Por José Nuno Matos

 

Num artigo recentemente publicado no Passa Palavra, João Valente Aguiar (JVA) desenvolve uma tese já aqui apresentada e que se pode resumir no seguinte argumento:

“À esquerda e à direita, o Partido Comunista Português (PCP) é, em Portugal, a única força nacionalista com organização, experiência política e ramificação em diferentes níveis do aparelho de Estado capaz de ajudar a avançar uma experiência nacionalista de uma saída do euro. Por outras palavras, se Portugal saísse do euro, o PCP seria a principal alavanca motriz no início de um processo de fascização”.

Por considerarmos que o melhor meio de afirmar a nossa discórdia reside na sua discussão, e não na sua rejeição à partida, apresentamos deste modo uma análise contrária ao cenário delineado por JVA. E começamos, exatamente, por assinalar os pontos em comum com o artigo por si produzido: em primeiro lugar, a enumeração dos perigos de uma saída do euro e da consequente deriva nacionalista e, em segundo, o reconhecimento da génese do fascismo no “processo de apropriação de aspectos provenientes da fase de recuo e de burocratização das lutas sociais do século XX”.

É esta definição que nos conduz a divergir da posição firmada por JVA. O recuo das lutas sociais do século XX é, na nossa interpretação, indissociável de um processo de burocratização das organizações políticas que ensaiaram o controlo dessas mesmas lutas. Deste ponto de vista, é-nos difícil encontrar no PCP algum dado que aponte para a potencialidade evocada pelo autor: a de exercício de um poder de detonação “de uma situação que poderia descambar para uma fascização da sociedade portuguesa”.

A força do PC?

O PC constitui, certamente, uma força organizada e disciplinada, com claras provas de competência ao nível do controlo de algumas organizações, nomeadamente da Confederação Geral dos Trbalhadores Portugueses (CGTP). O sindicalismo parece ser, de facto, a esfera social em que a força do PC realmente tem expressão, ao contrário do que acontece em outros níveis identificados por JVA, como o militar ou o microempresarial. Para o exercício de um domínio efetivo, não basta reunir as assinaturas necessárias à constituição de associações, mas sim conseguir que, num plano prático, elas juntem pessoas. Tampouco a reunião de uns milhares de militares numa manifestação promovida por uma associação de militares próxima do PC poderá funcionar como indicador do acesso a um poder bélico (quantos desses militares estavam no ativo e qual o número de reformados presentes?).

Mesmo o sindicalismo, onde o PC exerce um claro poderio, atravessa dias difíceis. Como já foi aqui analisado, as organizações sindicais portuguesas sofreram, nas últimas décadas, uma exponencial redução dos seus membros. Aliado ao difícil terreno microempresarial – caracterizado por uma maior proximidade entre trabalhador e patrão e, logo, por uma maior vulnerabilidade a práticas paternalistas – fenómenos como o desemprego e precariedade representam um ataque direto à espinha organizacional do sindicato. A ausência e/ou intermitência de empregos, por um lado, e o maior poder patronal na definição do futuro do trabalhador, por outro, são elementos que pouco convidam à adesão a uma organização estruturada em torno de relações que, pura e simplesmente, assumiram novas facetas.

Ao mesmo tempo, e se compararmos com os movimentos estudantis contra as propinas [mensalidades] ou contra as provas globais da década de 90, um olhar em busca de eventuais movimentações nas escolas e nas universidades deparará com um enorme vazio. Isto não obstante as escolas e as universidades constituírem um dos principais terrenos de reformas económicas neoliberais: aumento de propinas, introdução de empréstimos bancários, diminuição da ação social escolar, subcontratação de serviços, reformulação de modelos curriculares.

A inexistência de movimentos de base no seio das empresas e dos estabelecimentos de ensino vem, como é referido por JVA, aumentar os perigos de “potencial foco e reservatório de temas e de homens para tragédias fascistas”.

