«Os judeus da Europa ficaram esmagados entre duas mós gémeas, a da vontade assassina dos nazis e a da cruel indiferença dos Aliados». Por João Bernardo

Leia a 1ª parte e a 2ª parte desta série de artigos.

O mito da culpabilidade alemã — usado sem vergonha por grande parte da esquerda nacionalista portuguesa — não serviu apenas para que o Reino Unido e os Estados Unidos fizessem esquecer o bombardeamento sistemático da população civil na Europa ocupada pelo Reich. Esse mito desempenhou uma função ainda mais importante, concentrando nas autoridades nacional-socialistas e no seu aparelho de terror a totalidade da responsabilidade pelo genocídio que vitimou os judeus europeus. Vamos ver que as culpas devem ser partilhadas.

O anti-semitismo dos Aliados

O governo norte-americano manteve confidencial a maior parte da informação que mostrava a conversão da política anti-semita de Hitler numa chacina sistemática. Referindo-se ao ocorrido na Polónia durante o último trimestre de 1939, um historiador considerou que «nada havia de secreto relativamente ao terror alemão no Leste. Os pormenores da maior parte das atrocidades eram transmitidos clandestinamente para o Ocidente passados poucos dias. Os diplomatas neutrais em Berlim estavam bem informados. Cartazes afixados nos muros por toda a Polónia anunciavam ao público as execuções» [1]. Sendo assim, mais curiosa ainda se torna a relutância na difusão de informações acerca da chacina dos judeus.

As primeiras notícias do genocídio do povo judaico deveram-se ao célebre romancista alemão Thomas Mann, numa série de palestras que proferiu através da BBC desde Novembro de 1941 até Janeiro de 1942 [2], embora já em Outubro de 1941 a imprensa aliada recebesse descrições de morticínios efectuados na Ucrânia sob a ocupação nazi [3]. Em Janeiro de 1942 o governo soviético tornou público um relatório detalhado acerca das acções praticadas pelos Einsatzgruppen, os Comandos de Acções Especiais organizados pelos SS nos territórios conquistados de Leste, e a partir de então as informações sucederam-se, umas mais aterradoras do que as outras [4]. Uma rede clandestina de recolha de testemunhos organizada pelo historiador judeu Emmanuel Ringelblum, cativo no ghetto de Varsóvia, conseguiu transmitir aos governantes polacos refugiados em Londres documentação acerca de um dos campos de extermínio, dando ocasião a que a BBC anunciasse em Junho de 1942 que os nazis haviam inaugurado a política de «solução final» e contribuindo decerto para que o governo polaco no exílio pudesse apresentar em Agosto ao governo dos Estados Unidos um relatório sobre o uso de câmaras de gás e de fornos crematórios [5]. Além disso, em Julho os serviços secretos aliados na Suíça souberam por uma fonte germânica fidedigna que Hitler ordenara a eliminação dos judeus [6]. Estas informações foram confirmadas pouco depois por documentos emanados do Congresso Judaico Mundial e no final do ano por notícias transmitidas por funcionários da Agência Judaica da Palestina [7]. Entretanto, em Novembro, chegara a Londres um membro da resistência polaca que, com insuperável audácia, havia penetrado num dos campos de extermínio e pôde descrever pessoalmente ao ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Anthony Eden e ao próprio presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt os métodos empregues pelos nazis [8]. E o início, em Julho de 1943, na União Soviética, do primeiro julgamento por crimes de guerra cometidos pelo Reich nos territórios de Leste contribuiu para divulgar as atrocidades, tanto mais que estiveram presentes vários jornalistas ocidentais [9]. As notícias foram-se acumulando e permitiram uma avaliação a tal ponto exacta da situação que em Junho de 1944 uma revista de Nova Iorque não andou longe da verdade ao calcular entre quatro e cinco milhões o número de judeus vítimas do genocídio [10].

A primeira reacção do Departamento de Estado norte-americano foi atrasar e dificultar tanto quanto possível a difusão dessas informações e mais tarde um subsecretário de Estado, ou alguém por ele, chegou a proibir que os canais diplomáticos veiculassem outras notícias do mesmo género [11]. Por seu lado, as autoridades britânicas haviam silenciado a questão a um nível mais profundo. Como os serviços de espionagem britânicos conseguiam decifrar a maior parte das mensagens, mesmo as ultra-secretas, trocadas entre os dirigentes políticos, militares e policiais do Reich, a directiva de extermínio nos territórios ocupados do Leste era perfeitamente conhecida pelo governo de Londres [12]. E tendo a espionagem britânica decifrado desde Fevereiro de 1941 o código secreto dos serviços ferroviários do Reich, o govermo sabia que massas sucessivas de judeus estavam a ser enviadas para um pequeno número de campos de detenção que não tinham lugar para os acolher a todos, mas apesar disto a informação não foi divulgada [13]. Por aqui se avalia o cinismo de Churchill, primeiro-ministro britânico, ao escrever em Novembro de 1941, num jornal judaico de Londres, que «ninguém tem sofrido mais cruelmente do que o Judeu a indescritível desumanidade infligida nos corpos e nos espíritos por Hitler e pelo seu odioso regime» [14].

Só em Dezembro de 1942 os três países aliados procederam a uma declaração conjunta acerca do extermínio dos judeus, calculando em muitas centenas de milhares o número de vítimas [15], e de então em diante tanto o governo dos Estados Unidos como o do Reino Unido se esforçaram por subestimar o problema e adiar qualquer tipo de solução, recusando-se antes de mais a dar fundos e a fornecer meios de transporte para salvar os judeus [16]. Pior ainda foi ter-se introduzido aqui uma excepção, já que em 1940 o Departamento de Estado admitira a concessão de «vistos de emergência» a refugiados «cujos sucessos intelectuais ou culturais ou actividades políticas sejam do interesse dos Estados Unidos» [17]. As portas que se abriam a uma elite rentável fechavam-se aos outros e em Abril de 1943 a conferência anglo-americana das Bermudas, convocada especialmente para discutir as questões suscitadas por este genocídio, absteve-se de propor qualquer iniciativa eficaz [18]. Finalmente, em Janeiro do ano seguinte o governo dos Estados Unidos criou o War Refugee Board, Comissão para os Refugiados de Guerra, mas perante a dimensão da tarefa os resultados obtidos foram insignificantes [19]. «Na realidade», afirmou uma equipa de eruditos pouco dados ao exagero, «tanto os britânicos como os americanos, depois de terem organizado a conferência das Bermudas […], opuseram-se a quaisquer planos de salvamento maciço dos judeus da Europa ocupada» [20].

Mas as raízes da questão vêm de antes da guerra. Até 1939 o movimento eugenista germânico fora uma força determinante na Federação Internacional das Organizações Eugenistas [21], pelo que as suas posições eram mundialmente conhecidas. Durante a década de 1920 as publicações eugenistas norte-americanas, em especial o Eugenical News e o Journal of Heredity editado pela American Genetic Association, seguiram com interesse as pesquisas dos cientistas raciais alemães e reproduziram regularmente artigos seus, manifestando sem rodeios orientações anti-semitas [22]. Em 1932, depois de ter publicado no seu número de Março-Abril um artigo intitulado «Hitler e o Orgulho Racial», onde se ficara a saber que «os arianos são os grandes fundadores de civilizações […] A mistura do sangue, a poluição da raça […] tem sido a única razão que levou a perecerem velhas civilizações», o Eugenical News inseriu em Setembro-Outubro um novo louvor a Hitler. «O movimento de Hitler dar-lhe-á mais tarde ou mais cedo o pleno poder [e] trará ao movimento nórdico o reconhecimento geral e a promoção pelo Estado», afirmou este artigo. «Quando eles [os nacionais-socialistas] assumirem o controlo do governo na Alemanha, devem esperar-se a curto prazo novas leis de higiene racial bem como uma cultura nórdica consciente e uma “política externa” nórdica» [23]. Em 1933 o Journal of the American Medical Association relatava, sem os pôr em causa, os temas raciais que obcecavam os nazis [24].

