “maratiano” de Sade é de 1792, o comentário de Marat sobre os casos lamentáveis de Sade é de 1790. O Sade “maratiano” foi “exonerado” do cargo que ocupava em Picques no final do ano de 1792, exonerado pelos jacobinos por se recusar a “mandar” à guilhotina alguns condenados na região. Marat não teve tempo de conhecer a radicalidade “republicana” do “divino” Marquês.

  4. «Continuais no erro, quando atribuís todo o mal aos aristocratas. […] não são eles quem está à frente das coisas; quem dita a lei são os atrozes ministros, os partidários do rei e os deputados do povo […]» [3]. Dois dias depois, insistiu Marat: «Desventurados cidadãos, não fizestes mais do que mudar de senhores; e os novos desprezam-vos tal como o faziam os cortesãos […]» [4]. Se escapam ao controlo de todos os momentos, os representantes tornam-se novos déspotas. «[…] os nossos indignos representantes, que se tornaram nossos senhores […]» O interessante é que outros também tinham pesamentos semelhantes na época mesmo sendo contrários a revolução, como é o caso do aristocrata Gabriel Senac de Meilhan que demonstra sua insatisfação com Necker e seu amor-próprio contagiante, com seus interesses colocados acima do Rei e povo!

  5. Aprofundando o debate sobre Sade, há um ensaio de José Paulo Netto, intitulado “Sade e a contraface do liberalismo” (In: Democracia e Transição socialista: escritos de teoria e política. Belo Horizonte: Oficina dos Livros, 1990), no qual o autor tece as seguintes considerações:

    “Às dificuldades […] à exegese do pensamento político de Sade somam-se as suas próprias ambiguidades e contradições como ator político. […] há um documento pessoal de Sade, uma carta a Gaufridy, seu procurador, datada de 5 de dezembro de 1791, atestando as rupturas e vacilações que o consomem neste momento: diz ele que sua ‘maneira interior de pensar’ não se identifica ‘verdadeiramente em nenhum dos dois partidos, é antes um composto de todos. Sou antijacobino. Odeio-os até a morte. Adoro o rei, mas detesto os antigos abusos. Gosto de uma infinidade de artigos da Constituição, outros me revoltam. Quero que devolvam à nobreza seu esplendor, pois tê-lo tirado não adianta nada. Não quero a Assembléia Nacional, mas duas Câmaras, como na Inglaterra, o que dá ao rei uma autoridade mitigada, balanceada pelo concurso de uma nação necessariamente dividida em duas ordens; a terceira é inútil, nada quero dela. Aí está minha profissão de fé. Que sou eu agora? Aristocrata ou democrata? Queira dizer-me, por favor, advogado, pois quanto a mim não sei de nada'” (pág. 25-26).

    Prossegue Netto:

    “[…] em Sade, a política está subordinada ao erótico, com o seu universo societário específico aparecendo […] como ‘uma sociedade cujos membros só seriam felizes oprimindo-se reciprocamente'” (pág. 26).

    Noutro trecho, Netto conclui:

    “é inegável que a problemática politica que deles decorre [dos escritos de Sade] é nitidamente a posta já pela teoria liberal, ainda que a sua resolução (se assim se podem chamar as várias respostas de Sade) aponte precisamente para aquilo que a concepção liberal oculta, ou, mais precisamente, porta dissimuladamente como possibilidade concreta. Com efeito, em Sade a problemática política é colocada a partir do indivíduo, justamente o ‘indivíduo-mônada social’ próprio da concepção individualista possessiva. E esta vem articulada com uma visão de mundo que, assentada no puro espírito iluminista da razão instrumental, deriva numa filosofia materialista mecanicista que subsume a legalidade do mundo social àquela que esta vertente filosófica atribui à natureza” (pág. 28).

    Adiante, diz o autor:

    “[…] a subsunção da sociedade à natureza fornece o modelo para o equilíbrio social [em Sade]” (pág. 30).

