Não foram os clubes populares uma incipiente Nova Ordem da própria Sociedade? Por João Bernardo

Esta série de quatro artigos foi escrita e entregue ao Passa Palavra em meados de Dezembro de 2011, seis meses antes da publicação do manifesto Ponto Final.

De Montesquieu a Rousseau estabelecera-se firmemente a tradição de restringir o regime representativo às elites. Mas as elites passaram a ser definidas de outro modo, e em vez da hereditariedade da nobreza prevaleceu o acesso à propriedade. Nada mais natural, assim, do que as cidades gregas e romanas da época clássica servirem aos doutrinadores do novo sistema de Estado como inspiração e quadro de referência, pois nelas os escravos haviam sido excluídos da cidadania. No século XVIII já não havia escravos e estava difundido o assalariamento, mas Atenas, Esparta e Roma, citadas explicitamente para justificar a democracia, serviram na realidade para inspirar regimes censitários, onde só podiam ser eleitores e ser eleitas pessoas que dispusessem de rendimentos superiores a um dado nível, definido pelo imposto que pagavam.

a-1O início da Revolução Francesa é assinalado usualmente pelo assalto à prisão da Bastilha, em 14 de Julho de 1789, mas enquanto a plebe conquistava a liberdade nas ruas a nova elite legislava para anular essa liberdade. Cinco meses depois da tomada da Bastilha, a lei de 22 de Dezembro de 1789 dividiu os franceses em três categorias. Os cerca de três milhões de cidadãos passivos, desprovidos de propriedade, não tinham direito de voto. Os cidadãos activos, mais de quatro milhões, pagavam no mínimo uma contribuição directa igual ao valor local de três jornadas de trabalho, o que correspondia a de uma libra e meia a três libras; estes cidadãos activos reuniam-se em Assembleias Primárias para nomear as municipalidades e escolher os eleitores. Por cada cem cidadãos activos havia um eleitor, o que perfazia cerca de cinquenta mil no total, pagando uma contribuição correspondente ao valor local de dez jornadas de trabalho, ou seja, de cinco a dez libras. Reunidos nas Assembleias Eleitorais, os eleitores designavam os deputados, os juízes e os membros das administrações departamentais. Finalmente, os deputados, constituindo a Assembleia Legislativa, deviam ser proprietários fundiários e pagar uma contribuição mínima de um marco de prata, cerca de cinquenta e duas libras.

Segundo Sieyès, criador desta nomenclatura, os cidadãos activos eram «os verdadeiros accionistas da grande empresa social» [1], o que mostra como o enquadramento teórico do novo Estado buscava inspiração nas hierarquias do mundo económico. É sugestivo notar que a referência adoptada para a avaliação do montante do imposto, ou seja, o número de jornadas de trabalho possíveis de angariar, lembra a definição de valor feita pelo célebre economista Adam Smith. No capítulo V do Livro I de An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, a sua obra mais conhecida, Smith considerou que o valor de uma mercadoria seria determinado pela quantidade de trabalho que, directa ou indirectamente, o capitalista poderia futuramente assalariar mediante essa mercadoria. Note-se que nada é mais alheio à teoria do valor de Smith do que a ideia de defini-lo mediante o trabalho incorporado [2], como Marx viria mais tarde a fazer. Para Adam Smith duas mercadorias teriam o mesmo valor e, portanto, seriam equivalentes nas trocas, se ambas permitissem aos seus proprietários a aquisição de idênticas quantidades de trabalho, pressupondo-se a igual qualificação destes trabalhos. Ele avaliava a riqueza pela possibilidade de dominar o trabalho alheio, e esta concepção de valor correspondia às preocupações e aos interesses não de uma nobreza ociosa e de rentistas passivos, mas de patrões e empresários. À mesma inspiração obedeceu a definição proposta por Sieyès para o regime censitário.

a-9As camadas populares viram-se assim afastadas da participação política e os seus membros foram considerados cidadãos sob tutela, como que em menoridade. Nestas circunstâncias a iniciativa popular autónoma consistiu na criação de clubes de filiação não censitária, abertos a qualquer um. O primeiro, fundado em Fevereiro de 1790, em Paris, pelo professor primário Dansard, admitia literalmente qualquer pessoa, pois denominava-se Société Fraternelle des Patriotes de l’un et l’autre Sexe (Sociedade Fraternal dos Patriotas [3] de Ambos os Sexos). Mas foi o Clube dos Cordeliers, assim chamado por causa do convento onde se instalou, criado em Abril de 1790, que se colocou à cabeça do movimento e em Maio de 1791 as sociedades populares constituíram um comité central. Havia um mortal antagonismo entre os tipos de prática social prosseguidos pelos clubes populares e pela assembleia legislativa.