Dois anos depois alguns eugenistas norte-americanos e especialistas de genética procuraram levar o movimento eugenista a afastar-se das questões raciais, mas a tentativa permaneceu sem efeito, embora a partir de 1936 o Journal of the American Medical Association se tivesse distanciado das medidas tomadas pelos nazis [25]. Entretanto, no número de Março-Abril de 1936 o Eugenical News louvou «a grande importância da política racial alemã», num artigo assinado pelo presidente da Eugenics Research Association [26]. No mesmo ano, uma eugenista norte-americana que havia percorrido o Reich para observar com minúcia a política racial escreveu artigos e proferiu conferências enaltecendo o que vira e assegurando aos seus compatriotas que o anti-semitismo não se devia a quaisquer motivos religiosos – o que decerto o tornaria inaceitável para os bons protestantes anglo-saxónicos – pois os judeus eram definidos não pelas suas práticas religiosas mas pelo seu sangue [27]. No ano seguinte outra autora, considerando a Alemanha «o maior laboratório existente de experiências eugénicas», explicou aos leitores do Journal of Heredity que se tratava de «um esforço concertado» para «alterar as características inatas da população graças a agências mantidas sob controlo social»; e o artigo concluía afirmando que a Alemanha «reconheceu antes de que fosse demasiado tarde (e antes de qualquer outra nação ter dado passos significativos nesta direcção) a importância biológica de melhorar o stock racial pondo em acção todos os meios possíveis ao seu dispor que contribuam para esse importante objectivo» [28].

O aval foi igualmente concedido por Lothrop Stoddard, um dos dirigentes da Eugenics Research Association, que tivera o privilégio de ser recebido no início da guerra pelas principais figuras políticas e científicas do Reich. Numa obra publicada em 1940 ele explicou que o racismo de Hitler tinha duas componentes distintas. Uma delas, que seria um «fenómeno passageiro», postulava a existência de diferenças fundamentais entre as raças e considerava a mestiçagem como um mal absoluto. Mais importante seria a outra componente, que dizia respeito à melhoria da raça e correspondia aos objectivos e aos métodos da eugenia. «No interior da Alemanha, a questão judaica é considerada um fenómeno passageiro», anunciou Stoddard ao público norte-americano, «estando já resolvida em princípio e ficando em breve resolvida na prática mediante a eliminação física dos próprios judeus no Terceiro Reich» [29].

E em Abril de 1942, vários meses depois de terem sido divulgados os primeiros relatos do genocídio, o Journal of Heredity publicou um artigo de um especialista norte-americano em genética, Tage U. H. Ellinger, contando a visita efectuada a um grande instituto eugenista de Berlim durante o Inverno de 1939-1940. «O problema em si é bastante simples se se souber que a erradicação deliberada do elemento judaico na Alemanha não se relaciona de modo nenhum com qualquer perseguição religiosa. Trata-se apenas de um projecto de reprodução selectiva em grande escala, com o objectivo de eliminar daquela nação os caracteres hereditários da raça semita. Se isto é ou não desejável é um assunto que nada tem a ver com a ciência. Trata-se somente de uma questão de orientação política e de preconceito. É um problema semelhante àquele [que] os americanos resolveram a seu próprio contento relativamente à sua população de cor. A história das formas cruéis como a vida foi tornada insuportável para milhões de infelizes judeus alemães pertence exclusivamente ao reino vergonhoso da brutalidade humana. Mas quando se levanta o problema de saber como deve ser prosseguido da maneira mais eficaz o projecto de reprodução selectiva, depois de a sua conveniência ter sido decidida pelos políticos, então a ciência biológica pode prestar ajuda mesmo aos nazis». Ellinger chegou ao ponto de apresentar o genocídio como uma espécie de filantropia. «Aquilo que vi na Alemanha fez-me pensar muitas vezes se por detrás do tratamento infligido aos judeus não estaria a ideia subtil de os desencorajar de procriarem crianças condenadas a uma vida de horrores. Se isto sucedesse, o problema judaico resolver-se-ia por si mesmo numa geração, mas teria sido muitíssimo mais caridoso matar os infelizes de uma só vez». Afinal, os SS foram, segundo os desejos de Ellinger, mais caridosos do que subtis. Não se pode duvidar que o extermínio dos judeus fosse conhecido quando lemos neste artigo: «Tal como as coisas estão na Alemanha nazi, é evidentemente uma questão quase de vida ou de morte ter a etiqueta de ariano ou de judeu» [30].

«As montanhas de materiais que Laughlin coligiu acerca da ciência racial e da “questão judaica” na Alemanha», escreveu uma historiadora, «muitos deles publicados em órgãos conceituados como o New York Times, não deixam dúvida de que os americanos, se o quisessem, podiam ter estado bem informados acerca da política racial nazi» [31]. Perante todos aqueles textos e conhecendo as estreitas relações que uniam os eugenistas norte-americanos aos seus colegas germânicos, vejo a outra luz a indiferença com que certa opinião pública dos Estados Unidos acolheu as notícias sobre o assassinato em massa dos judeus e o afã do governo em dificultar a sua difusão pelos órgãos de informação. Em vez de constituir qualquer novidade, a «solução final» vinha na continuação de medidas que desde há bastante tempo eram anunciadas e promovidas por alguns nomes célebres do eugenismo.

A única coisa a fazer seria deslocar centenas de milhares de judeus da Europa para um lugar seguro. Desde a conferência que, por sugestão do presidente Roosevelt, reuniu delegados de trinta e dois países na cidade francesa de Évian, durante o Verão de 1938, com o objectivo de estudar as possibilidades de realojamento maciço dos judeus do Reich, e até ao final da guerra, foram-se acumulando nos gabinetes oficiais centenas de planos, totalmente fúteis porque tanto os Estados Unidos e a Grã-Bretanha como as nações da América Latina, com a parcial excepção da República Dominicana, haviam deixado muito clara em Évian a sua recusa a receber multidões de refugiados. Cada governo só se dispunha a sugerir asilos em países estrangeiros, que por seu turno remetiam para outros a solução do problema. Aliás, é digno de registo que uma boa parte dos projectos subsequentes à conferência de Évian, quando não propunha o envio dos judeus para congelarem no Alaska, previa o seu estabelecimento nas Guianas ou em qualquer região da África, tentando aproveitar as consequências da expansão imperialista do nacional-socialismo para conferir novo vigor ao colonialismo das democracias [32]. Esta enraizada má vontade explica que nos meados de 1941 o alto funcionário do Departamento de Estado que então superintendia esses assuntos, confesso admirador de Hitler e de Mussolini e obcecado com o perigo de uma conspiração judaico-comunista, se gabasse de ter conseguido estancar definitivamente a entrada de refugiados [33]. Com efeito, enquanto a guerra durou os consulados norte-americanos concederam um número de vistos inferior ao que a lei lhes permitia [34].

Em 1940, com o curioso argumento de que um afluxo de judeus estimularia o anti-semitismo latente na Grã-Bretanha e acabaria por ser prejudicial à própria comunidade judaica, o ministro do Interior britânico, aliás figura importante do Partido Trabalhista, rejeitou uma proposta do governo francês de Vichy, que se dispunha a permitir a emigração de crianças judaicas [35]. No final do ano seguinte, quando o embaixador da Turquia em Bucareste sugeriu ao representante dos Estados Unidos que os judeus romenos fossem transferidos para a Palestina através da Turquia, o Departamento de Estado norte-americano recusou-se a transmitir sequer esta proposta aos britânicos, invocando, entre outros argumentos, as dificuldades de transporte, a possibilidade de as comunidades judaicas dos demais países ameaçados pelo nazismo pedirem igualmente ajuda e a eventualidade de virem a surgir «pressões para um asilo no hemisfério ocidental» [36]. Nos primeiros meses de 1943 a Suécia, um país neutral, ofereceu-se para acolher vinte mil crianças judias provenientes da Europa ocupada pelos nazis, com a condição de a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pagarem os custos da sua alimentação e se comprometerem a repatriá-las no final da guerra, mas o governo norte-americano demorou tanto tempo a dar uma resposta que a ocasião se perdeu [37]. Em Março desse ano surgiu uma nova oportunidade de salvar um número muito considerável de vidas, quando a Bulgária anunciou que autorizaria os seus sessenta ou setenta mil judeus a emigrar para a Palestina, mas também então os Aliados não deram seguimento ao projecto [38]. E pouco depois um plano do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, que encarava a possibilidade de trocar cinco mil crianças judias eslavas pelos alemães detidos em território britânico, foi recusado pelo governo de Londres com o argumento de que não havia equivalência entre as duas situações porque as crianças não possuíam a cidadania britânica [39]. Com igual má vontade deparou a proposta do ditador fascista romeno, o marechal Antonescu, que em Julho de 1943 pretendeu vender aos Aliados, pela módica quantia de cento e setenta mil dólares, a vida de sessenta ou setenta mil judeus. O Departamento de Estado norte-americano demorou oito meses para autorizar as organizações judaicas a depositar na Suíça o dinheiro prometido, e como entretanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e o Ministério da Economia de Guerra se opunham, invocando a «dificuldade de receber um número considerável de judeus», acabou por não se fazer nada [40]. Do mesmo modo, quando o almirante Horthy, regente da Hungria, anunciou que, com o acordo das autoridades do Reich, autorizaria a saída de todos os judeus que tivessem recebido vistos para outros países, num total entre dezassete mil e vinte mil pessoas, os governos britânico e norte-americano tardaram tanto a responder que entretanto as forças armadas do Reich ocuparam o país e uma vez mais se deixou passar a oportunidade de salvar vidas judaicas [41].