A génese do perigo

Em 1930, no dia seguinte às eleições legislativas que viriam a reforçar a posição dos nazis no Reichstag [parlamento alemão], o sociólogo Theodor Geiger publicaria o artigo «Pânico na Classe Média», onde, segundo a descrição realizada por Sergio Bologna, Geiger identificava na opção pelo Partido Nacional-Socialista um conjunto de medos: “medo de vir a ter uma consideração menor, medo de perder o prestígio social, por parte de todos: funcionários públicos, empregados de oficina filhos de trabalhadores autónomos, empregados de oficina filhos de operários, trabalhadores autónomos sujeitos a uma mobilidade descente de classe, militares” [1].

A partir dos trabalhos realizados não só por Theodor Geiger, mas igualmente por Werner Sombart ou Goetz Briefs, Bologna recorre ao conceito de proletaróide na análise desta classe média desesperada. Composta por trabalhadores por conta própria, profissionais independentes ou operários qualificados de microempresas [2] , o proletaróide via na sua própria condição o abismo que separava as suas expectativas – nomeadamente em termos de salário e de exercício de um saber fazer – e a realidade. Educado para vir a usufruir de um estatuto social minimamente cómodo, o proletaróide assistia passivamente à sua redução a operário: sem grande margem de manobra na execução do seu trabalho, sujeito a baixos salários e incapaz de prever o dia de amanhã. A aproximação social às classes menos abastadas não implicaria a adesão dos proletaróides a sindicatos e outras organizações do operariado alemã. A classe média, na análise do sociólogo alemão Siegfried Kracauer, era “em termos conceptuais, um sem-abrigo” [3], ou seja, a indignação e ressentimento face à proletarização a que era votada originava o paradoxal afastamento dos operários e doutros trabalhadores «de baixa condição». Sem quererem ser operários e sem poderem ser burgueses, muito pouco parecia restar a esta classe média, falida e sem horizontes. Nas palavras de Kracauer, “Estas classes são incapazes de experimentar a sua solidariedade com uma comunidade alargada, com o Volk ou a nação, por meio do sindicato, do clube, da classe ou qualquer outro tipo de organização. Elas apenas conseguem experimentar esta solidariedade através de um ideal, de um mito” [4].

Conclusões

Não obstante a distância história e geográfica, não será difícil encontrar pontos em comum entre a Alemanha da década de 30 e o Portugal de hoje. A aplicação cega de medidas económicas de austeridade parece, de facto, conduzir a um processo de proletarização das expectativas desta alegada «classe média»: do jovem qualificado ou semiqualificado que encontra no call-center e/ou na empresa de trabalho temporário a única alternativa – a menos má, nunca a melhor – ao desemprego, aos pais desse mesmo jovem, confrontados com a frustração de todos os seus investimentos e projetos de vida.

A retórica nacionalista e populista perfilhada pelo PCP e outras forças de esquerda reflete, na nossa interpretação, a posição de defesa a que a estas organizações se viram forçadas a recuar. A falência dos seus mitos levou à adoção de um mito que, originalmente, não é o seu mas que, em nome do seu sucesso eleitoral, bem pode ser o seu. E, cedo, o oportunismo dá lugar à crença. No entanto, ao contrário do que é advogado por JVA, o mito a alimentar as esperanças da «classe média» não pode basear-se apenas no Volk e na nação. Neste sentido, a procura de resolução para o empreendedorismo frustrado, para o emprego que foi prometido mas não obtido, enfim, para todo um conjunto de sucessos que nunca tiveram lugar, dificilmente recairá num dos poucos partidos leninistas europeus, com uma matriz identitária ainda fundada na relação laboral típica do século XX.

O fascismo é uma minhoca, não há dúvida. Mas, enquanto minhoca que é, alimenta-se e move-se a partir de um terreno específico, adotando, pelo menos no início, os matizes ideológicos desse mesmo terreno. Estes parecem mais inspirar-se nas doutrinas emanadas de manuais de gestão de recursos humanos e/ou de livros de auto-ajuda para os trabalhadores de amanhã do que nas liturgias nacionalistas produzidas pelo jornal Avante. Neste terreno, em suma, cada vez menos se vê a força do PC.