a-8É comum associar Thomas Carlyle à teoria dos heróis e a outras opiniões reaccionárias que tiveram curso durante o século XIX, mas na História da Revolução Francesa — que na minha opinião é uma das três obras-primas de toda a historiografia — foi ele quem melhor entendeu as teias sociais e as rupturas profundas. «O sansculottisme [4] desenvolve-se graças àquilo que faz morrer tudo o resto», escreveu Carlyle, que repetidamente cobriu com a pesada ironia do seu desprezo os constituintes e todos os que se dedicavam a inventar fórmulas de governo. «Porque aqui, tão inesperadamente, o velho Fanatismo regressa com novas e novíssimas vestes […] Chamemos-lhe o Fanatismo de “acabar com as fórmulas […]” O mundo das fórmulas, o mundo ordenado formalmente, como é todo o mundo habitável, — não pode deixar de ter um ódio mortal a esse Fanatismo […] O mundo das fórmulas tem de triunfar sobre ele ou, se não o conseguir, tem de morrer a execrá-lo [… … …] parece que uma indizível benção está ao alcance. É esta: que o Homem e a sua Vida deixem de assentar no vazio e numa Mentira, mas na solidez e em algum tipo de Verdade. […] O sansculottisme deitará fogo a muita coisa; mas o que é incombustível não há-de arder. Não tenham medo do sansculottisme […]» [5]. E Carlyle perguntou, ao terminar o capítulo onde descreveu o aparecimento dos clubes populares: «Sociedades como estas não serão uma incipiente Nova Ordem da própria Sociedade? [… … …] o clubismo não é a morte, mas antes uma organização nova, e vida a sair da morte […] Que o homem pode cooperar e estar em comunhão com o homem, reside aqui a sua força milagrosa» [6].

É no contexto deste antagonismo que deve entender-se a proibição das associações de trabalhadores. A lei d’Allarde, promulgada a 2 de Março de 1791, suprimiu as corporações e as manufacturas privilegiadas com monopólios exclusivos, prejudiciais à ascensão das novas camadas da burguesia, sem no entanto referir as coligações operárias. Quando, na Primavera desse ano, em Paris, trabalhadores da construção entraram em greve, pedindo aumentos salariais e reivindicando que o município fixasse um salário mínimo e impusesse aos patrões o seu cumprimento, as autoridades da capital, numa proclamação de 26 de Abril, assimilaram as associações de trabalhadores aos organismos corporativos, afirmando que, se uns estavam proibidos, as outras deviam estar também. Foi neste clima que a Assembleia aprovou, a 14 de Junho de 1791, a lei Le Chapelier. Ficava proibida a associação dos operários em defesa dos seus interesses, quer tomasse a forma de simples reuniões, quer da constituição de sociedades de auxílio mútuo, quer da organização de greves, e a 20 de Julho estas disposições tornaram-se extensivas ao mundo rural. Atacava-se o velho sistema corporativo e junto com ele as novas lutas operárias, pois ambos, nos dois extremos da história, pretendiam travar a liberdade de organização das empresas capitalistas. Enquanto a pletora de legislação constitucional vestia ao Estado uma verdadeira camisa de forças, a lei Le Chapelier dava ao patronato toda a latitude para organizar discricionariamente as empresas.

Porém, sendo incipientes e pouco concentradas as empresas capitalistas na França de então, o objectivo da lei Le Chapelier era abater a mesma auto-organização que fundamentava os clubes políticos. Escreveu Jean-Paul Marat, o mais lúcido dos revolucionários, em L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo) de 18 de Junho de 1791: «Tiraram à numerosíssima classe dos serventes e dos operários o direito de se reunir para deliberar devidamente sobre os seus interesses […] Nada mais queriam do que isolar os cidadãos e impedi-los de se ocupar em comum da coisa pública» [7].

a-6O antagonismo entre o carácter censitário da república e a abertura dos clubes populares foi um factor essencial nas lutas sociais. Após o massacre de 17 de Julho de 1791, quando as forças militares fizeram cinquenta mortos e centenas de feridos entre os sans culottes, iniciou-se uma vaga repressiva e duas medidas afiguram-se particularmente importantes. Por um lado, elevou-se o limiar definindo a entrada na categoria de eleitor, tendo a partir de então de se ser detentor de bens cujo valor equivaleria, consoante os casos, ao necessário para angariar cento e cinquenta, duzentas ou quatrocentas jornadas de trabalho. Por outro lado, fechou-se pelo menos o Clube dos Cordeliers. Para impor a passividade popular não bastava elevar os limiares censitários, era também necessário atacar a actividade dos clubes.