Não espanta que tivesse ficado igualmente sem efeito o mais ambicioso dos projectos deste tipo. Em Abril de 1944, quando o aparelho produtivo nazi deparava já com obstáculos insuperáveis, o Reichsführer SS Himmler recorreu a um dirigente sionista húngaro para apresentar às potências aliadas ocidentais uma proposta em que se comprometia a poupar a vida de um número máximo de um milhão de judeus e a autorizar a sua emigração com a condição de receber em troca dez mil camiões, para serem usados somente na frente leste, e de lhe serem dadas acessoriamente quantidades consideráveis de café, chá, cacau, sabão e ainda outros artigos. Os Aliados recusaram o negócio e chegaram mesmo a prender o intermediário durante alguns meses [42]. Decerto lhes importava menos a vida dos judeus, e menos ainda encontrar alojamento para um milhão de refugiados, do que acelerar a deterioração das capacidades de transporte do Reich. O político e homem de negócios britânico que então desempenhava as funções de Ministro Residente no Cairo exclamou ao interrogar o emissário: «Salvar um milhão de judeus! E para fazer o quê com eles? Onde os vamos pôr?» [43].

«Tenho consultado uma massa de material, parte dele confidencial, que lida com a difícil situação dos judeus da Europa, que estão desaparecendo rapidamente, e com o destino de sugestões para os auxiliar, e é uma história assustadora», escreveu um jornalista em Junho de 1944 num semanário de Nova Iorque [44].

À deslocação maciça de judeus opunham-se, do lado norte-americano, as preocupações de dosagem racial que sustentavam as leis sobre a imigração, aquelas mesmas leis que Hitler tanto elogiara e que as autoridades de Washington se recusavam absolutamente a alterar [45]. Em 1933 o rabi Stephen Wise, uma das figuras mais proeminentes da comunidade judaica nos Estados-Unidos, esforçara-se em vão por que o Congresso facilitasse a imigração de judeus alemães [46]. Não era a estes apelos, mas a outros muito diferentes, que a maioria dos legisladores norte-americanos prestava atenção.

Em Março de 1939, perante o número cada vez maior de judeus que procurava desesperadamente fugir para os Estados Unidos, Harry Laughlin, uma das personalidades mais representativas do movimento eugenista norte-americano, que na década anterior desempenhara um importante cargo oficial junto ao Comité da Câmara de Representantes para a Imigração e a Naturalização, foi chamado a depor perante o Comité de Imigração do Senado, defendendo, como se esperava, medidas restritivas. Laughlin foi também ouvido pelo Comité Especial para a Imigração e a Naturalização da Câmara de Comércio do estado de Nova Iorque, e argumentou ali que o número de imigrantes judeus era já indevidamente elevado porque eles entravam não como judeus mas como nacionais dos países de origem. Laughlin publicou o seu relatório em Maio de 1939 sob os auspícios da Câmara de Comércio e teve o cuidado de enviá-lo ao ministro do Interior do Reich, Wilhelm Frick, bem como aos cientistas mais representativos do movimento eugenista germânico [47]. Por algum motivo ele havia recebido em 1936 o título de doutor honoris causa pela Universidade de Heidelberga [48].

Entretanto, os preconceitos racistas dos cônsules norte-americanos tinham-nos levado a reforçar os obstáculos à imigração [49]. O anti-semitismo continuou a ser corrente nos Estados Unidos durante a guerra, mesmo, como vimos, em departamentos governamentais; e as sondagens de opinião revelavam que uma maioria consistente, e cada vez mais numerosa, da população do país se opunha à aceitação de imigrantes judeus [50]. Quanto ao Reino Unido, talvez sirva de indicador de um certo estado de espírito nos meios dirigentes o facto de nas ilhas britânicas do canal da Mancha ocupadas pelos nazis durante a guerra várias autoridades locais terem colaborado na prisão e na deportação dos judeus [51]. Mas acima de tudo, para o governo de Londres foi o interesse em manter um equilíbrio na Palestina entre as comunidades judaica e árabe que tornou inconveniente qualquer afluxo maciço de refugiados [52]. Cada um dos aliados procurava lançar sobre o outro o ónus da resolução do problema, e como nenhum estava disposto a abrir as fronteiras aos judeus, ambos deram a Hitler e aos SS o tempo de prosseguirem a «solução final». Nas palavras do historiador que mais minuciosamente estudou estas questões, «o Departamento de Estado norte-americano mostrava-se relutante em empreender uma acção em grande escala, o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico temia um êxito em grande escala e na Europa ocupada pelo Eixo o número de judeus ia-se reduzindo cada vez mais» [53].

Em meados de 1942 a resistência clandestina do ghetto de Varsóvia, através de contactos mantidos com a resistência polaca pró-britânica, fez chegar a Londres um apelo para que o povo alemão fosse ameaçado de represálias em consequência do genocídio dos judeus, mas a BBC não lhe deu nenhuma publicidade [54]. Pela mesma via, o governo polaco no exílio em Londres recebeu em Maio de 1943 um pedido de socorro dos insurrectos do ghetto de Varsóvia [55], sem que os Aliados tivessem reagido. Igualmente reveladora foi a recusa sistemática das autoridades britânicas de alvejar os campos de extermínio, conforme lhes era insistentemente solicitado pelas organizações secretas da resistência judaica e polaca, bem como por organismos de resistência no interior dos próprios campos [56]. De igual modo, e embora conseguissem mais de uma vez enviar aos Aliados a indicação das junções ferroviárias por onde passavam os comboios [trens] que transportavam judeus para os campos de extermínio, os membros da resistência judaica depararam sempre com o desinteresse dos comandantes da aviação por efectuar bombardeamentos que poderiam ter salvo a vida a um número de pessoas muitíssimo considerável, talvez mesmo centenas de milhares [57].

Aliás, não seriam necessários tantos esforços e tanta devoção, porque desde Fevereiro de 1941 a contra-espionagem britânica decifrara o código secreto dos serviços ferroviários do Reich e estava, portanto, ao corrente do transporte de judeus, sem que as autoridades militares aproveitassem estas informações para tentar impedir o genocídio. Em Maio de 1944 a espionagem britânica e a norte-americana haviam passado a dispor de fotografias aéreas pormenorizadas do complexo concentracionário de Auschwitz, incluindo as câmaras de gás [58]; novas fotografias foram tiradas em Agosto, mais detalhadas ainda do que as anteriores, mas apesar de membros da organização sionista terem fornecido ao governo britânico uma documentação completa sobre o que se passava em Auschwitz, a força aérea preferiu bombardear as instalações petrolíferas próximas e não se interessou pelo campo de extermínio [59]. Embora a defesa anti-aérea do Reich tivesse alertado as autoridades do complexo concentracionário para o risco representado pelas chamas dos fornos crematórios, claramente visíveis pela aviação inimiga [60], só duas vezes, em Setembro e em Dezembro de 1944, e «por engano» ou «por acaso», nas palavras de um reputado historiador, algumas bombas destinadas às instalações petrolíferas atingiram o campo de Auschwitz [61].

