Durante o Terceiro Reich não houve uma Alemanha. Houve duas. Por João Bernardo

Num artigo publicado no Passa Palavra em Junho deste ano (veja aqui) afirmei que estava farto de escrever em vão, disse boa noite a todos e fechei a porta. E se estava farto então mais ainda estou agora. Mas as pessoas não são feitas de gelo e há momentos em que a indignação supera as decisões mais sérias e nos leva a cometer erros. Pelos comentários que prevejo, esta série de artigos é um desses erros.

Perante a crise na periferia meridional da zona euro o nacionalismo torna-se cada vez mais estridente e o Passa Palavra tem-se contado entre as poucas vozes que em Portugal apontam os perigos decorrentes de um abandono do euro e de um aparecimento do fascismo à esquerda. Se as identidades nacionais sempre se construíram sobre mitos, isso sucede mais ainda hoje, numa época em que a transnacionalização da economia reduz o nacionalismo a um delírio ideológico sem base prática. Ora, os mitos nacionalistas têm uma face dupla, tanto servem para identificar o nós como o outro, e entre estes mitos tem ressurgido ultimamente o da culpabilidade alemã. Em resumo trata-se de dizer que, se os alemães foram culpados do nazismo e do genocídio dos judeus, não espanta que sejam agora culpados das medidas de recessão económica impostas aos países da periferia meridional da zona euro. Mesmo alguém como o prof. Boaventura Sousa Santos, que pelo menos deveria ter alguns conhecimentos históricos, ousou escrever em meados do ano passado que «podemos ser preguiçosos, podemos não saber como nos governar, mas não matámos 6 milhões de judeus e ciganos. Tenho pena de o dizer, mas tenho de o dizer. O nacionalismo puxa o nacionalismo» (veja aqui). Mas o nacionalismo, prof. Boaventura, puxa só quem quer ser puxado.

Se se tratasse apenas de um prof., pouca importância teria. Mas o problema é que uma parte substancial e cada vez maior da população portuguesa e, o que é muito mais grave, da esquerda portuguesa pensa o mesmo. Circulam imagens identificando com o nazismo a posição detida pela economia alemã na zona euro e chegaram ao ponto de querer agora levar de novo à cena a histeria do ultimatum. Não importa que enquanto raciocínio de causa a efeito seja uma falácia que deveria fazer corar de vergonha quem invoca aquele argumento, só que a vergonha lhes falta. A questão fundamental é que o ponto de partida é falso. Não houve uma entidade chamada alemães que tivesse sido responsável pelo nazismo, com todas as suas consequências.

As duas Alemanhas

Durante o Terceiro Reich não houve uma Alemanha. Houve duas.

A segunda Alemanha começou por ser posta em enorme quantidade nos campos de concentração ou pressionada ao exílio. E mesmo nas condições concentracionárias, apesar das dificuldades decorrentes da vigilância permanente, do trabalho excessivo, da alimentação insuficiente, das punições físicas e da doença, nunca deixou de haver clandestinamente uma resistência organizada [1].

Mas os outros, os que haviam sido postos em liberdade ou não estavam presos, e que constituíam a enorme maioria da população, que fizeram eles, ou nada fizeram? Há historiadores suficientemente desonestos para procederem a uma selecção de fontes em que destacam apenas os muitos casos verdadeiros de colaboração espontânea de populares com a repressão nazi e com a perseguição aos judeus, escondendo tudo o mais, igualmente verdadeiro, que formou a segunda Alemanha.

«Sim, é verdade, temos o poder», declarou o Reichsleiter Robert Ley, chefe da Frente Alemã do Trabalho, em 1 de Maio de 1933, «mas ainda não temos a totalidade da nação, ainda não vos temos a vós, trabalhadores, cem por cento, e sois vós que nós queremos» [2]. Ter-se-ia realizado esta aspiração? O facto de a circulação dos jornais no Terceiro Reich ter diminuído 10% entre 1933 e 1939 parece indicar o desinteresse por informações que se confundiam com propaganda [3] e, referindo-se às notícias oficiosas sobre a guerra, um relatório confidencial do Sicherheitsdienst, Serviço de Segurança dos SS, de 7 de Outubro de 1940, assinalou que «um número extraordinariamente grande de pessoas […] queixou-se da “mesmice” dos boletins diários» [4]. Esta atitude repercutiu-se noutras áreas. Os boletins mensais publicados pela direcção do Partido Social-Democrata no exílio a partir de informações enviadas do Reich apresentam a imagem de um crescente desinteresse da população sob o verniz da conformidade com as manifestações de massa oficiais [5]. «As pessoas tendem a refugiar-se do nazismo dentro delas próprias», afirmou o boletim de Junho de 1936 [6], e os acontecimentos posteriores mostraram que o retrato correspondia à realidade.

Os historiadores insistem com frequência no reduzido número de pessoas empenhadas nas várias correntes de resistência no Terceiro Reich, embora a organização comunista clandestina não pareça tão diminuta ao sabermos da existência de oitenta e nove células de empresa nas fábricas de Berlim em Junho de 1941 [7]. É indesmentível, contudo, a eficácia da repressão, conseguindo deixar inoperantes as organizações que não exterminava [8]. Por isso o que me importa aqui é a contestação inorganizada, e se é possível admitir que o descontentamento profundo não foi além de uma minoria, há suficientes indícios da sua disseminação.