    Segundo Netto, Sade reproduz, peculiarmente, a lógica oculta da doutrina liberal: o único dever do Estado é conservar a sua própria manutenção (pág. 33). Peculiarmente, porque, para Sade:

    “[…] a sua funcionalidade [do Estado] reside na garantia da ‘dominação individual’ – posta irretorquivelmente por aquelas liberdade e igualdade que só têm parâmetros na escala do indivíduo possessivo – que se engendra na ambiência da ‘opressão universal’; a liberdade concreta consiste em oprimir individualmente e a igualdade concreta (assegurada pelo Estado) na possibilidade da reciprocidade da opressão. Eis como o universo inteiro do iluminismo do individualismo possessivo – com ‘todos’ os seus traços pertinentes – revela a sua imanência concentracionária. A ‘mão invisível’ que deveria conduzir a ‘felicidade individual’ à ‘prosperidade geral’ dirige o processo para o terror inscrito no cotidiano social e para o horror social do cotidiano. O republicano que exerce a sua ‘tiraniazinha’ em privado, ao conferir ao Estado o ânimo da ‘revolta’, franqueia as fronteiras entre o privado e o público. O privado foi de tal modo hipostasiado que perdeu qualquer remissão orgânica ao público, substituindo-se a ele – o Estado é o privado macroscopizado […]” (pág. 34-35).

    Parece, portanto, que Sade não só se distancia das proposições maratianas como as confronta abertamente: sua república ideal é a dos cidadãos proprietários oprimindo-se reciprocamente, e reduzindo o Estado à função de garantir o direito de cada cidadão de proceder à esta opressão recíproca – uma radicalização, imoral e erótica, do liberalismo original. Não é a república maratiana: uma república na qual os setores populares subalternos têm garantido, constitucionalmente, e exercem, na prática, motivados pela agitação das vanguardas, o controle sobre os representantes do povo na Assembléia. Concepção esta que permite ver as clivagens de classe, como apontado por João Bernardo no artigo anterior sobre os banquetes fraternais. Dessa forma, quando Sade defende o crime como virtude, ele está a defender o direito de opressão de um indivíduo sobre outro, não o fim da opressão, concebido como o controle exercido pela massa sobre os seus representantes. Sade está a defender um novo contrato social, onde todos aceitam de bom grado serem submetidos à opressão mútua.

  6. É estranho que um texto acerca de Marat e da questão do controlo tenha hospedado uma discussão acerca de Sade. Li muito Sade, em dada altura da minha vida, e como erotismo nunca me interessou. Os seus personagens são figurinos de cartão cortados à medida para servirem longas demonstrações verbais, e não são de carne e osso, dois atributos que o erotismo requer, sobretudo a carne. Como literatura erótica Pauline Réage ou Mandiargues parecem-me mais interessantes, mas acima de tudo as Memórias de Casanova, embora para uma visão de classe do erotismo, ou para um erotismo atravessado pelas distinções e oposições de classe, se me afigure insuperável Le Journal d’une femme de chambre, de Octave Mirbeau. Na mesma veia, no cinema, The Servant, de Joseph Losey. Resta-me, de Sade, o escritor político e o moralista, e neste âmbito encontro nele a mais perfeita prefiguração da moral e do comportamento dos SS. Ou seja, situo-o nos exactos antípodas de Marat.

  7. O principal do texto me parece a concepção de que o dever do militante (quem se der tal destino e pelo tempo que o der)é fazer a permanente agitação, a permanente denúncia, a permanente instrução para a luta. Mas que destino espera o militante se os explorados abrirem mão de novos horizontes, se adequarem ao existente?

    Eu fico a pensar porque pessoas como Marat chegam a morrer quando poderia ter uma vida tranquila e farta. Miseráveis lutam por necessidade, pobres lutam por um pouco mais de ar, dinheiro para tratar os dentes. Agora, o que levou Marat a dar a vida numa cruzada incerta e, no final, trágica?

    Outra questão: como pensar a participação ativa da população num mundo muito mais complexo, o nosso, em que o domínio de amplos conhecimentos é necessário para que se possa ter uma participação efetiva? Para todo lado que vou vejo militantes instruindo pessoas sobre o melhor caminho para elas – habitação, segurança pública, universidade…- e depois vejo estes militantes cansados de instruir o povo assumirem cargos em secretarias, ONGs, partidos e outros mais.