Ao ler a obra que um dos principais especialistas da história da guerra dedicou ao Special Operations Executive, SOE, a Direcção das Operações Especiais, um organismo secreto britânico de carácter militar, criado para prosseguir acções de sabotagem e de apoio à resistência, é notável que não exista uma palavra sequer a respeito de qualquer ajuda aos meios judaicos dos países ocupados. Não sei qual foi maior, o cinismo ou a candura, quando este historiador escreveu: «Os horrores do holocausto estavam além das esferas que o SOE conhecia ou em que agia. Por outras palavras, o SOE não podia fazer muito pela Polónia e menos ainda pelos judeus da Polónia, a não ser rezar […]» [62].

Mesmo depois da ocupação da Hungria pelas forças armadas do Reich em Março de 1944, quando a guerra se aproximava do fim e os Aliados dispunham já da iniciativa em todas as frentes, ficaram igualmente sem resposta os pedidos de bombardeamento dos centros administrativos onde estava a ser organizada a última etapa do genocídio e da linha de caminho de ferro que levava a Auschwitz [63]. Um relatório secreto do Ministério da Aviação britânico considerou que essa acção poria a vida de pilotos em risco «sem nenhuma utilidade» e o vice-ministro da Guerra norte-americano rejeitou quatro pedidos de bombardeamento das linhas de caminho de ferro que conduziam os judeus para os campos de extermínio, dando instruções para «“matar” a questão» [64].

Haveria dificuldades técnicas insuperáveis? Não parece, porque em 1944 foram várias vezes bombardeadas as instalações industriais situadas em redor de alguns grandes campos, conseguindo-se que os dormitórios dos presos não fossem atingidos. Numa dessas ocasiões, em Agosto, os bombardeiros britânicos e norte-americanos destruíram completamente a fábrica de armamento adjacente ao campo de concentração de Buchenwald, sem que uma só bomba tivesse caído no lado de dentro dos arames farpados [65]. E no mês seguinte as fábricas da IG Farben em Auschwitz foram bombardeadas, mas as instalações ferroviárias, as câmaras de gás e os fornos crematórios foram deixados intactos [66].

Ou seria o medo de falhar a pontaria e atingir inocentes que levou os Aliados a abster-se de alvejar as instalações de extermínio? Mas o próprio organismo de resistência dos internados de Auschwitz, nas mensagens enviadas no primeiro semestre de 1944 pedindo o bombardeamento das câmaras de gás e das instalações crematórias, recomendou explicitamente que os comandantes aliados não se preocupassem com as baixas que pudessem causar entre os detidos [67].

Esta era, aliás, a prática corrente. Em Fevereiro de 1944 a aviação britânica havia atacado o estabelecimento prisional de Amiens numa operação destinada a propiciar a fuga de membros da resistência francesa, e de um total de cerca de mil presos, embora oitenta e sete morressem no bombardeamento, mais de duzentos e cinquenta conseguiram evadir-se e retomaram a actividade clandestina [68]. Dois meses depois, aviões dos Estados Unidos conseguiram bombardear exactamente o edifício de Haia onde a Gestapo guardava as fichas sobre a população holandesa [69] e com igual precisão, no final de Outubro, em resposta a um pedido da resistência dinamarquesa, a aviação britânica destruiu a sede da Gestapo em Aarhus, inutilizando o ficheiro político, permitindo a fuga de alguns presos e fazendo a operação apenas uma vítima civil [70]. De novo em Março do ano seguinte, e também acedendo às solicitações da resistência dinamarquesa, aviões britânicos e norte-americanos atacaram a sede da Gestapo em Copenhaga e libertaram trinta e dois dos trinta e oito dirigentes antinazis aí detidos, ficando mortos os outros seis, além de cento e doze vítimas civis, entre as quais oitenta e seis crianças [71]. Já no último dia de 1944 a aviação britânica havia atingido o edifício da Gestapo em Oslo, destroçando-o em grande parte, embora provocando vários mortos entre a população civil [72].

Por que motivo recusar a centenas de milhares de judeus expostos a um massacre iminente o que não se recusava a algumas dezenas de militantes e dirigentes da resistência francesa, holandesa, norueguesa ou dinamarquesa? «Teria o Estado de Israel surgido», perguntou recentemente um historiador israelita anti-sionista, «se na década de 1920 os Estados Unidos não tivessem fechado as fronteiras aos imigrantes provenientes da Europa Central e de Leste, uma política prosseguida implacavelmente durante a década seguinte contra os refugiados que escapavam à perseguição nazi e, ainda na sequência da segunda guerra mundial, para com os judeus que abandonavam a Europa?» [73]. Entendem agora para que serve o mito da culpabilidade alemã?