Hitler nunca tivera grandes ilusões a este respeito e numa carta endereçada em Dezembro de 1932 a um dos generais que o apoiava, chefe de estado-maior do comandante do distrito militar da Prússia Oriental, escreveu que «no caso de a Alemanha se ver obrigada a entrar em guerra, mais de metade da população é constituída por pessoas que ou são mais ou menos pacifistas ou são conscientemente hostis à defesa e às questões militares» [9]. Os campos de concentração resolveram só uma pequena parte do problema. Em Setembro de 1938, por ocasião da conferência de Munique, Hitler verificou com preocupação que os alemães se mostravam satisfeitos pelo facto de a paz ter sido prolongada [10]. Aliás, o secretário de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, von Weizsäcker, anotou no seu diário que um dos factores que teria levado Hitler a aceitar o acordo fora a visível falta de entusiasmo da população pela guerra, uma observação confirmada por Goebbels [11]. Sem hesitar nas palavras, um relatório emanado de várias chefias militares em 1 de Outubro de 1938 indicou: «Não há entusiasmo por complicações militares derivadas da questão dos alemães dos Sudetas. As incertezas da situação política estão a deixar a população deprimida. Ninguém quer admitir a possibilidade de uma guerra contra a Inglaterra e a França. Não é de modo nenhum adequada a educação do conjunto da nação para os encargos exigidos por uma guerra total, com todo o tipo de dificuldades que acarreta» [12]. O mesmo reconheceu Hitler numa alocução proferida no mês seguinte perante quatrocentos representantes da imprensa do Reich, quando disse que temia que os numerosos discursos em prol da paz que desde 1933 se vira obrigado a fazer por motivos de política externa tivessem contribuído para minar o espírito bélico dos alemães [13]. No final de Agosto de 1939, a poucos dias da invasão da Polónia, quando já ninguém duvidava de que o conflito militar era iminente, Albert Speer observou que o aparecimento de Hitler em Munique e em Berlim deixara a população apática, em vez de o saudarem com o entusiasmo habitual [14]. E o presidente da Polícia de Berlim sabia sem dúvida do que falava quando, em Maio de 1940, relatou confidencialmente que só 35% a 40% da população da cidade era favorável à guerra [15].

Nem o começo da guerra fora suficiente para disciplinar completamente os trabalhadores. Com efeito, os salários haviam sido diminuídos pelo decreto de 4 de Setembro de 1939, que instaurou a economia de guerra, mas o descontentamento dos trabalhadores foi tão grande, aumentando o absentismo e baixando a produtividade, que o governo se viu obrigado a recuar e anulou as medidas mais severas [16]. Não parece, contudo, que o problema ficasse resolvido e numa carta enviada em 21 de Outubro de 1941 ao marechal Keitel, chefe do Alto Comando das Forças Armadas, o ministro da Economia, Funk, afirmou: «Os Gauleiters comunicam que, devido à escassez de bens, a boa vontade dos empregados e o seu entusiasmo no trabalho, especialmente na indústria de armamentos, começou a diminuir» [17]. O resultado mede-se nas condenações por violação da disciplina do trabalho, que haviam sido 74 em 1939 e chegaram a 29.634 na primeira metade de 1943 [18].

Outro aspecto desta insatisfação foram os protestos públicos relacionados com a distribuição de senhas de racionamento, como sucedeu nalgumas cidades em Outubro de 1943, com manifestações de várias centenas de mulheres [19]. É sintomático de uma realidade profunda o facto de uma obra de propaganda nazi publicada durante a guerra mundial ter considerado que «as erróneas ideias da diferença de classes e da luta entre elas» estavam «enraizadas no povo» [20]. «Muitos operários estão uma vez mais a começar a pensar em termos de classes», assinalou em 29 de Novembro de 1943 um relatório do Serviço de Segurança dos SS, «e falam de classes que os “exploram”» [21].

Neste contexto, em Março e Abril de 1943 uma série de relatórios do Partido Nacional-Socialista indicou que as pessoas haviam perdido o medo de criticar abertamente o Führer e até de o atacar em público de maneira insultuosa [22]; e vários relatórios do Serviço de Segurança dos SS referentes a Julho de 1943 assinalaram que as pessoas já não tinham receio de censurar publicamente o Partido Nacional-Socialista e o regime e que havia aumentado o número de piadas maldosas tendo o Führer como alvo [23]. Em Junho, Julho e Agosto desse ano, relatórios do Serviço de Segurança dos SS informaram também que o número de saudações com o braço estendido declinara nos últimos meses e que muitos membros do Partido Nacional-Socialista haviam deixado de usar a insígnia; e um relatório de 17 de Junho especificou que a saudação com o braço estendido se tornara muito rara nas cidades atingidas por bombardeamentos aéreos [24]. Idênticas observações foram feitas por uma autoridade judiciária num relatório de 30 de Março de 1944, indicando uma diminuição do número de pessoas que usava o emblema do Partido Nacional-Socialista ou saudava com o braço esticado [25]. Mais drasticamente, há notícia de que por ocasião dos grandes bombardeamentos aéreos sofridos pela população de Hamburgo em Julho e Agosto de 1943 houve quem arrancasse o emblema a membros do Partido Nacional-Socialista, chamando-lhes assassinos, perante a passividade da polícia [26].

Igualmente elucidativo é o reverso da medalha, porque o maior número de condenações à morte, excluindo as executadas nos campos de concentração, foi registado em Setembro de 1943 [27]. Aliás, segundo dados fornecidos em 1944 pelo ministro da Justiça, essas condenações à morte aumentaram 40% de 1940 para 1941, 183% de 1941 para 1942 e 46% de 1942 para 1943. Isto significa que em 1943 as condenações à morte fora do sistema concentracionário foram 476% superiores ao que haviam sido em 1940, passando de 926 para 5.336 [28].

É certo que, apesar de tudo isto, um relatório do Serviço de Segurança dos SS, datado de 29 de Novembro de 1943, pretendeu que «a confiança no Führer permanece praticamente inabalada» [29], mas em 8 de Agosto do ano seguinte o tom já foi outro e um relatório do mesmo Serviço de Segurança considerou que «a maior parte dos nossos compatriotas, mesmo daqueles cuja convicção foi até agora inabalável, perdeu toda a confiança no Führer» [30].