A finalidade da república censitária era impedir o acesso popular à vida política, mas para compreender este processo é decisivo considerar o movimento inverso. Os populares não procuraram pressionar a sua admissão como eleitores. Organizaram-se diferentemente, noutro plano, e fizeram-no mesmo quando as leis se democratizaram. Nas assembleias eleitorais reunidas a partir de 2 de Setembro de 1792, apesar de o direito de voto ter sido concedido aos cidadãos antes qualificados como passivos, as abstenções foram muito numerosas. Ao mesmo tempo, porém, aumentou a actividade nos clubes e nas secções parisienses, que proliferaram depois de 10 de Agosto de 1792, data em que os sans culottes tomaram de assalto o palácio das Tuileries, onde estava sediado o poder executivo.

A revolução alternou de então em diante entre duas situações. Ou se alargava o acesso ao Estado, mas as camadas populares davam vida aos seus clubes próprios e não ao aparelho oficial de poder; ou se limitava o acesso ao Estado e eram simultaneamente perseguidos os clubes populares. A constituição democrática votada em Junho de 1793, que previa a eleição da Assembleia legislativa por sufrágio universal directo, foi de facto suspensa logo em Agosto, graças às pressões jacobinas, e em Outubro a Convenção decidiu formalmente que, enquanto a guerra durasse, a Constituição não seria posta em vigor. Para Robespierre e os seus seguidores a situação de guerra contra o inimigo externo devia impor, internamente, um regime de excepção. Mas como não era na esfera constitucional que se desenvolvia a actividade popular, inevitavelmente se tornou necessário perseguir e desorganizar os clubes.

Situados à esquerda dos jacobinos, os enragés [8] pretendiam levar a revolução também para o campo das relações económicas, e a prisão das suas principais figuras, em Setembro de 1793, é um sintoma de um ataque lançado muito mais fundo, contra as próprias organizações populares. Nesse mesmo mês a Convenção suprimiu a permanência das assembleias de secção, mas a curto prazo a medida reforçou a actividade dos clubes, para onde afluíram as pessoas e as iniciativas excluídas das secções. Multiplicaram-se assim em Paris as sociedades populares, que no princípio de Outubro deram novamente forma a um Comité Central, com o objectivo de coordenar a acção das sociedades, não só na capital, mas em todo o país. Também na província as organizações populares pareciam ser uma base sólida da revolução e exercer sobre os municípios e o governo pressões eficazes. No começo de Outubro reuniram-se em congresso sociedades populares do sul e em Novembro e Dezembro organizaram-se no norte reuniões centrais.

a-4Razão suplementar para que os jacobinos continuassem a sua campanha. No final de Outubro de 1793 dissolveram a Société des Femmes Républicaines Révolutionnaires (Sociedade das Mulheres Republicanas Revolucionárias) e proibiram os restantes clubes e sociedades femininos. Afastadas do voto nas instituições oficiais, as mulheres apenas nos clubes podiam dar livre curso à sua iniciativa e muitas vezes se revelaram mais audaciosas do que os homens. Talvez por isto, e contando com o apoio de muitos radicais a quem não agradara a entrada da revolução pelas portas de casa adentro, os jacobinos ensaiaram contra a autonomia organizativa feminina o mesmo tipo de medidas que haveriam rapidamente de generalizar. A promulgação em 4 de Dezembro de 1793 do decreto constitutivo do governo revolucionário, ao mesmo tempo que reforçou a centralização administrativa, procurou atingir as organizações exteriores ao aparelho de Estado, proibindo às sociedades populares a formação de assembleias centrais ou mesmo a convocação de reuniões englobando várias localidades. Finalmente, em Paris, de Abril a Junho de 1794, foram dissolvidas as sociedades populares de secção, que subsistiram fora da capital, mas com influência e capacidade de acção cada vez mais reduzidas. E em 16 de Outubro, dois meses e meio após a queda de Robespierre, a Convenção proibiu até que as sociedades trocassem qualquer correspondência. Quando, em 23 de Agosto do ano seguinte, se decretou a supressão de todos os clubes e sociedades populares, estava a pôr-se o ponto final num processo cujas etapas principais se haviam devido ao jacobinismo radical.