Notas

[1] Martin Gilbert, The Second World War, Londres: The Folio Society, 2011, vol. I: From the Coming of War to Alamein and Stalingrad, 1939-1942, págs. 46-47.
[2] Howard M. Sachar, A History of Israel. From the Rise of Zionism to our Time, Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1976, pág. 238; Peter Watson, The German Genius. Europe’s Third Renaissance, the Second Scientific Revolution, and the Twentieth Century, Londres: Simon & Schuster, 2011, pág. 737.
[3] Lenni Brenner, Zionism in the Age of the Dictators, Londres e Canberra: Croom Helm, Westport: Lawrence Hill, 1983, pág. 230.
[4] Id., ibid., pág. 230.
[5] M. Gilbert, op. cit., vol. I, pág. 392; Emmanuel Ringelblum, Crónica do Ghetto de Varsóvia, ed. org. por Jacob Sloan, Lisboa: Morais, 1964, págs. 317-318; «Ringelblum, Emmanuel», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.), The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 949; H. M. Sachar, op. cit., pág. 238. Acerca das transmissões da BBC ver também Carmen Callil, Má Fé. Uma História Esquecida de Pátria e Família, Colares: Pedra da Lua, 2009, págs. 321, 350, 364. Segundo M. Gilbert, op. cit., vol. I, pág. 384, o jornal clandestino do Partido Socialista Polaco publicara estas informações também em Junho.
[6] «Schulte, Eduard», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 982.
[7] L. Brenner, op. cit., pág. 231; M. Gilbert, op. cit., vol. I, pág. 408; Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Londres: W. H. Allen, pág. 718; H. M. Sachar, op. cit., pág. 238.
[8] «Belzec», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 123; «Karski, Jan», em id., ibid., págs. 643-644.
[9] M. Gilbert, op. cit., vol. II: From Casablanca to Post-War Repercussions, 1943-1945, pág. 518. Acerca de outro julgamento, realizado em Dezembro de 1943, ver a pág. 560.
[10] I. F. Stone em The Nation, 10 de Junho de 1944, reproduzido em Katrina Vanden Heuvel e Hamilton dos Santos (orgs.), O Perigo da Hora. O Século XX nas Páginas do The Nation, São Paulo: Scritta, 1994, pág. 247. Poucos meses depois, um judeu de Dresden calculou que seis ou sete milhões dos seus correligionários tivessem sido mortos. Ver a entrada de 24 de Outubro de 1944 do diário de Victor Klemperer em Martin Chalmers (org.), To the Bitter End. The Diaries of Victor Klemperer, 1942-1945, Londres: The Folio Society, 2006, pág. 430.
[11] John Morton Blum, V Was for Victory. Politics and American Culture during World War II, Nova Iorque e Londres: Harcourt Brace Jovanovich, 1976, págs. 176, 179; L. Brenner, op. cit., 231; Henry L. Feingold, Bearing Witness. How America and Its Jews Responded to the Holocaust, Syracuse: Syracuse University Press, 1995, págs. 81, 173; R. Hilberg, op. cit., págs. 718-720; H. M. Sachar, op. cit., pág. 238.
[12] M. Gilbert, op. cit., vol. I, págs. 250-251, 259, 264-265, 272, 410.
[13] M. R. D. Foot, SOE. An Outline History of the Special Operations Executive, 1940-1946, Londres: The Folio Society, 2008, pág. 231.
[14] A carta de Churchill publicada no Jewish Chronicle de 14 de Novembro de 1941 encontra-se citada em M. Gilbert, op. cit., vol. I, págs. 297-298, que cita na pág. 434 declarações de Churchill no mesmo sentido num discurso proferido em Londres em 29 de Outubro de 1942.
[15] M. Gilbert, op. cit., vol. I, págs. 449-450; R. Hilberg, op. cit., pág. 719.
[16] Bernard Avishai, The Tragedy of Zionism. Revolution and Democracy in the Land of Israel, Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 1985, págs. 161-162; H. L. Feingold, op. cit., pág. 7; H. M. Sachar, op. cit., págs. 238-239.
[17] Citado em P. Watson, op. cit., pág. 700.
[18] «Bermuda Conference», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 128; J. M. Blum, op. cit., pág. 178; H. L. Feingold, op. cit., pág. 83.
[19] H. L. Feingold, op. cit., págs. 8, 84; «War Refugee Board», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 1260.
[20] «Palestine», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 864.
[21] Sheila Faith Weiss, The Nazi Symbiosis. Human Genetics and Politics in the Third Reich, Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2010, págs. 50, 56.
[22] Edwin Black, War Against the Weak. Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Nova Iorque e Londres: Four Walls Eight Windows, 2003, págs. 281 e segs.
[23] Citados respectivamente em id., ibid., págs. 297, 298.
[24] Id., ibid., págs. 301-302.
[25] Id., ibid., pág. 313.
[26] Esta passagem do artigo de Clarence Campbell encontra-se citada em id., ibid., 315. Ver igualmente Sh. F. Weiss, op. cit., pág. 277.
[27] As declarações de Marie Kopp encontram-se resumidas e citadas em E. Black, op. cit., pág. 315.
[28] Estas passagens do artigo de Hilda von Hellmer Wullen estão citadas em Sh. F. Weiss, op. cit., pág. 278.
[29] O texto de Lothrop Stoddard está sintetizado em Stefan Kühl, The Nazi Connection. Eugenics, American Racism, and German National Socialism, Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 1994, págs. 61-62. As citações encontram-se em E. Black, op. cit., pág. 318 e S. Kühl, op.cit., pág. 62.
[30] O artigo de Tage U. H. Ellinger encontra-se citado em E. Black, op. cit., págs. 415-416. Ver igualmente S. Kühl, op. cit., pág. 60.
[31] Sh. F. Weiss, op. cit., págs. 281-282.
[32] Acerca da conferência de Évian e dos planos de asilo ver H. L. Feingold, op. cit., págs. 74-75, 94-140, 188. «[…] os países estrangeiros não estavam desejosos de receber judeus indigentes […]», escreveram J. Noakes e G. Pridham (orgs.), Nazism 1919 – 1945. A Documentary Reader, Exeter: University of Exeter Press, 2008-2010, vol. II: State, Economy and Society 1933-1939, pág. 354.
[33] Sobre Breckinridge Long, vice-secretário do Departamento de Estado encarregado do Departamento de Problemas Especiais, ver H. L. Feingold, op. cit., págs. 79, 81, 86, 143, 172-173.
[34] Id., ibid., págs. 142, 173, 193.
[35] Id., ibid., pág. 64.
[36] Citado por R. Hilberg, op. cit., pág. 720 n. 19.
[37] I. F. Stone em The Nation, 10 de Junho de 1944, reproduzido em K. V. Heuvel et al., op. cit., pág. 247.
[38] R. Hilberg, op. cit., págs. 720-721; H. M. Sachar, op. cit., pág. 238.
[39] R. Hilberg, op. cit., pág. 721.
[40] J. M. Blum, op. cit., págs. 179-180; R. Hilberg, op. cit., pág. 721. A frase citada encontra-se em R. Hilberg, op. cit., pág. 721.
[41] H. L. Feingold, op. cit., págs. 155-160.
[42] Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem. A Report on the Banality of Evil (ed. rev. e ampl.), Harmondsworth: Penguin, 1994, págs. 116, 144, 198; «Brand, Joel», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 155; L. Brenner, op. cit., págs. 252-255; H. L. Feingold, op. cit., págs. 160-162; R. Hilberg, op. cit., págs. 544, 724-728; H. M. Sachar, op. cit., pág. 239. H. Sachar referiu somente oitocentos mil judeus. Com efeito, R. Hilberg, na pág. 544, afirmou que Eichmann, em representação directa de Himmler, propôs trocar a vida de todos os judeus magiares pelos camiões e os restantes artigos; ora, escreveu aquele historiador na pág. 543, havia na Hungria setecentos e cinquenta mil judeus condenados ao extermínio. No entanto, e sempre segundo R. Hilberg, pág. 724, na primeira das reuniões com o intermediário sionista Eichmann mencionou a possibilidade de salvar a vida a um milhão de judeus, acrescentando que eles podiam ser provenientes não só da Hungria mas também de outros países. Como, porém, consoante a proposta de Eichmann, até chegar uma resposta dos Aliados o programa de extermínio continuaria a efectuar-se (pág. 544) e como os SS estavam dispostos a realizar o negócio em parcelas, transaccionando quantidades sucessivas de camiões por quantidades sucessivas de judeus (pág. 724), o número de pessoas que teriam a vida salva era de antemão indeterminado, e não fixo. Um milhão seria decerto o montante máximo. Note-se ainda que, a crer em J. Noakes et al., op. cit., vol. IV: The German Home Front in World War II, págs. 260, 262, no final de 1944 o Terceiro Reich deparava com especiais dificuldades na produção de camiões.
[43] Este desabafo de Lord Moyne encontra-se citado em H. L. Feingold, op. cit., págs. 87-88.
[44] I. F. Stone em The Nation, reproduzido em K. V. Heuvel et al., op. cit., pág. 245.
[45] B. Avishai, op. cit., pág. 162; J. M. Blum, op. cit., págs. 175-176, 178; L. Brenner, op. cit., págs. 238, 244; Sh. F. Weiss, op. cit., pág. 272.
[46] Edwin Black, The Transfer Agreement. The Dramatic Story of the Pact between the Third Reich and Jewish Palestine (ed. rev. e ampl.), Washington: Dialog, 1999, págs. 16-17, 280-281.
[47] E. Black, 2003, op. cit., págs. 393-394. Ver também Sh. F. Weiss, op. cit., pág. 283.
[48] E. Black, 2003, op. cit., pág. 312; Sh. F. Weiss, op. cit., pág. 280.
[49] E. Black, 1999, op. cit., págs. 205, 393.
[50] J. M. Blum, op. cit., págs. 172-175; Richard Polenberg, War and Society. The United States, 1941-1945, Filadélfia, Nova Iorque e Toronto: J. B. Lippincott, 1972, pág. 138; George H. Roeder Jr., The Censored War. American Visual Experience during World War Two, New Haven e Londres: Yale University Press, 1993, pág. 172 n. 3. Segundo H. L. Feingold, op. cit., págs. 92, 174, 272, uma sondagem de opinião efectuada nos Estados Unidos em Dezembro de 1944 revelou que setenta e cinco por cento dos inquiridos calculavam as vítimas do genocídio na ordem das dezenas de milhar e não dos milhões. Ora, como em Junho desse ano um jornalista publicara numa revista de Nova Iorque a estimativa de que montariam a quatro ou cinco milhões as vítimas do genocídio, concluo que a opinião pública acreditava naquilo que lhe convinha. Ver o artigo de I. F. Stone em The Nation, 10 de Junho de 1944, reproduzido em K. V. Heuvel et al., op. cit., pág. 247.
[51] «Channel Islands», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 202.
[52] J. M. Blum, op. cit., págs. 175, 177; R. Hilberg, op. cit., pág. 718.
[53] R. Hilberg, op. cit., pág. 721. Mais sinteticamente, H. L. Feingold, op. cit., pág. 255 escreveu que «os judeus da Europa ficaram esmagados entre duas mós gémeas, a da vontade assassina dos nazis e a da cruel indiferença dos Aliados».
[54] H. L. Feingold, op. cit., págs. 64-65, 87; R. Hilberg, op. cit., pág. 320.
[55] Posfácio de Jacob Sloan em E. Ringelblum, op. cit., pág. 363.
[56] L. Brenner, op. cit., págs. 249, 256; R. Hilberg, op. cit., pág. 725; Hermann Langbein, La Résistance dans les Camps de Concentration Nationaux-Socialistes, 1938-1945, [Paris]: Arthème Fayard, 1981, págs. 75, 253-254.
[57] R. Hilberg, op. cit., págs. 542, 723, 725; H. Langbein, op. cit., págs. 253-254. Argumentou H. L. Feingold, op. cit., pág. 15 que «não existe hoje consenso acerca da eficácia dos bombardeamentos das câmaras de gás e das linhas de caminhos de ferro que as serviam», mas penso que as decisões técnicas tomadas durante a segunda guerra mundial devem ser avaliadas consoante os critérios e as convicções daquela época.
[58] M. Gilbert, op. cit., vol. II, págs. 597, 617.
[59] Id., ibid., vol. II, págs. 672-674, 686, 720.
[60] J. Noakes et al., op. cit., vol III: Foreign Policy, War and Racial Extermination, pág. 593.
[61] M. Gilbert, op. cit., vol. II, págs. 686, 723.
[62] M. R. D. Foot, op. cit., pág. 231.
[63] H. L. Feingold, op. cit., pág. 150; M. Gilbert, op. cit., vol. II, pág. 635.
[64] Citados em M. Gilbert, op. cit., vol. II, pág. 635-636. O lúgubre trocadilho reproduz literalmente o original, «to “kill” this».
[65] Eugen Kogon, L’État SS. Le Système des Camps de Concentration Allemands, Paris: Seuil, 2002, págs. 308-309.
[66] H. Langbein, op. cit., pág. 254.
[67] Id., ibid., pág. 253.
[68] «Amiens Prison Raid», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 32. Todavia, M. Gilbert, op. cit., vol. II, pág. 581 mencionou noventa e seis presos mortos, incluindo cinquenta e seis membros da resistência, e só cinquenta fugitivos.
[69] M. Gilbert, op. cit., vol. II, pág. 600.
[70] Id., ibid., vol. II, pág. 707.
[71] Id., ibid., vol. II, págs. 755-756; «Shell House Raid», em I. C. B. Dear et al., op. cit., pág. 1000. Ver também M. R. D. Foot, op. cit., pág. 252.
[72] M. Gilbert, op. cit., vol. II, pág. 724.
[73] Shlomo Sand, The Invention of the Jewish People, Londres e Nova Iorque: Verso, 2010, pág. 323.