Quando vejo Ernst von Salomon descrever as manifestações de um antinazismo generalizado entre vastas massas populares durante o Terceiro Reich [31], poderia admitir que se tratasse, talvez não de invenção, mas pelo menos de uma escolha abusiva de casos destinada a justificar a sua própria atitude, já que ele pertencia a uma das correntes da extrema-direita que se manteve alheada do nacional-socialismo. Mas o diário do judeu Victor Klemperer, observador atento das reacções populares, dá exactamente a mesma ideia, e a este respeito é impossível duvidar do seu valor enquanto testemunho. Se, tudo somado, não foram frequentes as ocasiões em que anónimos ou pessoas que Klemperer mal conhecia lhe expressaram abertamente opiniões contrárias ao nacional-socialismo, vezes sem conta encontramos nas páginas do diário o contraste entre as atitudes exteriores de conformismo, as saudações de braço estendido, os retratos do Führer e de outros dignitários ornamentando paredes e mobiliário, e as opiniões segredadas de descrença no regime e de desejo que o Reich perdesse a guerra ou os discretos gestos de simpatia para com os judeus.

Não só para com os judeus, porque é sintomática a subida do número de condenações por relacionamento ilegal com prisioneiros de guerra, ou seja, por tratar humanamente eslavos oficialmente considerados infra-humanos, que passaram de 1.909 em 1940 para 5.300 no primeiro semestre de 1943 [32].

Esses comportamentos subterrâneos, essa contestação informal e difusa, podiam ir mais longe. A aversão suscitada pelo programa de extermínio dos doentes mentais e de outros doentes incuráveis deu lugar a pequenas manifestações de protesto, quando as equipas de eutanásia íam buscar as vítimas às clínicas, e mais notável ainda é o facto de em 1941 o próprio Hitler ter sido alvo de uma manifestação hostil, quando o comboio [trem] em que viajava se cruzou numa estação da Baviera com um transporte de crianças deficientes mentais destinadas a ser liquidadas [33]. E seria realmente louco, ou utilizar-se-ia dos privilégios da loucura, aquele internado num manicómio de Hamburgo que gritava com frequência «Heil Moskau», «Viva Moscovo» [34]?

Outras manifestações eram mais discretas. Quando as SA organizaram em 1933 piquetes à porta das lojas de judeus, as novas autoridades do Reich mostraram-se descontentes com a apatia da população e com o facto de algumas pessoas terem desprezado o boicote e insistido em fazer as compras nos lugares habituais [35]. Poderia pensar-se que a propaganda orquestrada tivesse fanatizado a opinião pública nos anos seguintes, mas em 1935 os informadores de que o Partido Social-Democrata dispunha na Alemanha relataram casos em que a população se indignou com as truculências anti-semitas [36], e em Fevereiro de 1936 um relatório da polícia da Renânia registou que «infelizmente, muitas pessoas continuam a considerar o Judeu como um amigo, que ainda não querem abandonar» [37]. Do mesmo modo, em Agosto de 1937 a Gestapo de Munique informou num relatório que «uma elevada percentagem de camponeses continua a ter relações de negócios com os judeus» e lastimou «a atitude do campesinato, que mostra uma completa falta de consciência racial» [38]. Igualmente significativo é o facto de dois relatórios diplomáticos, um britânico e o outro norte-americano, acerca do pogrom organizado na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938 indicarem uma desaprovação generalizada, ainda que discreta, por parte da população de várias grandes cidades [39].

Fica assim mais fácil de entender que numa rua de Dresden, no final de 1941, uma pessoa de certa distinção tivesse cumprimentado uma judia portadora da estrela amarela, explicando-lhe: «Não, eu não a conheço, mas a partir de agora irá ser cumprimentada com frequência. Somos um grupo “que saúda a estrela judaica”» [40]. Embora as leis estipulassem a punição de qualquer alemão que mantivesse contactos amigáveis com judeus, o diário de Klemperer menciona muitos episódios como aquele, e se por vezes ignoramos o meio social em que ocorriam [41], noutros casos vemos que a iniciativa se devia a pessoas de estatuto elevado [42], sendo mais numerosos ainda os populares de Dresden, tanto operários como donos de pequenas lojas ou mesmo modestos funcionários do Estado, a manifestarem respeito e simpatia por judeus que na maior parte dos casos não conheciam pessoalmente [43]. Outros judeus, noutras cidades do Reich, relataram experiências semelhantes [44], e quantos mais casos teriam ocorrido sem deixarem rasto na documentação?

Em 24 de Outubro de 1941 o chefe da Gestapo queixou-se numa circular enviada aos seus subordinados: «Recentemente, temos tido repetidamente conhecimento de que pessoas de sangue germânico continuam a manter relações amigáveis com judeus e apresentam-se com eles em público de modo ostensivo» [45]. Não foi abruptamente que nos últimos meses da guerra a catástrofe surgiu aos olhos de muitos alemães como uma punição pelo tratamento que as autoridades infligiam aos judeus [46]. Em Novembro de 1944 um relatório confidencial do Serviço de Segurança dos SS relatou «a opinião de muitas pessoas de todas as classes da população» que, ao lerem as notícias sobre as atrocidades cometidas pelo Exército Vermelho na Prússia Oriental, replicavam: «E não assassinámos nós milhares de judeus? Não contaram os soldados tantas vezes que os judeus na Polónia tiveram que cavar as suas próprias sepulturas? E como é que tratámos os judeus no campo de concentração da Alsácia? Os judeus também são seres humanos. Ao fazermos tudo isto, mostrámos ao inimigo o que ele nos pode fazer a nós, se ganhar» [47].