  8. Mais acima, João Bernardo situou Sade como um seguidor de Marat, pelo menos no que se refere ao apontamento de João Alberto, acerca da intervenção política de Sade na revolução. Depois situou-o, no que se refere ao seu comportamento e a seu moralismo, como uma prefiguração dos SS. A associação me parece sumária e, sobretudo, anacrônica: como atesta o documento citado por J. P. Netto, no ensaio ao qual fiz referências, Sade era ambíguo, contraditório e mesmo vacilante enquanto ator político, podendo ter assumido uma posição maratiana num determinado momento, mas assumido posicionamentos outros em momentos outros. Talvez as “rupturas e vacilações que o consumiam”, como diria Netto, se devessem exatamente ao fato de que ele exteriorizava em suas obras uma moral que se define pela radicalização do individualismo proprietário, interpretado eroticamente, mas, ao mesmo tempo, exteriorizava ou buscava exteriorizar, em sua práxis política, uma forma de proceder semelhante à proposta por Marat. Daí a validade da associação entre Marat e Sade, proposta por João Alberto. E daí meu estranhamento à associação de Sade com os SS.

  9. Fagner Enrique,
    Já que tece considerações acerca do carácter sumário das associações históricas a que eu procedo, gostaria que me informasse o que você leu da literatura erótica de Sade. E que documentação você leu relativamente aos SS, sobretudo documentação interna? Porque se se limitou a ler o que outros escreveram sobre o assunto, é muito pouco.

  10. Caro João Bernardo,
    Certamente eu não tenho o conhecimento de que o Sr. dispõe, nem o vosso acesso aos documentos históricos mais relevantes. Por isso, como não disponho, certamente, nem do recurso, nem do tempo, nem do preparo necessário para proceder a associações históricas de semelhante qualidade, sou obrigado a fazer recurso ao que outros, certamente mais brilhantes, escreveram. E em momento algum quis desmerecer vossas associações históricas: imaginei eu, de início, que vossa resposta seria a de oferecer um maior desenvolvimento, um embasamento documental ou, ainda, uma referência bibliográfica que pudesse corroborar vosso comentário e, ainda, nutrir minha sede por conhecimento. Comentei, mais como um estudante que possui uma dúvida, do que como alguém que cria polêmicas em tom professoral. Sendo assim, seria muito do meu agrado que o Sr., melhor informado e melhor preparado para proceder a análises históricas, me indicasse o caminho a tomar. Desde já peço perdão pelo aborrecimento que eu possa ter lhe causado.

  11. João Bernardo tem parcial razão em associar a obra de Sade à SS nazista, existem largos exemplos que justificariam tal remissão, vejamos aqui um exemplo do que poderia justificar, para usar a terminologia do próprio João Bernardo – “raça de senhores” – apresentada ele no seu magnífico livro de Labirintos do Fascismo (Porto, Afrontamento, 2003):

    “(…) não é injusto impedir que venha ao mundo um ser que certamente lhe será inútil. A espécie humana deve ser depurada no berço; só assim ireis prevenir e suprimir de seu seio tudo aquilo que jamais seria útil à sociedade. Eis os únicos meios razoáveis de diminuir uma população que, por ser extensa demais, é (…) o mais perigoso dos abusos” (Sade, A filosofia na alcova [tradução de Augusto Borges Contador] São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 168).

    Quem afirma estas palavras é o personagem – o cínico (o termo é do próprio Sade) aristocrata, o senhor Dolmancé. No prefácio que Sade escreveu para o seu livro, Os 120 dias de Sodoma, afirma assim:

    “As guerras consideráveis que Luís XIV travou durante seu reinado, espoliando as finanças do Estado e os recursos do povo, enriqueceram secretamente uma multidão de sanguessugas sempre atenta às calamidades públicas, que provocam e nunca aplacam, para tirar proveito com maiores vantagens. (…) Pouco antes do fim desse Reinado e do Regente tentar forçar essa multidão de vigaristas a restituir tudo que tomara, por meio do famoso tribunal conhecido como Chambre de Justice, quatro dentre eles imaginaram as singulares orgias de devassidão que vamos relatar” (Sade. Os 120 dias de Sodoma [tradução de Alain François]. São Paulo, Iluminuras, 2006, p. 15).