As ilustrações deste artigo reproduzem obras de Jörg Immendorff (a primeira e a quinta a contar de cima) e de Anselm Kiefer (todas as outras).

8 COMENTÁRIOS

  1. Enfim, o longo artigo é um exemplo de como , a partir de fatos historiográficos – basicamente: descaso com a situação judaica, utilização de bombardeios para gerar terror na população alemã, relativo fracasso de bombardeios para debilitar o parque industrial alemão – que visariam desconstruir um mito constrói-se outro mito.
    Malgrado os vitoriosos da Segunda Guerra Mundial – estadunidenses, britânicos e soviéticos – tenham-na reduzido a um conflito entre o bem e o mal, negar a culpabilidade alemã – mesmo que esta possa e deva ser, em alguns pontos relativizada – é negacionismo rasteiro.

    Selecionei dois trechinhos…
    “Ou os Aliados bombardeavam a população operária dos países submetidos ao fascismo ou procuravam ampliar e fortalecer as suas redes de contactos com a resistência operária antifascista”
    Mesmo supondo que essa tal resistência operária antifascista tivesse alguma expressão significativa, como se dariam as operações de cooptação?
    Equipes do SAS e da SOE – todas fluentes em alemão – se infiltrariam na Alemanha , por terra, mar e ar, e iriam puxar greves e operações de sabotagem na indústria alemã?
    … O articulista deve ser fã do BASTARDOS INGLÓRIOS, do Tarantino.
    Se era tão fácil, por que o pessoal do NKVD, bem mais próximo da Alemanha, não adotou a tática?

    “Pela mesma via, o governo polaco no exílio em Londres recebeu em Maio de 1943 um pedido de socorro dos insurrectos do ghetto de Varsóvia [55], sem que os Aliados tivessem reagido.”
    O que o articulista sugeriria?
    O lançamento da 82ª , da 101ª divisões aerotransportadas estadunidenses e da 1ª divisão paraquedista britânica (reforçada pela brigada polonesa de paraquedistas) em Varsóvia?
    Se Arnhem era uma ponte longe demais, imagina Varsóvia…
    Em 1944, durante o Levante de Varsóvia – não confundir com o Levante do Gueto de Varsóvia – realizado pela resistência polonesa, os soviéticos, distando menos de 100km da cidade, pouquíssimo fizeram –se é que fizeram alguma coisa – para ajudar os insurretos.
    (Pelo contrário: um grande número de resistentes poloneses que escaparam dos nazistas foi morta ou aprisionada pelo soviéticos.)

  2. Quanto ao que escreve o comentador acima:
    1) Os bombardeamentos aliados seguindo a táctica «bombardeamento de áreas» não atingiram só a população civil do Terceiro Reich (não exclusivamente alemã), sobretudo população operária. Atingiram igualmente a população civil da Itália e da França ocupada. A resistência francesa chegou a reclamar diversas vezes contra esse tipo de bombardeamentos.
    2) A força aérea britânica relegou para um plano mais do que secundário o auxílio à resistência operária antifascista nos países onde ela existia, na França, na Checoslováquia e na Polónia. Há uma bibliografia razoável a este respeito, mas bastará ler, para se iniciar no problema, o livro de M. R. D. Foot sobre o SOE, e faço notar que Foot é, na matéria, quem mais se aproxima de um historiador oficial.
    3) Quanto ao comportamento adoptado pela União Soviética relativamente a esses resistentes, remeto o comentador para o que escrevi no artigo «Os náufragos (2ª Parte)» http://passapalavra.info/2009/09/9960 .
    4) Quanto ao facto de os bombardeamentos aliados não terem apoiado os insurrectos do ghetto de Varsóvia nem os organismos de resistência dos campos de concentração ou de extermínio situados na Polónia ocupada pelo Terceiro Reich, quando poderiam tecnicamente tê-lo feito, o autor do comentário deveria ter lido pelo menos o que escreveram as fontes citadas nas nn. 55, 56 e 57.
    5) Quanto à última linha e meia do comentário, remeto para o que escrevi no artigo «Os náufragos (2ª Parte)», já citado.

  3. “1) Os bombardeamentos aliados seguindo a táctica «bombardeamento de áreas» não atingiram só a população civil…”
    É fato. Porém, não nos esqueçamos que, em princípio, alvos na França ocupada, na Itália ou na Romênia – caso dos campos petrolíferos de Ploesti – eram militarmente justificáveis. Os dois últimos países eram inclusive parte do Eixo. Não discordo, no entanto, que a estratégia de bombardear a população alemã para que esta se insurgisse contra Hitler – proposta tanto por Bomber Harris quanto pelo próprio Churchill – constitui verdadeiro crime de guerra.
    Repito: é um fato.
    Contudo, os alemães não bombardearam a Grã-Bretanha na mesma escala simplesmente porque a Luftwaffe – uma excelente força aérea tática, mas com limitadíssima capacidade estratégica – não dispunha de bombardeiros eficazes.

    “2) A força aérea britânica relegou para um plano mais do que secundário”
    Não li a obra referida; porém, até maiores informações, não percebo como tal cooptação da suposta resistência poderia ser proficuamente operacionalizada.
    Em rigor, o peso militar dos movimentos guerrilheiros de resistência – salvo na União Soviética, onde teve um caráter muito particular, na Iugoslávia e, talvez, na Grécia – foi desprezível.

    “3) Quanto ao comportamento adoptado pela União Soviética”
    “5) Quanto à última linha e meia do comentário, remeto”
    Aqui, li o teu outro artigo e dou-me por satisfeito.

    “4) Quanto ao facto de os bombardeamentos aliados não terem apoiado os insurrectos”
    Há dúvidas se a operação era viável; mas também concordo que os aliados ocidentais não se mostraram verdadeiramente preocupados com o extermínio de judeus.