De maneira igualmente espontânea, entre os jovens alemães que se tinham afastado do sistema escolar, escapando à filiação na Juventude Hitleriana [48], e que trabalhavam em profissões não qualificadas e com alta rotatividade no emprego, começaram a difundir-se formas próprias de organização alheias ao regime. Embora já existissem antes de Setembro de 1939, estes grupos ilegais de juventude desenvolveram-se muito durante a guerra. Um relatório emanado do Ministério da Justiça no início de 1944 pretendeu filiá-los no antigo movimento das ligas juvenis. Com efeito, apesar de o regime nacional-socialista ter dissolvido algumas destas ligas e de a Juventude Hitleriana ter procurado absorver as restantes, outras resistiram e reorganizaram-se secretamente, a ponto de o Führer da Juventude do Reich ter criado em 1937 um departamento destinado a combatê-las. O referido relatório considerou também que estes grupos manifestavam por vezes influências marxistas e bolchevistas. É certo que no Terceiro Reich esses termos eram demasiado genéricos para que lhes possamos atribuir significados precisos, mas o relatório acrescentou que os chefes «são oriundos de ligas anteriores ou de partidos políticos» [49]. No plano prático, tratava-se de uma espécie de gangs de rua cuja actuação, além de incluir roubos e assaltos, tinha implicações claramente políticas, pois imprimiam panfletos subversivos, pintavam frases antinazis nas paredes, cantavam canções hostis ao regime e espancavam membros da Juventude Hitleriana, originários de outras camadas sociais, inclusivamente dos estratos mais qualificados da classe trabalhadora. E como havia um movimento de deslocação de jovens das cidades expostas aos bombardeamentos aéreos em direcção a outras regiões, estes gangs puderam expandir-se geograficamente e adquirir proporções muito significativas. Durante a guerra houve casos em que eles agrediram membros do Partido Nacional-Socialista, ajudaram a esconder desertores e assaltaram depósitos de armas. O já mencionado relatório do Ministério da Justiça afirmou que em Wismar, no estado de Mecklenburg, os membros de um destes grupos tencionavam realizar ataques armados contra a polícia e, caso ocorresse uma revolução, se dispunham a subir às árvores e disparar daí sobre as Juventudes Hitlerianas. O facto de doze participantes nos gangs juvenis terem sido enforcados publicamente no final de 1944, como lição para os restantes, indica o grau de preocupação das autoridades.

Assim como uma parte da juventude das camadas populares escapava ao controlo nacional-socialista, também entre a elite havia quem fugisse ao comportamento desejado. Não obstante o sem número de privilégios de que gozava a juventude das classes dominantes, atingiu dimensões inquietantes nesta esfera social a moda de imitar o vestuário e as maneiras dos ingleses de bom-tom. E se o relatório de 1944 do Ministério da Justiça indicou que os gangs juvenis de rua entoavam canções «na maior parte provenientes do movimento bündisch [as ligas de juventude] ou reflectindo a cultura russa» [50], aqueles irreverentes de bom-tom escolhiam o outro lado dos Aliados e dançavam ao som da música britânica [51] ou, pior ainda, do jazz, uma expressão musical que a doutrina nazi considerava degenerada e criada por seres infra-humanos. Mesmo em plena guerra estes jovens faziam questão de falar inglês em público e de demonstrar de outras maneiras igualmente claras a preferência pelos anglo-americanos, além de não hesitarem em ridicularizar os feitos heróicos das Forças Armadas do Reich.

Apesar da sua conhecida eficiência e do recurso habitual aos campos de concentração, a Gestapo jamais conseguiu liquidar estes dois tipos de contestação [52] que, sendo opostos pela base social e pelos métodos a que recorriam, confirmavam a existência de uma segunda Alemanha, indomável perante o nacional-socialismo.

Mas, se assim foi, por que motivo surgiu o mito da culpabilidade alemã, como pôde difundir-se e enraizar-se? A quem serviu esse mito, usado hoje com tanta inconsciência pela esquerda nacionalista portuguesa?

Leia a 2ª parte e a 3ª parte desta série de artigos.