    O que Sade constrói como narrativa literária é a denúncia do universo enlouquecido de senhores sem freio social algum, com a sua literatura pornográfica, Sade fazia política, na sua literatura encontramos o maior libelo contra o poder sem freios, não se pode afirmar nunca que Sade pudesse ser um “senhor” como os seus personagens literários, muito ao contrário, com as descrições escatológicas do poder absoluto enlouquecido, Sade afirmava-se como um igual a Marat, se Marat sofreu o inferno excruciante da perseguição política, da humilhação, do assassinato sem nunca se calar no seu grito contra o poder absoluto, Sade fez o mesmo durante a sua trajetória de 74 anos de vida, quando passou 27 anos preso em 11 prisões diferentes e em três regimes políticos diferentes: foi encarcerado por insidiosa perseguição da sua sogra (que o acusava perante a autoridades e opinião pública de ser ele um louco sexual [porque foi denunciado por duas prostitutas que foram à polícia reclamar que o senhor Sade queria apenas que elas “peidassem” após comer balas de anis e porque nada quis delas no que se refere ao trabalho no qual elas eram especialistas] e vigarista com as finanças de sua família) durante o regime monarquista; foi encarcerado porque acusado de “moderado” pelos jacobinos (pois era contra a pena de morte, contra a guilhotina); e também foi encarcerado, já no império napoleônico quando foi acusado de escritor pornográfico, de 1804 até o fim da sua vida (1814).

    Um dos grandes documentos de celebração da memória política de Jean-Paul Marat foi escrito e lido por Sade (em 29 de setembro de 1793) quando ainda era comissário “jacobino” em Piques (na nota acima errei a data), refiro-me ao Discurso às Almas de Marat e de Le Pelletier, vistos como “mártires da liberdade”. Esse texto teve ampla divulgação na Convenção Nacional.

    Mais um detalhe, para concluir. Leio no livro de Olivier Coquard – Marat, o amigo do povo (Tradução de C. H. Silva, São Paulo, Scritta, 1996, p. 203), infelizmente é a única biografia de Marat que tenho em mãos, que eram muito comuns os erros tipográficos nos jornais que Marat publicava erros esses que lhe custavam grandes embaraços políticos porque muitas vezes trocavam-se nomes como o do Marquês de La Salle pelo do Marquês de Sade.

  12. Tomarei a liberdade de um intervalo no tema de Sade apenas para trazer um comentário menor e com propósito de mera indicação: em seu último livro “A esquerda que não teme dizer seu nome”, Vladimir Safatle aborda e defende a idéia de soberania popular dentro do cenário político atual. Interessante ver como uma idéia realmente pode dar certo no sentido de manter-se no campo da esquerda por séculos, nas diversas tendências, afinal estou aqui mencionando um autor mais bem ligado à social-democracia do que a qualquer corrente dita revolucionária ou de extrema-esquerda.

  13. O fato de os populares estarem estraçalhados no momento faz com que um texto sobre autonomia dê origem a um debate acadêmico (o termo é sempre usado pejorativamente) sobre a relação Sade-Marat.

    Por fim, mesmo quando a soberania popular é abordada os debatedores a abordam de forma meramente teórica, abstrata.

  14. Amanda, os “populares” estavam estraçalhados durante a revolução francesa, os “populares” sempre estão estraçalhados em qualquer momento do processo histórico capitalista; quis apenas sugerir que houve um “maratiano” radical (um dos poucos intelectuais que fez do seu exercício político público uma ação prática em defesa da autonomia, da soberania do poder popular, refiro-me a Sade, evidentemente) com uma trajetória política e intelectual distinta daquela que marcou Marat, mas que ainda assim não se esquivou com a sua obra e com sua trajetória de estar ao lado dos “populares estraçalhados” mostrando ao mundo como esses ainda poderiam ser mais “estraçalhados” se deixassem à solta a “raça de senhores” do poder absoluto sem qualquer controle institucional popular.

    Sade foi um intelectual libertário, Amanda, enfrentou como poucos enfrentaram (apenas Marat pode ser um equivalente histórico) a institucionalidade bestial do poder autocrático em todos os regimes que lhe foram contemporâneos. Quis apenas afirmar a atualidade de Marat e a atualidade de um contemporâneo seu, alguém que não foi assassinado pela revolução, mas que foi posto a ferros em inúmeras prisões e instituições psiquiátricas anunciando com a sua trajetória os sofrimentos que muitos intelectuais haveriam de passar sob os regimes totalitários no século XX. Sade morreu lucidíssimo dentro de um hospital psiquiátrico (em Charenton onde conviveu com um importante artista plástico da época – Hubert Robert e na tela “Germinal” pintada dentro do hospício a sombra mais corpulenta ali desenhada é a do próprio Sade), e enquanto lá esteve encenou várias peças com os internos do hospital (Peter Weiss retoma esse aspecto da lucidez política sadiana), fez da sua obra, do seu teatro, um permanente ensaio libertário sobre o indivíduo esmagado pelas institucionalidades políticas dos poderes discricionários.