    Feitas as observações acima, permanece a minha crítica geral ao teu artigo. Qual seja; a de não se deve desconstruir um mito, sub-repticiamente, construindo um outro.
    Parece-me que a crítica ao unilateralismo da história oficial – contada pelos vitoriosos – no caso da Segunda Guerra Mundial, na Europa, salvo melhor juízo, poderia se beneficiar do ponto de visada de O IMPÉRIO DE HITLER, do historiador britânico Mark Mazower. Nessa obra buscou-se compreender a ascensão do nazismo e a eclosão da guerra na perspectiva da história alemã desde a unificação e suas relações com a política das grandes potências europeias.
    Destarte, mostra-se que o expansionismo alemão preconizado por Hitler subverte a ordem europeia não porque fosse moralmente condenável, mas tão-somente por aplicar às próprias potências neocoloniais – Grã-Bretanha, França , Bélgica e Holanda – a lógica do colonialismo levado a cabo em América Latina, África , Ásia e Oceania.
    (Em A HISTÓRIA DAS COLONIZAÇÕES, de Marc Ferro, há uma citação de Aimée Cesaire que resume bem esse ponto vista. Infelizmente, não pude recuperá-la.)
    Nesse contexto, o massacre de judeus e, de modo geral, de eslavos, sem que se negue o terrível impacto humano, é um elemento relativamente secundário. Mesmo considerando que , para os interesses imediatos da Alemanha em guerra , tenha se revelado contraproducente , além de um imenso desperdício de mão-de-obra. Por exemplo: a insatisfação de ucranianos com o stalinismo , mediante algumas concessões alemães, poderia ter sido aproveitada para arregimentar aliados em medida muitíssimo maior do que efetivamente se arregimentou.
    O teu artigo, ao focar no descaso em relação ao extermínio de judeus e na desconsideração por (discutíveis) resistências operárias antifascistas, faz parecer que uma atitude contrária era uma obrigação moral dos aliados ocidentais.
    Ora, o que tínhamos eram países em guerra, e não um confronto entre o bem e o mal. Não se pretendia simplesmente depor Hitler e instaurar um outro regime, mas sim, derrotar a Alemanha e seus aliados.
    (Curiosamente, na tua condenação aos aliados não mencionas a larga cooptação de ex-nazistas no imediato pós-guerra e a facilidade com que muitos foram “reabilitados”.)
    Enfim, o heroísmo humanitário dos aliados ocidentais e a Grande Guerra Patriótica soviética são tão mitológicos quanto uma isenção da culpabilidade alemã.
    Aliás, a Segunda Guerra Mundial é um caldeirão de mitos…

    Saudações.