Notas

[1] Hermann Langbein, La Résistance dans les Camps de Concentration Nationaux-Socialistes, 1938-1945, [Paris]: Arthème Fayard, 1981, passim.
[2] Citado em J. Noakes e G. Pridham (orgs.), Nazism 1919 – 1945. A Documentary Reader, Exeter: University of Exeter Press, 2008-2010, vol. II: State, Economy and Society 1933-1939, pág. 138.
[3] Id., ibid., vol. II, pág. 202. Esta falta de confiança nos jornais é indicada em Junho de 1936 num dos boletins periódicos do Partido Social-Democrata no exílio, como se lê em id., ibid., vol. II, pág. 382. Note-se que o Partido Social-Democrata no exílio dispunha de uma boa rede de informadores no interior do Reich.
[4] Citado em id., ibid., vol. IV: The German Home Front in World War II, pág. 530.
[5] Id., ibid., vol. II, págs. 375-387, 399-404.
[6] Citado em id., ibid., vol. II, pág. 382.
[7] Id., ibid., vol. IV, pág. 584. Segundo Hans Mommsen, Germans Against Hitler. The Stauffenberg Plot and Resistance under the Third Reich, Londres e Nova Iorque: B. Tauris, 2009, pág. 39, «na Alemanha de Leste os grupos de resistência comunista viram-se em grande medida marginalizados» e na pág. 25 este autor observou, referindo-se aqui à República Federal, que «existe uma tendência na Alemanha actual para manter em silêncio o papel dos comunistas na resistência».
[8] Por exemplo, segundo J. Noakes et al., op. cit., vol. IV, pág. 588, das oitenta e nove células comunistas existentes nas fábricas de Berlim, a polícia destruiu vinte e duas e deixou as restantes isoladas e sem coordenação.
[9] Esta passagem da carta de Hitler para o então coronel von Reichenau, de 4 de Dezembro de 1932, encontra-se em id., ibid., vol. III: Foreign Policy, War and Racial Extermination, pág. 13.
[10] Id., ibid., vol. II, pág. 387, vol. III, págs. 110, 113. Segundo id., ibid., vol. II, pág. 404, o boletim do Partido Social-Democrata no exílio observou, a respeito dos acordos de Munique, que «as pessoas faziam votos por que não houvesse guerra».
[11] Id., ibid., vol. III, pág. 113.
[12] Citado em id., ibid., vol. II, pág. 403.
[13] O discurso de 10 de Novembro de 1938 encontra-se em id., ibid., vol. III, págs. 113-116.
[14] Albert Speer, Au Coeur du Troisième Reich, [Paris]: Fayard (Le Livre de Poche), 1979, pág. 222.
[15] Martin Gilbert, The Second World War, Londres: The Folio Society, 2011, vol. I: From the Coming of War to Alamein and Stalingrad, 1939-1942, pág. 69. Sebastian Haffner, The Meaning of Hitler, Londres: The Folio Society, 2011, pág. 41 mencionou a falta de entusiasmo da população do Reich quando a guerra começou.
[16] J. Noakes et al., op. cit., vol. IV, págs. 189-194.
[17] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 219. Quanto à falta de produtividade no trabalho e ao absentismo, ver ainda a pág. 454.
[18] Id., ibid., vol. IV, pág. 136.
[19] Id., ibid., vol. IV, págs. 363-364.
[20] Werner Fritzsche, A Evolução da Política Social Alemã, Berlim: [s. ed.], 1941, pág. 41.
[21] Citado em J. Noakes et al., op. cit., vol. IV, pág. 551 (sub. orig.).
[22] Id., ibid., vol. IV, págs. 548-549.
[23] Id., ibid., vol. IV, págs. 549, 569.
[24] Id., ibid., vol. IV, págs. 117-118, 568.
[25] Id., ibid., vol. IV, pág. 577.
[26] Id., ibid., vol. IV, pág. 558.
[27] Id., ibid., vol. IV, pág. 123.
[28] Id., ibid., vol. IV, pág. 159. Estes números diferem parcialmente dos fornecidos na pág. 122.
[29] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 550.
[30] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 578.
[31] Ernst von Salomon, Le Questionnaire, [Paris]: Gallimard, 1993, passim.
[32] J. Noakes et al., op. cit., vol. IV, pág. 136. Segundo um relatório enviado para o Ministério da Justiça em Maio de 1943, citado na pág. 449, o presidente de um tribunal superior mencionou entre os sintomas de imoralidade sexual das jovens o contacto com prisioneiros de guerra e com trabalhadores estrangeiros.
[33] Id., ibid., vol. III, pág. 432. Contudo, Götz Aly e Susanne Heim, Les Architectes de l’Extermination. Auschwitz et la Logique de l’Anéantissement, Paris: Calmann-Lévy, 2006, págs. 203-204 pretenderam que o programa de eutanásia teria beneficiado da indiferença ou mesmo do apoio activo da grande maioria da população.
[34] J. Noakes et al., op. cit., vol. III, pág. 439.
[35] Id., ibid., vol. II, pág. 330.
[36] Id., ibid., vol. II, pág. 351.
[37] Citado em id., ibid., vol. II, pág. 351.
[38] Citado em id., ibid., vol. II, pág. 352.
[39] Id., ibid., vol. II, págs. 360-362.
[40] Este caso foi relatado por Victor Klemperer no dia 24 de Novembro de 1941 em Martin Chalmers (org.), I Shall Bear Witness. The Diaries of Victor Klemperer, 1933-1941, Londres: The Folio Society, 2006, págs. 515-516. Na versão inglesa do diário esse indivíduo aparece descrito como «a gentleman».
[41] Ver as entradas de 6 de Junho e 14 de Julho de 1942 e 29 de Janeiro de 1944 em Martin Chalmers (org.), To the Bitter End. The Diaries of Victor Klemperer, 1942-1945, Londres: The Folio Society, 2006, págs. 78, 118, 341 respectivamente. Por vezes foi o próprio Klemperer quem permaneceu hesitante quanto ao estatuto social, como no dia 4 de Março de 1944, quando registou que fora saudado por uma pessoa «algures entre cavalheiro e homem». Ver a pág. 349. Resumindo a sua experiência pessoal e a dos outros judeus que conhecia, Klemperer observou na entrada de 4 de Outubro de 1941, em M. Chalmers (org.), I Shall Bear Witness, op. cit., pág. 508, que «não há dúvida de que o povo acha que a perseguição aos judeus é um pecado». «[…] a estrela judaica não deparou com muita aprovação pública», anotou ainda Klemperer em 17 de Janeiro de 1942, em M. Chalmers (org.), To the Bitter End, op. cit., pág. 5.
[42] Ver as entradas de 8 de Maio, 13 de Junho e 25 de Agosto de 1942, 19 de Julho, 23 de Agosto e 27 de Setembro de 1943, 5 e 14 de Setembro de 1944 e 15 de Abril de 1945 em M. Chalmers (org.), To the Bitter End, op. cit., págs. 55, 88, 156, 286, 297, 307, 408, 414, 523 respectivamente. Ver ainda as entradas de 19 e 26 de Abril de 1942, 6 de Março, 25 de Abril, 31 de Outubro e 11 de Dezembro de 1943 e 12 de Março e 12 de Abril de 1944 em id., ibid., págs. 47, 50, 243, 254, 316, 320, 350, 357 respectivamente.
[43] Ver as entradas de 12 de Janeiro, 16, 18 e 22 de Fevereiro, 6, 16 e 25 de Março, 18 de Abril, 15 de Maio, 11 de Junho, 27 e 29 de Julho, 24 de Setembro e 5 de Outubro de 1942, 18 de Fevereiro, 16 e 29 de Abril, 5 e 21 de Maio, 4 e 23 de Junho, 14 e 23 de Agosto, 21 e 27 de Setembro, 18 de Outubro e 5 de Dezembro de 1943, 5 de Janeiro, 7 de Fevereiro, 19 de Março, 2, 3 e 14 de Abril, 20 e 24 de Agosto de 1944 e 20 e 29 de Janeiro e 8 de Fevereiro de 1945 em M. Chalmers (org.), To the Bitter End, op. cit., págs. 3-4, 16, 17, 19, 25, 30, 31, 37, 44, 59-60, 85-86, 129, 131, 176, 178, 235, 250, 259, 263, 270, 274, 281, 294, 297, 304, 307, 314, 319, 332, 342, 352, 354-355, 355-356, 358, 402, 403, 454, 458, 462 respectivamente. Por seu lado, escreveu Karl Jaspers, La Culpabilité Allemande, Paris: Les Amis des Éditions de Minuit, 1948, pág. 177: «O anti-semitismo alemão nunca constituiu uma acção do povo. Aquando dos pogroms alemães, a população manteve-se afastada e não houve actos de crueldade espontâneos contra judeus. As massas populares calavam-se e retiravam-se, a menos que exprimissem de maneira ténue a sua indignação».
[44] J. Noakes et al., op. cit., vol. III, pág. 612.
[45] Citado em id., ibid., vol. III, pág. 613.
[46] Id., ibid., vol. IV, pág. 640.
[47] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 652. Lêem-se opiniões idênticas num relatório de Março de 1945, também na pág. 652.
[48] Note-se que, embora a filiação na Juventude Hitleriana só se tivesse tornado legalmente obrigatória com um decreto de 25 de Março de 1939, já antes disso as pressões exercidas pelos professores eram muito fortes. Ver id., ibid., vol. II, págs. 223 e segs.
[49] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 452.
[50] Citado em id., ibid., vol. IV, pág. 452.
[51] Mas este tipo de comportamento assumiu certamente proporções mais vastas, porque deparo com um caso em que num campo de crianças evacuadas de cidades bombardeadas um dos professores ensinou canções de marinheiros inglesas. Ver id., ibid., vol. IV, pág. 439.
[52] Acerca destes dois movimentos de contestação juvenil ver «Children», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.), The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, págs. 209-210 e J. Noakes et al., op. cit., vol. IV, págs. 450-455, 459-460.