    A trajetória de Sade é uma marca intelectual anticapitalista como poucas, o que entendo deste artigo do João Bernardo sobre a obra atualíssima de Marat (e da minha defesa, talvez despropositada, mas certamente muito mal escrita, do personagem Sade), é que além do controle popular dos poderes públicos estaria afirmada como fundamental a ação política do intelectual em permanente marca de intransigência frente à “autonomia” dos poderes instituídos das classes dominantes capitalistas, nesse sentido vejo as trajetórias de Marat e Sade como exemplos contundentes do que deveria ser efetivamente o trabalho intelectual neste nosso mundo sempre tão permanentemente estraçalhado.

  15. Os que pesquisam e publicam sobre Sade defendem suas teses em rituais de poder em que a plateia é proibia de participar, fazer perguntas, emitir opiniões, debater. Na frente, três ou quatro louvando o caráter “libertário” de Sade. Na plateia, um bando de servos que aceita a proibição de falarem, perguntarem durante uma defesa.

    Nem o Tragtenberg, que escreveu ácidas críticas, teve a coragem de fazer uma contestação prática e defender publicamente que todos os presentes deveriam ter direito de fala nas defesas. Só para dar um exemplo. Poderia também defender que os alunos deveriam ter poder de escolha na contratação de professores. Enfim, a distância entre a louvação teórica e a crítica prática.

    Ler que Sade era “libertário” me faz pensar que alguém apareça dizendo que o maníaco do parque era também libertário, que a Suzane Richtoffen era libertária. Eu daria risadas se a coisa não fosse mais séria. Um dia alguém tem que escrever um texto e levantar o debate sobre o quanto foi pernicioso, via anarquismo, hedonistas e artistas, a confusão entre vida militante e vida safada. Aqui forjaram para os jovens que a putaria é anticapitalista. Uma grande bobagem. A promiscuidade não ajuda em nada as lutas populares, é toda assimilada pelo mercado e, ao contrário, traz problemas inúmeros, dissolução de grupos, destruição de coletivos.

    Enfim, onde se luta junto não se deveria comer a carne. Mas os hedonistas e individualistas inveterados jamais colocarão o seu direito ao gozo irresponsável abaixo das responsabilidades morais e coletivas do militante. Mais um excremento universitário!

  16. Amanda, terminei de ler o seu comentário e senti a irresistível vontade de me levantar e dar-lhe continência, não o fiz porque não tenho cá comigo as botas lustradas (iguais àquelas das SS) para o devido estalo de calcanhares, e não ficaria bonito fazer-lhe continência de pés descalços.

    E coitado desse Sade hedonista que não “pegava” ninguém naquelas masmorras e hospícios que frequentou…

    Adoraria estar numa sala de aula como seu professor e passar uma manhã inteira, apenas uma manhã, a ler-lhe algumas dezenas de páginas da irresponsável literatura do “divino” Marquês, poderias falar, gritar, gemer e espernear à vontade, mas jamais conseguirias calar-me a leitura.

  17. Amanda,

    Entendo a oportunidade que achou para desabafar sobre os rituais da inquisição acadêmica fazendo a ligação com o tema do texto de João Bernardo, e ainda com uma crítica ao grande crítico da “delinquência acadêmica” que parece que escrevia mas não levantava a voz contra a falta de soberania popular nas defesas ou burocratismos acadêmicos… Aliás, não sei até que ponto a soberania do poder de escolha de professores pelos alunos seria “popular”, se esse problema se encontra na própria seleção de ingresso de alunos à universidade. Posso estar imaginando muita coisa, mas a ideia de Marat do controle sobre os representantes não caberia muito no seu exemplo, afinal em uma situação hipotética de defesa de tese sobre o “Sade libertário” os “da frente” não são representantes da “plateia” que fica calada, nem têm pretensão ou função de ser. Errou um pouco os personagens.