Notas

[1] Bologna, Sergio (2006). Crisis de la clase media y posfordismo, Madrid, Akal, 32.
[2] Em 1925, dos 18 milhões de operários industriais alemães, 6 800 000 encontravam-se a trabalhar em fábricas com menos de dez trabalhadores. Bologna, Sergio (1999). Nazismo y clase obrera (1933-1993), Madrid, Akal, 63.
[3] Kracauer, Siegried (1995). The Mass Ornament: Weimar essays, Cambridge, Harvard University Press, 123.
[4] Idem, 111.

Ilustrações: obras de Jorge Vieira.

3 COMENTÁRIOS

  1. Caro Zé Nuno,

    o teu texto é muito interessante e mereceria um comentário mais completo do que este. Mas o meu ponto aqui é o seguinte: apesar de talvez o João ter dado por vezes outra ideia, eu, pelo menos, nunca o li como defendendo a tese de que a haver, no caso de ruptura do euro e de implosão da UE, uma experiência fascista em Portugal, esta seria protagonizada pelo PCP. Este limitar-se-ia a abrir-lhe caminho através da recuperação de temas soberanistas e nacionalistas a pretexto de luta contra a troika e da reprodução e eventual reforço da subordinação das concepções e formas de organização do “descontentamento” e da revolta às concepções e formas hierárquicas já hoje governantes. Podemos acrescentar que outro aspecto do contributo do PCP para a reacção resulta do modo como tende a encerrar a necessária luta contra a austeridade actual num beco sem saída.

    Se, por outro lado, pretendes mostrar – no que te secundo inteiramente – que os perigos de “fascização”, digamos assim, podem ser veiculados também pelo federalismo tecnocrático e autoritário que, invocando a Europa e a integração, se propõe já hoje como disposto a reciclar sob formas mais eficazes os aparelhos soberanistas, então, terás de reconhecer que a política de oposição à troika nos termos em que o PCP a formula só pode contribuir para conter e recalcar a emergência dos regimes alternativos dessa acção política anticapitalista porque democrática, e democrática porque anticapitalista, à falta da qual vamos alimentando a servidão voluntária ou a menoridade culpada que nos expropria da liberdade e da responsabilidade igualitárias desse outro nome da autonomia que é o horizonte da plena cidadania activa.

    Quanto ao resto, subscrevo no essencial o que dizes – ainda que fosse possível argumentar que haverá quem possa dizer que subestimas as potencialidades regressivas da situação actual – um pouco como tu tens a impressão de que o João as sobrestima.

    Abraço

    miguel

  2. Caro Miguel,

    A diferença entre a minha análise e a do João concentra-se não tanto na «recuperação dos temas soberanistas», a qual identifico, mas num protagonismo que o PCP teria numa ação que não se limitaria à construção de um senso comum nacionalista. A referência a um domínio efetivo sobre a Intersindical ou a uma influência junto de associações militares realizado pelo João reflete, na minha interpretação, um reconhecimento de um papel se quisermos «logístico» a desempenhar pelo PCP. O que argumento é que essa força já não existe.
    O cenário que defendo supõe uma saída do euro, não focando o texto «os perigos de “fascização” […] veiculados também pelo federalismo tecnocrático e autoritário»… embora sejam vários os sinais de fortalecimento de uma mão direita europeia. Esta tendência, contudo, não nos deve afastar da Europa e reduzir a ação política a um conjunto delimitado de quilómetros (a afirmação da fronteira tem constituído, justamente, uma importante arma levantada por essa mão direita), mas sim fazer dela o terreno de luta.

    Abraço,

    José Nuno Matos

  3. Vocês são loucos. Então o PCP por falar em interesse nacional é um risco para a emergência de fascismos – mas não falam de interesse nacional também os partidos federalistas? E o micro-ensaio frascizante com o Monti em Itália, de onde veio? Não veio da pressão das políticas comuns da UE?

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