  4. Agincourt,
    A minha preocupação quando escrevo história nunca é pesar culpas e méritos. No caso desta série de três artigos, desvendei o mito da culpabilidade alemã, e exclusivamente esse, por um motivo que indiquei logo no início da 1ª parte http://passapalavra.info/2012/11/66768 .
    Quanto ao choque entre imperialismos na segunda guerra mundial, é sem dúvida interessante verificar que o mesmo manifest destiny que presidiu à expansão dos Estados Unidos primeiro no interior do continente e depois além-mares foi invocado por Mussolini em Tripoli (Pierre MILZA, Mussolini, [Paris]: Fayard, 1999, pág. 426), pelos fascistas japoneses na Ásia (BA Maw, Breakthrough in Burma. Memoirs of a Revolution, 1939-1946, New Haven e Londres: Yale University Press, 1968, págs. 106, 308) bem como pelo marechal Keitel, chefe do supremo comando das forças armadas nazis desde 1938 até ao final da guerra (G. M. GILBERT, «Psychologie de la Dictature: Frank, Keitel, Hoess», Les Temps Modernes, 1954, X, nº 107, pág. 686). Também a doutrina Monroe foi invocada antes da guerra pelo jurista nazi Carl Schmitt para justificar a política expansionista do Führer (Manuel de LUCENA, «Ensaios sobre o Tema do Estado», Análise Social, 1976, XII, nº 47, pág. 661; Georg LUKÁCS, The Destruction of Reason, Londres: The Merlin Press, 1980, pág. 661). No seu discurso perante o Reichstag em 28 de Abril de 1939, respondendo às propostas de paz efectuadas por Roosevelt duas semanas antes, Hitler afirmou que «nós, os alemães, professamos a mesma doutrina [Monroe] quanto à Europa, pelo menos no que diz respeito à esfera de influência e aos interesses do Reich germânico» (BENOIST-MECHIN, Histoire de l’Armée Allemande, Paris: Albin Michel, 1964-1966, vol. VI, págs. 87-88). Também em Novembro do ano seguinte, ao encontrar-se em Berlim com Molotov, o Führer disse-lhe que o Reich estava a conduzir conversações com a França, a Itália e a Espanha para estabelecerem na Europa e na África «uma espécie de Doutrina Monroe» (J. NOAKES e G. PRIDHAM (orgs.), Nazism 1919 – 1945. A Documentary Reader, vol. III: Foreign Policy, War and Racial ExterminationI, Exeter: University of Exeter Press, 2010, pág. 194).
    Quanto ao massare dos judeus (a anti-raça) e dos eslavos (a sub-raça) não o considero de modo nenhum «um elemento relativamente secundário». Pelo contrário, parece-me um elemento crucial para a compreensão de tudo o que se passou, por motivos que indiquei no meu livro Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Afrontamento, 2003, págs. 259-301, 581-638).
    Mas vou concentrar-me agora no tema que originou esta troca de comentários. A questão não é a de a população civil poder contar-se entre as vítimas de bombardeamentos, porque nem sempre há a possibilidade de separar claramente os alvos militares dos alvos civis. A questão é a de se ter dado prioridade aos bombardeamentos sobre a população civil. Em Setembro de 1940 o Gabinete de Guerra britânico decidiu que, se os pilotos fossem incapazes de encontrar os alvos militares e económicos que lhes haviam sido designados, largassem as bombas em quaisquer outros lugares, indicando no mês seguinte que, se o mau tempo impossibilitasse o bombardeamento dos objectivos previstos, os pilotos deveriam lançar as bombas sobre grandes cidades e determinando também que esta orientação não fosse levada ao conhecimento do público (Martin GILBERT, The Second World War, vol. I: From the Coming of War to Alamein and Stalingrad, 1939-1942, Londres: The Folio Society, 2011, págs. 147, 157). Em Fevereiro de 1942 o marechal do ar Arthur Harris recebeu o comando dos bombardeiros da RAF com instruções do Gabinete de Guerra para desencadear uma ofensiva sistemática contra as cidades alemãs «tendo como alvo principal o moral da população civil e especialmente dos operários da indústria» (Angus CALDER, The Myth of the Blitz, Londres: Jonathan Cape, 1991, pág. 39; George VASSILTCHIKOV (org.), The Berlin Diaries 1940-1945 of Marie “Missie” Vassiltchikov, Londres: The Folio Society, 1991, pág. 71). Como escreveu nessa época um alto funcionário britânico que entrara para o Ministério da Aviação em 1930, onde chegara ao cargo de Principal Secretário Assistente, o comando dos bombardeiros «demonstrou ser um eficiente organizador de migrações de massa» (J. M. SPAIGHT, Bombing Vindicated, Londres: Geoffrey Bless, 1944, pág. 94). E apesar de a directiva emanada em Junho de 1943 do comité conjunto dos chefes de estado-maior anglo-americanos, confirmada dois meses depois por Roosevelt e Churchill na conferência de Québec, ter dado prioridade aos objectivos industriais, o marechal do ar Harris continuou a considerar mais importantes os alvos civis. De novo em Setembro de 1944 o comité conjunto dos chefes de estado-maior insistiu que os bombardeiros procurassem instalações industriais, mas o resultado prático foi o oposto («Combined Bomber Offensive» e «Portal, Marshal of the Royal Air Force Sir Charles», em I. C. B. DEAR e M. R. D. FOOT (orgs.), The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, págs. 253 e 910). E tudo isto apesar de novos instrumentos, novos aviões e novas técnicas de combate permitirem que os Aliados começassem a proceder sistematicamente a operações durante o dia e que, mesmo de noite ou com nuvens, atingissem os alvos com grande precisão (A. N. FRANKLAND, «Strategic Air Offensives, 1. Against Germany», em I. C. B. DEAR et al., op. cit., págs. 1071-1073; Martin GILBERT, op. cit., pág. 453; D. RICHARDS, «Air Power», em I. C. B. DEAR et al., op. cit., págs. 19-20).
    A questão fundamental é que se atingiram as cidades, sobretudo os bairros operários, e se pouparam as fábricas. Passando por Koblenz em Agosto ou Setembro de 1944, o fascista francês Lucien Rebatet verificou que, embora estivesse «no coração do Ruhr, o alvo número um da Royal Air Force e das fortalezas voadoras americanas», «as fábricas […] estão muito menos atingidas do que as cidades» (Lucien REBATET, Lés Mémoires d’un Fasciste, vol. II: 1941-1947, [s. l.]: Pilon, 2007, pág. 109 http://www.vho.org/aaargh/fran/livres10/Rebatet2.pdf ). O balanço final foi feito por um dos principais especialistas franceses da economia alemã do imediato pós-guerra: «É um facto de importância capital, e que domina toda a economia alemã de hoje, que os bombardeamentos tivessem sido muito mais sensíveis sobre as cidades e os nós de comunicação do que sobre as forças produtivas. […] a indústria pesada, base essencial da indústria de guerra, saía do conflito menos atingida do que qualquer outra […] Esta situação das estruturas de produção, que foram relativamente poupadas, contrastava com as destruições muito mais graves dos meios de comunicação. […] Mas nenhuma ruína se comparava às das grandes cidades. […] Os elos resultantes de interesses económicos ou financeiros passando por cima das fronteiras […] foram em alguns casos um factor de protecção […] No mesmo sentido pôde exercer efeitos o desejo de proteger certas empresas na vanguarda do progresso técnico» (André PIETTRE, L’Économie Allemande Contemporaine (Allemagne Occidentale) 1945-1952, Paris: M. Th. Génin, 1952, págs. 65-67, subs. orig.). Quando o Reich capitulou, estavam ainda operacionais três quartos da sua capacidade industrial (James BACQUE, Other Losses, The Shocking Truth Behind the Mass Deaths of Disarmed German Soldiers ans Civilians Under General Eisenhower’s Command, Roseville, Ca: Prima, 1991, pág. 63).
    Se quisermos compreender a estratégia seguida pelos Aliados nos bombardeamentos aéreos devemos pô-la a par de um dos episódios menos conhecidos da segunda guerra mundial. O Banco de Pagamentos Internacionais fora estabelecido em Basileia, na Suíça, em 1930, para permitir que os bancos centrais dos vários países cooperassem no plano técnico sem intromissões políticas, e o seu conselho de administração ainda hoje é composto por governadores de bancos centrais. O economista sueco Per Jacobsson, que desde 1956 até ao seu falecimento em 1963 haveria de ser director do Fundo Monetário Internacional, entrou em 1931 para o BPI como conselheiro económico e chefe do Departamento Económico e Monetário, situação em que se manteve durante a guerra. Deixou um volumosíssimo diário, que a sua filha utilizou como base para uma biografia, recheada de informações interessantes e que, entre outras coisas, realça a «harmonia em que todos os funcionários internacionais do BPI conseguiam viver lado a lado, no mais estreito contacto, sem discórdia, apesar de entre eles se contarem beligerantes de ambas as partes. Quando começou a guerra todos os funcionários receberam indicações dos seus próprios bancos centrais para trabalharem amigavelmente em conjunto, de maneira a que o BPI pudesse continuar a funcionar» (Erin E. JACOBSSON, A Life for Sound Money. Per Jacobsson. His Biography, Oxford: Clarendon, 1979, pág. 141). Não creio que durante os seis anos do conflito tivesse existido outro organismo onde os países inimigos prosseguissem oficialmente uma colaboração sistemática, a ponto de Per Jacobsson ter servido de intermediário entre os Aliados e o banco central do Reich, durante a fase preparatória da conferência de Bretton Woods, na preparação conjunta do sistema financeiro do pós-guerra (Erin E. JACOBSSON, op. cit., págs. 163-166). A filha de Jacobsson descreveu o resultado destes contactos: «Em 1943 as opiniões de P[er] J[acobsson] acerca dos Planos Monetários anglo-americanos estavam a ser discutidas tanto em Berlim como em Washington. […] Os alemães, em especial, pretendiam obter informações e opiniões. O seu interesse era tão grande que uma pequena delegação de banqueiros, chefiada por Emil Puhl, o vice-governador do banco central alemão, encontrou-se discretamente com P[er] J[acobsson] e com Hechler [membro alemão do conselho de administração do BPI] em Zurique, a 1 de Maio de 1943. […] Depois de um novo encontro na Suíça, aquele grupo, através do seu presidente, conseguiu que P[er] J[acobsson] fizesse um discurso aos directores dos bancos comerciais em Berlim, a 1 de Junho. Este discurso foi repetido várias vezes na Suíça […] O texto definitivo […] foi traduzido pela Legação Americana e telegrafado na íntegra para Washington. […] Em breve P[er] J[acobsson] começou a desenvolver a noção de “um sistema de colaboração internacional que permitisse a outros países exercer influência não só sobre a política do país mais poderoso, os EUA, mas também sobre a de outros grandes países. Esta influência seria uma condição absolutamente necessária para iniciar uma política relativamente equilibrada; os EUA teriam mesmo todo o interesse em favorecer tal influência, pois os EUA teriam dificuldade em conceber e aplicar uma política apropriada a um papel dirigente nas questões mundiais. Portanto, seriam necessárias organizações internacionais — não uma única, mas muitas — de maneira a não colocar todos os ovos no mesmo cesto. E para os alemães seria mais fácil conseguir influência num organismo de carácter técnico do que num conselho político”» (Erin E. JACOBSSON, op. cit., págs. 178-180). Dois anos antes de terminar o conflito, e em resultado das suas conversações com os representantes da alta finança de ambos os lados, Per Jacobsson pôde prever o lugar que a República Federal Alemã veio a ocupar no pós-guerra.
    Não deve subestimar-se a teia de relações intercapitalistas, que não se rompe mesmo quando as principais potências imperialistas se encontram em guerra. Penso que é esta a chave da questão.

  5. “Não deve subestimar-se a teia de relações intercapitalistas, que não se rompe mesmo quando as principais potências imperialistas se encontram em guerra.”

    Pode ser que o caso seja um bom exemplo, mas sempre se corre o risco de ler a História de modo reducionista.

    O capitalismo não explica tudo.

    João Bernardo, obrigado pela atenção.

  6. “O capitalismo não explica tudo”.

    Em se tratando da Segunda Guerra Mundial e dos problemas tratados no artigo, o que é que explica então? Não se trata de ler a história de modo reducionista, trata-se de analisar a história tal como ela se deu realmente, levando em conta as determinações concretas dos acontecimentos, o que são coisas muito diferentes.

    Quando você escreveu, em outro comentário, que o artigo de João Bernardo “ao focar no descaso em relação ao extermínio de judeus e na desconsideração por (discutíveis) resistências operárias antifascistas, faz parecer que uma atitude contrária era uma obrigação moral dos aliados ocidentais”, o que você fez foi justamente chegar à raiz do problema, pois os Aliados procederam levando em conta não uma “obrigação moral” mas interesses econômicos bem determinados.

    O reducionismo parece vir, portanto, da sua parte, reproduzindo fraseologias prontas difundidas nos espaços acadêmicos. Mesmo quando a determinação econômica aparece como evidente, vem sempre alguém a que não agradam os “reducionismos” para tentar desviar-nos a atenção do que realmente importa.

  7. “reproduzindo fraseologias prontas difundidas nos espaços acadêmicos.”
    Fagner, a “determinação econômica” a priori também é uma fraseologia bastante difundida nos espaços acadêmicos.
    Reduzir a eclosão da Segunda Guerra Mundial a uma determinação econômica, mormente o comportamento da Alemanha nazista, não é uma postura metodológica, mas sim, uma postura pararreligiosa.
    Nem mesmo a Primeira Guerra Mundial – sempre vista como um exemplo de compêndio – se encaixa perfeitamente no modelo.

  8. Convencer – mas, sobretudo, vencer – é o que interessa numa polêmica. Além da graça e do mérito, o polemista tem acessos de Humpty Dumpty…

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