Abaixo do cartaz inserido no preâmbulo, as ilustrações deste artigo reproduzem obras de Jörg Immendorff (a primeira, a segunda, a quinta e a sexta a contar de cima) e de Anselm Kiefer (as duas outras).

14 COMENTÁRIOS

  1. Ótimo texto. Obrigado por prorrogar esse ponto final.
    Estava pensando se algumas das conclusões positivas sobre as hostilidades pós-1943 “internas” (dos alemães) ao Partido Nazista não poderiam, ou deveriam, ser relativizadas pelo fato de que já havia ocorrido as derrotas em Stalingrado e Kursk, o que de fato representava a inevitabilidade da derrota da guerra. Em todo caso, achei importantíssimas as indicações e levantamentos históricos acerca da “segunda Alemanha” a qual foi jogada pra debaixo do tapete por motivos que acredito serão expostos na sequência da série de artigos. Gostaria de ler algo sobre o papel que Israel e a indústria do holocausto tiveram nessa apagada da história da “segunda Alemanhã”
    Saudações camarada! mais uma vez, parabéns por esse e por seus outros trabalhos. Muita gente aprende com você, deixe pra lá de uma vez por todas essa conversa de ponto final!

  2. Pablo,
    Os generais viram que a guerra ficou perdida logo no Inverno de 1941, quando a Wehrmacht parou às portas de Leningrado e frente a Moscovo. Para a tecnocracia, a data da derrota final podia calcular-se pelo ritmo comparado da produção de guerra germânica e da aliada. Para o comum da população, o marco foi a derrota do Reich e dos seus aliados em Stalingrado. A isto devem somar-se os bombardeamentos das cidades do Reich, causando um número colossal de vítimas civis, e que a Luftwaffe e a defesa anti-aérea eram incapazes de evitar. Assim, 1943 constitui um marco, mas sobretudo nos aspectos seguintes:
    – a população começou a perder o medo;
    – os membros do NSDAP, ou seja, o partido nazi, começaram a ter receio de se mostrar como tais em público;
    – a polícia começou a ficar passiva perante manifestações de desagrado da população.
    Mas se você considerar os dados que indico ao longo do artigo verá que as manifestações de insatisfação e de desconfiança do comum da população vinham de muito antes. Na minha opinião, o fenómeno marcante foi o regozijo popular manifestado por ocasião do acordo de Munique e a ausência de triunfalismo com que a população acolheu a declaração de guerra em Setembro de 1939. Para Hitler este foi um facto marcante e que, aliás, alterou a relação pessoal que ele até então havia mantido com o povo do Reich.
    Quanto aos motivos que levaram à construção do mito da culpabilidade alemã, nos dois artigos seguintes eu tentarei mostrar dois desses motivos. Outro, que você menciona, é a legitimação do Estado de Israel e a necessidade de apagar a política de compromissos que marca a história do sionismo. Mas não abordarei a questão nesta série de artigos, porque já a tratei longamente num artigo publicado neste site em Junho de 2010
    http://passapalavra.info/?p=24723
    Espero ler mais comentário seus aquando da publicação dos próximos artigos.

  3. Os sionistas são mesmo poderosos. Conseguem influenciar todo o mundo na direcção que lhes convém e apagar da história capítulos importantes. Como constroem uma “indústria” tão poderosa sendo aparentemente tão insignificantes?

  4. Moses Mordechai Levi,
    Este seu comentário menciona um assunto inteiramente marginal à série de artigos sobre «O mito da culpabilidade alemã». De qualquer modo, se o seu comentário se refere ao meu artigo «De perseguidos a perseguidores: a lição do sionismo» ( http://passapalavra.info/?p=24723 ), seria interessante que, em vez de tecer considerações vagas, analisasse a documentação indicada nas numerosas notas e a refutasse, se conseguisse. Esse artigo baseia-se em factos documentados, não em opiniões. Aliás, bastará ver a bibliografia citada nas referências para se aperceber da sua solidez. Faço notar que aquele artigo desenvolve alguns dos aspectos que eu havia já tratado no capítulo das págs. 689-730 do livro Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Afrontamento, 2003).

  5. Caro João Bernardo: eu pertenço ao grupo dos aprendizes, mas mesmo assim acho que lhe posso dizer – livre-se de “pontos finais”! Era o que nos faltava. Um abraço

  6. Estes textos parecem-me importantes por não incorrerem em concepções demasiado lineares. Continuo, no entanto,a interrogar-me sobre a muita passividade e cooperação da população.

    Grato pela publicação destes textos

  7. É interessante este levantamento da resistência interna Alemã, ao nazismo. O que me parece que está a faltar são dados estatísticos sólidos. Só através dos mesmo se poderá(ia) avaliar a relevância, da dita resistência, em relação à sociedade Alemã, como um todo. Obrigado, ainda assim, pela informação fornecida e todo o esforço que isso terá envolvido.