    Não entendi a problemática de se tratar da soberania popular de forma “ meramente teórica, abstrata”. A vantagem desse site é que o texto não basta por si só, pois os debates nos comentários são extremamente necessários ao próprio artigo e não são de pleno domínio de acadêmicos, mas de qualquer leitor. É uma experiência de construção da própria ideia do texto e depende da forma teórica também, caso contrário o Passa Palavra apenas colocaria o botãozinho de curtir à Facebook. Pelo que entendi – talvez seja errado – do que está aqui, não só os comentários dos debatedores se dão de forma teórica, mas o próprio Marat pensava a experiência prática dos “estraçalhados” de forma teórica. Chame-o de acadêmico.
    Você, de forma meramente teórica e abstrata, chegou a comparar Sade com maníaco do parque e Suzanne Von Richtoffen. Mais que de forma teórica e abstrata, de forma alarmista à maneira dos moralistas que detratavam Sade quando “Justine” se publicou clandestinamente: “as esposas vão trair seus maridos! As filhas vão engravidar! Os filhos serão sodomitas! O crime e o assassinato vão devorar a França!”. Que putaria é esse de que você fala? Comparar Sade às festinhas punk que você conheceu e ressentiu não faz sentido… E se ler os “120 Dias de Sodoma” verá um grande trecho de Durcet, e verá que a putaria literária de Sade ali faz uma crítica aos banqueiros e agiotas. Li isso com 16 anos e o esforço que precisei para entender foi o de abrir o livro para conhecer sua obra. Moralista mesmo, como João Bernardo apontou em Sade, mas não tão moralista como você nesse comentário sobre o terror da promiscuidade dissolvendo os coletivos anticapitalistas. Saiba que não só a promiscuidade é assimilada pelo mercado, mas as próprias lutas e coletivos. A questão aqui não é bem a destruição do capitalismo, muito menos a promiscuidade: é a soberania e controle populares sobre os representantes; a vigilância de delegados e até o conselho de se fazer uma arquitetura de assembleia onde o povo em peso pudesse cobrar e até colocar medo nos representantes. E também esclarecer os ignorantes.

    Trazido para o presente, esse tema não dá tanto espaço para culpa na promiscuidade ou no excremento acadêmico. Falo também de pseudo-libertários que à maneira fascista, ou à maneira jacobina ou a outra maneira tentam impor a disciplina férrea no mundo fechado dos coletivos e esquecem que o Estado, mesmo que considerado inimigo, abriga homens que deveriam estar sendo vigiados e controlados. Um dia alguém deveria escrever um texto não sobre “quanto foi pernicioso, via anarquismo, hedonistas e artistas, a confusão entre vida militante e vida safada”, mas sobre a perda de oportunidades de moralistas de plantão que falam o que não sabem e esquecem o papel da soberania popular mesmo se aproveitando do maior inimigo: o Estado… Até o safado do Sade se desesperaria com essa situação, não pela putaria, mas pela falta de foco.
    Em Goiás formou-se um grupo autônomo de professores estaduais em greve e poderia ter tido a oportunidade de se ocupar o prédio do sindicato pelego, não na tentativa revolucionária de se derrubar a estrutura sindical brasileira, mas de ao menos controlar os representantes ( «[…] para prevenir os caminhos secretos da corrupção, convém que os Mandantes [os eleitores] usem o direito que têm de revogar os poderes de um deputado que abandone constantemente os interesses da Pátria e de prosseguir a punição de um Deputado que lhes tenha faltado à palavra», trocando “mandantes” por sindicalizados, “deputado” por diretoria sindical e “Pátria” por trabalhadores). Não está sendo bem assim que a pressão sobre esses representantes está se dando, mas não é culpa da promiscuidade dos militantes, nem dos acadêmicos leitores de Marquês de Sade, mesmo porque a maioria desses trabalhadores são professoras religiosas,muitas tão moralistas como você e longe de serem pornográficas como Sade. Esse pequeno, e talvez descabido, exemplo de Goiás pode lembrar um pouco a angústia de Marat, “o Amigo do Povo”, que engendrava seus ideais da soberania popular, como uma forma de desejo de permanência de controle sobre os representantes (não no sentido sadeano, nem sádico, nem bondage) e não questão de moralidade do povo. Culpe apenas a promiscuidade nas lutas populares, gerando o Príncipe pelo descuido, e veja as “permanências das secções” jamais serem abolidas da República. Para mim, a atualidade deste artigo sobre Marat é a de fazer bastante sentido quanto à esquizofrenia da esquerda e dos movimentos sociais, não por culpa do Estado, mas por culpa de quem dá soco no escuro e deixa que o Estado, partidos e seus representantes façam o papel que permitimos: de se criarem gordinhos, como os quatro homens do castelo de Silling…

  18. Alguém pode me dizer o que foi a “section des Piques”? Eu sei que foi a mais radical de todas as seções revolucionárias, mas o que se fazia nela?
    Obrigada!

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