a-3Ao mesmo tempo prosseguia a repressão no âmbito económico. O rápido desenvolvimento da indústria de guerra proletarizou numerosos artesãos antes independentes e a criação de vastas manufacturas destinadas a abastecer os exércitos suscitou importantes pólos de concentração operária. A nova classe trabalhadora encontrava-se assim reforçada e as greves, de que se conhecem em Paris alguns exemplos isolados entre Março e Junho de 1793, puderam alguns meses mais tarde alastrar consideravelmente. Em 1 de Dezembro desse ano a Comissão para as Subsistências difundiu uma circular considerando excessivos os salários reivindicados e no dia 12, em resposta à agitação que grassava numa das manufacturas de armas da capital, o Comité de Salvação Pública, além de decretar medidas que repetiam as incluídas na lei Le Chapelier, estipulou que apenas com expressa autorização das respectivas administrações podiam os operários de diferentes oficinas de uma mesma manufactura comunicar entre si, até para questões decorrentes do processo de produção. Vemos que desde a génese do capitalismo a verticalidade e a estrita hierarquização de relações no interior das empresas se têm mantido como um dos princípios fundamentais de organização social.

Mas apesar dos decretos e das prisões, naquele final de 1793 alastraram os distúrbios e prosseguiu o movimento grevista em várias oficinas de material de guerra da capital; e na província, em Novembro e Dezembro, ocorreu uma vaga de greves em manufacturas de papel. De então até Julho de 1794 cresceram as coligações operárias e as greves em apoio de reivindicações salariais e, do lado contrário, tornaram-se mais severos os decretos repressivos. A partir de Março e Abril de 1794, tanto em Paris como no resto da França, a subida acentuada dos preços de bens de consumo corrente estimulou a agitação em numerosos ramos profissionais, incluindo os assalariados agrícolas, todos eles reivindicando o aumento das remunerações. Porém, o movimento foi brutalmente reprimido, sob o pretexto da lei Le Chapelier, e a 23 de Julho foi imposto um novo limite máximo aos salários em vigor na capital, que acarretou uma baixa das remunerações por vezes muito considerável. Medidas do mesmo género haviam já sido tomadas nos meses anteriores com âmbito restrito, contra os operários de certos ramos profissionais ou os jornaleiros de alguns distritos rurais. O movimento grevista atingiu o auge em Julho de 1794 e a partir de então revelaram-se eficazes as disposições tomadas para travar a agitação e controlar a força de trabalho.

Se compararmos a cronologia destes acontecimentos com a da dissolução dos clubes populares constatamos que, desarticuladas as instituições em que assentara a sua autonomia política e social, os trabalhadores foram incapazes de continuar a relacionar-se autonomamente no processo produtivo e de enfrentar aí a disciplina capitalista.

Notas

[1] Citado em Albert Soboul, La Révolution française, [Paris]: Gallimard, 1964, vol I, pág. 210.

[2] No capítulo VI do Livro 1 Adam Smith especificou que o valor de uma mercadoria não corresponderia somente ao trabalho que ela custou a produzir, devendo partes adicionais corresponder ao lucro esperado pelo capitalista e à renda que cabe ao proprietário fundiário. Era a este conjunto de componentes que, para Adam Smith, equivalia o valor de uma mercadoria.

[3] Note-se que desde então e durante quase um século, em francês patriota significava liberal, praticamente um republicano.

[4] As culottes eram calças justas e curtas, até ao joelho (veja aqui), que constituíam uma parte indispensável do vestuário dos ricos. A plebe e o povo trabalhador usavam outro tipo de calças, largas e mais compridas, de pior tecido também (veja aqui), por isso eram chamados sans culottes, ou seja, sem culottes.

[5] Thomas Carlyle, History of the French Revolution, New York: Grosset & Dunlap, s. d., vol. II, pág. 79 e vol. I, págs. 174-175.

[6] Thomas Carlyle, op. cit., vol. I, págs. 268 e 330.

[7] Citado em Albert Soboul, op. cit., vol. I, págs. 252-253.

[8] A palavra significa furiosos, enraivecidos, mas com uma conotação de excessivo ou mesmo fanático.