  8. Carlos Claro,
    Um historiador raramente dispõe de números quando faz a história política de regimes ditatoriais, onde não existiam eleições e onde prevalecia a censura. E menos ainda quando se trata de analisar actividades ilegais, forçosamente secretas ou pelo menos discretas. Mas há maneiras de contornar o problema. A evolução do número de condenações em tribunal é um índice significativo e eu citei alguma coisa nesse sentido. Encontra-se mais em J. Noakes e G. Pridham (orgs.), op. cit., que é uma boa recolha de documentação. Os boletins informativos publicados pela direcção do Partido Social-Democrata no exílio parecem-me fiáveis, embora se possa objectar que os informadores daquela organização política teriam propensão a exagerar os indícios de hostilidade ao regime nacional-socialista. Mas já o mesmo não se pode dizer dos relatórios do Sicherheitdienst, o Serviço de Segurança SS; por isso, quando um desses relatórios afirma que uma dada atitude era generalizada, devemos crer que o era. O diário de Victor Klemperer é outra fonte preciosa, e quando vemos que certo tipo de acontecimentos se repetia, tanto com ele como com outras pessoas que o informavam, devemos concluir que não se tratava de excepções mas de procedimentos com algum grau de generalização. Por isso eu deixei tão extensas as nn. 41 a 43. Não o fiz por petulância académica, mas para que o leitor pudesse avaliar a dimensão daquilo que tive de narrar muito sucintamente.
    Tudo somado, o nacional-socialismo germânico contou com um amplo apoio de massas e beneficiou, sem dúvida, da colaboração de muitos «carrascos voluntários». Mas não é menos certo que se manteve ao longo de todo o Terceiro Reich uma atitude de desconfiança ou de franca aversão ao regime, e que essa atitude caracterizou um número significativo de pessoas anónimas. O que me interessou neste artigo não foi a resistência organizada, para a qual existe uma historiografia razoavelmente abundante, sobretudo para a resistência de direita. Interessaram-me os anónimos, porque era precisamente neles que o nacional-socialismo, como todo o fascismo, fazia incidir os seus esforços de mobilização. Assim, a relutância desses muitos anónimos ocasionou uma vulnerabilidade no regime. As duas Alemanhas.

  9. Aqueles leitores brasileiros que conhecerem este artigo só pelo Passa Palavra, onde ele foi publicado originariamente, talvez pensem que exagero, que o nacionalismo que hoje se expande a 561 km por minuto na esquerda portuguesa é uma invenção minha e que, portanto, mais valia eu ter permanecido calado. Para esses leitores copio aqui dois comentários que este artigo suscitou noutro site onde foi mencionado:
    «esses loirinhos do norte da €uropa só nos andam a foder. qual é a dúvida?»
    «sim, é tudo muito bonito, mas não são os turcos que nos andam a lixar. são os alemães – que tb são uns porcos para os turcos»
    O mito da culpabilidade alemã serve para justificar o nacionalismo de laivos racistas adoptado agora em grande parte da esquerda portuguesa. Enquanto isso, cerca de dez mil militares desfilaram hoje em Lisboa numa manifestação em defesa da «soberania nacional» e contra a visita da chanceler Merkel (http://www.publico.pt/Pol%c3%adtica/militares-marcharam-em-silencio-contra-ameaca-a-patria–1571951 ). A esquerda nacionalista encontra os aliados de que precisa. Quanto a mim, no começo deste ano publiquei aqui um artigo em que sugeri a redução das despesas do Estado mediante a supressão das forças armadas (http://passapalavra.info/?p=50559 ). Mas tinha-me esquecido, claro, do grande arquétipo nacional, a padeira de Aljubarrota.

  10. João Bernardo, gostava de saber porque diz que o “mito da culpabilidade alemã serve para justificar o nacionalismo de laivos racistas adoptado agora em grande parte da esquerda portuguesa.” Quem de esquerda diz isso e em que moldes? Não estará a ser impreciso? Eu acho que devemos ter sempre extremo cuidado com a informação veiculada pela comunicação social mesmo quando directamente relacionada com eventos de esquerda e baseada nos seus documentos/comunicados/comunicações oficiais. Normalmente é retorcida para suscitar e fundamentar uma outra opinião que é expressa por outra parte da sociedade.
    Vejo bastante o nacionalismo e o anti-germanismo ser expressado sem ambiguidades pela direita na comunicação social e vejo uma comunicação social preparada para responder ao fracasso desta política responsabilizando a Alemanha (no seu todo). Vejo a esquerda, de uma forma geral (partidos políticos e não só), a responsabilizar as opções políticas europeias tomadas no seu todo, ancoradas numa liderança alemã, personificada pela Merkel. Mas não me parece que haja uma culpabilização do povo alemão por parte da esquerda que falo. Embora me pareça que a comunicação social se aproveite para o fazer usando a esquerda para tal.
    É claro que há pessoas que caem (conscientemente ou não) na rasteira, como o Boaventura Sousa Santos.
    Não sei se me expliquei bem. De resto, gostei bastante do artigo o qual agradeço a oportunidade de ler.

  11. Ricardo Alves,
    A frase que cita é do meu último comentário, a propósito de dois comentários publicados precisamente num site de esquerda. A primeira ilustração do artigo, abaixo da citação de Boaventura Sousa Santos, encontrei-a também num site de esquerda, e disseram-me que foi reproduzida noutros. Quando escrevo que uma parte substancial da esquerda portuguesa evoca o Terceiro Reich para criticar a política da chanceler Merkel não estou a referir-me à direcção do Partido Comunista nem à direcção do Bloco, mas a esquerda não é só constituída por uma ou duas dúzias de pessoas. Interessam-me aqui as pessoas anónimas que se consideram de esquerda, votam na esquerda e agora são mobilizadas pelos protestos. À medida que estes protestos forem crescendo, cada vez mais serão essas pessoas que lhes darão o tom. E não penso estar enganado ao afirmar que grassa aí um sentimento globalmente antialemão, reforçado pela memória do nazismo. Isto ouve-se em conversas de rua, nos transportes públicos, nos empregos e lê-se em sites de esquerda. E com uma frequência suficiente para me parecer que o sintoma é perigoso.
    Aliás, o nacionalismo e a defesa de uma mítica «soberania nacional» ocupam cada vez mais o primeiro plano dos protestos, e uma nação requer sempre como inimigo outra nação, enquanto todo e enquanto continuidade histórica. O que mais ainda torna premente, na minha opinião, a crítica ao mito da culpabilidade alemã.