A série Dilemas da liberdade tem quatro artigos:
1) Uma incipiente nova ordem da sociedade
2) Os banquetes fraternais
3) Marat: a soberania é o uso da soberania
4) Marat: nomear um ditador detido sob vigilância

7 COMENTÁRIOS

  1. João Bernardo, levando adiante a reflexão deste brilhante texto sobre os impasses entre a “democratização” da sociedade “pelo alto” e a tentativa de as classes subalternas de estender a democratização a outras esferas da sociedade, sobretudo a econômica, coloco a seguinte questão: nas sociedades em que se procederam as chamadas “revoluções burguesas”, a referida “democratização” tinha em vista garantir a participação dos proprietários, que não tinham tinham ascendência aristocrática, mas que eram oriundos do chamado Terceiro Estado, no sistema de poder. Diante disso, podemos concluir que o motor do grande movimento democrático de massas, que foi a Revolução Francesa, foi a necessidade de a burguesia conquistar representação política no seio de uma sociedade até então marcadamente aristocrática, necessidade esta que ativou forças sociais cujo objetivo, desde o início, era manter na passividade. Porém, nas condições atuais, em que a burguesia têm assegurada sua representação no sistema de poder; em que os trabalhadores têm suas formas de organização tradicionais legalizadas e incorporadas a esse sistema de poder; em que as organizações autônomas do proletariado, e suas isoladas manifestações de radicalidade, tem sofrido inúmeras derrotas… nestas condições, qual seria o cerne de novos grandes movimentos de transformação social? Um movimento desta qualidade, a seu ver, começaria privilegiadamente no interior das empresas? Ou teria sua expressão inicial em grandes movimentos de massa (como, por exemplo, o Occupy Wall Street) cujo cerne é o combate à influência das grandes corporações no atual sistema de poder? A luta seria, diretamente, pelo socialismo, isto é, pela apropriação, por parte do proletariado, do processo produtivo? Ou uma luta pela “democratização” da sociedade, entendida como uma confrontação ao crescente poder das corporações, à crescente “privatização” do poder político, antes atribuído ao Estado, no sentido tradicional do termo?

  2. Nos blogs feministas, o fechamento dos clubes femininos não é posto no quadro do fechamento geral dos clubes populares. Para elas, houve somente uma guinada violenta dos homens contra as mulheres.

    Segue um trecho:

    “Ela morre guilhotinada em Paris, no dia 3 de novembro de 1793. Antes ela afirmaria: “A mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela deve ter igualmente o direito de subir à tribuna.” Nesse ano, as associações de mulheres são proibidas na França”

    o que foi uma ação contra a organização do povo é transformado pela historiografia vulgar feminista em ação somente contra a organização das mulheres. E esses textos são muito difundidos. É a novilíngua!

  3. Fagner Enrique,
    Uma revolução nunca resulta da acção de uma única classe social ou de um único grupo social, homegeneamente considerados. Resulta da acção de fracções de classes sociais, ainda que, percentualmente, uma dessas classes possa inclinar-se mais para um lado ou para o outro. Por isso as revoluções são sempre processos contraditórios e no seu interior digladiam-se correntes antagónicas. Daí o dilemas no título desta série de artigos. Você apresenta para as perspectivas revolucionárias contemporâneas uma dicotomia que corresponde àquela que é colocada pela maior parte das pessoas, e é aí que reside a meu ver o problema principal. Enquanto as lutas se restringirem ao interior das empresas, o risco de se limitarem aos interesses imediatos estará sempre presente. Mas o risco não é menor quando se projecta a ocupação de praças públicas, reclamando contra o poder político exercido pelas grandes empresas e esquecendo deliberadamente a exploração económica. Aliás, o risco é mais grave ainda, porque geralmente essas ocupações de ruas e praças por massas de indignados têm como alvo o capital financeiro, considerado especulativo e parasitário, responsável por uma economia de casino, por oposição a outro capital, considerado produtivo e responsável. Ora, esta divisão do capital em especulativo e produtivo surgiu no começo do século XX e esteve estreitamente ligada à génese e ao desenvolvimento do fascismo. Se você ou mais alguém estiver interessado em aprofundar esta questão, aconselho as obras de Zeev Sternhell. Quando vejo este tipo de movimentos ser animado por pessoas que, ao mesmo tempo, estão muito próximas de uma ecologia fascizante, quando não mesmo fascista, receio que o futuro imediato seja sombrio. Neste momento, em Portugal, um grupo de indignados faz circular um projecto de manifesto preparatório de uma manifestação a convocar para um dos próximos meses em que escreve «a corrupção grassa enquanto as pequenas e médias empresas definham sobre os lucros e chantagens das grandes corporações e bancos», eu pergunto-me se eles alguma vez terão lido os capítulos económicos do Mein Kampf. Se não, seria bom que lessem, para as opções ficarem claras.
    Amanda,
    Nessa mesma perspectiva, é interessante verificar que Charlotte Corday, a assassina de Marat, é glorificada por várias feministas. Mas escuso de epilogar a este respeito porque há meia dúzia de anos publiquei na revista Novos Rumos o artigo «Considerações inoportunas e politicamente incorretas sobre uma quesão dos nossos dias», que se encontra em vários lugares na internet. Lá digo o que penso acerca dessa gente.

  4. Joao,

    Eu ia mesmo citar a glorificacao da assassina de Marat, mas deixei a bola para outros chutarem.

    O seu artigo tambem pecou pelo titulo inadequado. Deveria se chamar algo como: os aspectos fascistas do feminismo de gestoras, que eu chamo feminismo das patroas.

    O fascismo que.se gesta hoje e verde, antitabagista, feminista e cria seus exercitos nos fundos das academias, centros de condicionamento fisico.

  5. Prezado João Bernardo
    Gostaria de saber quais são, na sua opinião, além da História da Revolução Francesa, as outras duas obras-primas de toda a historiografia? (Sei que apareço aqui com atraso, mas a curiosidade, somada à admiração, me impele a lhe perguntar isto.)
    Abraço,
    Paulo Luiz

  6. Paulo Luiz,
    Deixei a frase em suspenso para ver se algum leitor me fazia a pergunta, e depois de todo este tempo foi você o primeiro, o que lhe agradeço. No artigo mencionei a obra de Carlyle, para a qual só encontro um paralelo, tanto na majestosa construção como no gesto soberano com que selecciona os factos ilustrativos da estrutura — os filmes do cineasta Luchino Visconti. As outras duas obras são:
    – Marc Bloch, Les Caractères Originaux de l’Histoire Rurale Française, (2ª ed. póstuma, org. por Robert Marie Dauvergne), 2 vols., Paris: Armand Colin, 1952-1956.
    – Jean Pierre Faye, Langages Totalitaires. Critique de la Raison – l’Économie – Narrative (ed. corr.), Paris: Hermann, 1980.
    Já agora, uma explicação. Considero Marc Bloch como um enorme historiador por duas razões. Porque conseguia somar a imaginação ao rigor no estabelecimento dos factos. E porque usou para o estudo do regime senhorial as descobertas feitas pela antropologia no estudo de sociedades de tradição não europeia, o que ampliou muito as perspectivas. Nos termos de Marc Bloch não pode haver história que não seja história comparada, exactamente o contrário do que sucede hoje com os multiculturalistas, que se esforçam por singularizar cada fenómeno e destroem assim qualquer tecido conjunto. Além disso, Bloch foi um homem corajoso, bastante alheio à política durante uma Terceira República que era a República dos Professores, para empregar a expressão de Thibaudet, mas militou na política quando isso se tornou necessário e perigoso, e pagou com a vida. Neste plano só encontro o nome de outro historiador, Emanuel Ringelblum.
    Passando ao terceiro historiador evocado, Jean Pierre Faye propôs a tese de que a história é inseparável das formas da sua narração e foi com este modelo que pesquisou e escreveu sobre a formação do pensamento de extrema-direita alemão durante a República de Weimar. Invocando Roman Jakobson, que considerava que um mesmo processo de dupla articulação presidira tanto ao aparecimento da linguagem como à produção de utensílios, Faye considera que a linguagem não flutua no plano das ideias, mas constitui a própria articulação das relações sociais, tanto reais como imaginárias. Para Faye as relações sociais de produção e de troca devem ser definidas como relações de linguagem, estabelecidas na forma activa da narração. Aquele livro renovou inteiramente a forma como passei a abordar o estudo da cultura.

  7. Caro João Bernado
    Obrigado. Pensava que uma delas seria “O Outono da Idade Média” de Huizinga e passou-me pela cabeça Perry Anderson também. Gostei no entanto da indicação, pois de Marc Bloch só conheço a Apologia, e nunca li nada de JP Faye. Vou atrás.
    Abraço,
    Paulo Luiz

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here