  12. Muito bom artigo. Em Portugal a figura demonizada da Merkel como personificação da troika traz consigo um antigermanismo escancarado, ignorando que até na Alemanha haja protestos anti-troika, anti-Merkel, anti-crise, anti-sei-lá-o-quê-mais.
    Há mesmo muitas conversas nas quais é evocada a saudade por Salazar. Importa para essas pessoas o “milagre orçamentário” do “Doutor de Coimbra” contra a situação deixada pelos liberais e pelo rumo político de 1928. Um Portugal orgulhoso e indiferente às humilhações de sempre. Esses ignoram – não sei em qual sentido – como foi o regime, o que foi a PIDE, Peniche, Caxias, Tarrafal. Ignoram o que foi o pilar colonialista do regime… Mentira, não ignoram: já assumem a “amputação” de 1822 chamando os brasileiros de irmãos, mas não admitem terem perdido as colônias africanas: “Mas eram também portugueses! Culpa das independências que Portugal ficou quebrado!”. Esses culpam de Humberto Delgado a Mário Soares por todas as mazelas que, segundo eles, se ainda fosse nos rumos do Doutor, nada estaria como está.
    Mas não são todos assim. A maioria não sente saudades de Salazar e sentem ódio por essa figura, sobretudo pelos traumas da Guerra Colonial. As conversas mais comuns são as que, ora ou outra maldizendo José Sócrates e Passos Coelho, têm um teor peculiar: a culpa é desse capitalismo consumista, dessa burguesia egoísta, do aquecimento global – e aí vem uma pontinha de orgulho porque Portugal tem parques eólicos e ótimo tratamento para lixo reciclável. Além do mais, a culpa recai sobre as relações humanas, porque outrora os portugueses se sentiam como uma comunidade, e hoje andam tão individualistas que nem dão “bom dia” direito. A questão aqui entra na “moral” do povo também… A de que a corrupção política começa em casa, afinal todos são engrenagens da grande máquina Portugal, o país pequeno de nação grandiosa, amistosa e pacífica. O problema pra eles é quando essa pacificidade se torna apatia, e é sempre exemplificada a apatia demonstrada nos grandes interesses pela situação do Benfica, do Sporting, do Porto ou da “briosa”. Isso me lembra algumas citações de Henrique Galvão já como opositor e, mesmo estando na ala da “Oposição Democrática”, não deixava escondidas suas ideias fascistas e colonialistas travestidas de anti-salazarismo: “Portugal é o país dos três FFF: Fado, Fátima e Futebol”. Mesmo Galvão que também sempre tratava os problemas portugueses em categorias específicas: política, económica, moral e física.
    Evocam aí não a saudade a Salazar, mas a saudade ao 25 de Abril em forma de mito: a revolução pacífica em que o povo saiu às ruas atrás dos bravos do MFA, “sentinela do povo”. A cena é essa e os desdobramentos turbulentos da Revolução dos Cravos são meros detalhes para os saudosistas que não viveram aquele tempo.
    O problema é que essas pessoas, que com humor irônico e bairrista satirizam outras regiões e aldeias, mas quando o assunto são outros países, sobretudo Espanha, assumem a lusitanidade orgulhosa. Pior ainda, não ouvi dos saudosistas de Salazar, mas dessas pessoas, o medo de a Merkel ser o Hitler de saias, inclusive um até falou em um pan-germanismo discreto surgindo, quase um 4º Reich. Nisso, o FMI, por causa da Lagarde, torna-se “França”, e a troika como um todo torna-se “Alemanha”. Os investimentos em serviços sociais e previdência na Alemanha esquenta ainda mais o ódio por alemães, principalmente os que aproveitaram o início do ano letivo para visitar Portugal. Alguns portugueses se sentem ofendidos, como se esses alemães estivessem gastando dinheiro por aqui para ostentar os lucros da crise e humilhar os trabalhadores portugueses.
    Em Lisboa, às vésperas da visita da chanceler alemã, houve a manifestação dos veteranos de guerra, com ruas fechadas e cobertura televisiva. Discurso nacionalista, de moralismo na política, soberania e de valores familiares na pátria… E nos cafés pessoas se levantavam para aplaudir os “sentinelas do povo”.
    Bem, difícil falar para eles, mas minha ideia é a de que não parece estar ressurgindo um nazismo da Alemanha, mas discursos e lamentações fascicizantes nos próprios países em crise, justamente do meio da classe trabalhadora. Justamente esses que culpam o “consumismo” e celebram o verde, que têm medo da Merkel de bigodinho, que nutrem ressentimentos e os politizam e que esperam um novo 25 de Abril como milagre bônus de Nsa. Sra. de Fátima.

  13. Muito obrigado pelo seu artigo! Pela minha parte, vou divulgá-lo. E sim, por chocante que possa parecer, há uma franja de uma esquerda racista e anti-semita, em particular (e deixo de lado o nacionalismo). Cheguei, inclusivamente, a deslinkar (!) um blogue muito revolucionário, anti-imperialista e (na altura) nostálgico do sovietismo, enojado pela baixa linguagem anti-judaica, e que não se limitava à crítica das políticas do estado israelita. Não, aquilo cheirava a santo-ofício.
    Mas também não sei porque diabo me choquei, quando o anti-semitismo, mais ou menos, assumido, foi aslgo que caracterizou o reinado do Zé Estaline.

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