Não se encontra em lugar algum lutas autônomas “purase nem jamais se encontrará. Por Passa Palavra

 

Como se pode perceber do debate conceitual e dos poucos exemplos trazidos até o momento, a autonomia é sempre coletiva, nunca individual. Faz-se junto, nunca na solidão. Constrói-se nas lutas, não em simples mudanças de hábitos. Desenvolve-se contra o capitalismo, nunca reforçando-o.

A autonomia só pode resultar dos conflitos sociais. Afirma-se nas lutas sociais quando os trabalhadores rejeitam a disciplina e o controle que lhes são impostos pela burguesia e pelos gestores. Ao construir sua auto-organização nas lutas, os trabalhadores lutam obedecendo às regras criadas por si próprios e perseguindo os objetivos que eles mesmos estabeleceram e compreendem; usam seus próprios meios, quando possível, ou subvertem instrumentos anteriormente empregues para sua exploração e opressão; constroem com suas lutas relações sociais novas, em tudo diferentes daquelas que reforçam sua sujeição.

Vejamos alguns exemplos.

França, Itália, Inglaterra e Alemanha fornecem modelos clássicos para os “autonomistas” que devoram os “textos” produzidos no calor das lutas que nos anos 1950/1970 se alastraram nos locais de trabalho, nas fábricas, nos escritórios, nas oficinas. O surto de (re)industrialização no imediato pós-guerra, movido a plano Marshall e programa GARIOA, trouxe consigo a formação de uma classe trabalhadora composta por elementos jovens e recém-chegados do campo, além de migrantes (argelinos, portugueses, jamaicanos, etíopes, romenos, gregos, marroquinos, senegaleses, indianos, turcos, cambojanos, albaneses, pied noirs, espanhóis, indochineses, nigerianos etc.), todos com baixa qualificação e experiência profissional. Na rotina do trabalho e no convívio com companheiros mais experientes, esta nova classe trabalhadora rápido adaptou-se aos novos processos de trabalho e dominou-os ao ponto de exercer controle parcial sobre a produção; demonstram-no as greves de zelo, as operações-padrão, os pequenos atos de “guerrilha trabalhista” que se vão acumulando até a explosão entre 1968 e 1972. Das primeiras lutas contra a vinculação entre salário e produtividade, vão se alastrando lutas cujas pautas ultrapassavam o controle dos sindicatos (sendo a revolta de Piazza Statuto seu momento mais tenso) e em seguida extrapolavam o campo de ação construído pelos partidos ditos “operários” em seus pactos de convivência com a institucionalidade burguesa. As lutas de então saíram das fábricas para tomar as universidades (com a crítica aos modelos tradicionais de ensino, de divisão sexual do trabalho acadêmico etc.), os bairros (onde inquilinos recusavam-se a pagar aluguéis reajustados, e chegavam a ocupar imóveis abandonados), os transportes (onde passageiros recusavam-se a pagar tarifas majoradas), as telecomunicações (datam deste período as primeiras experiências de rádios “piratas” na Inglaterra, Itália e França)…

Noutros casos (Grécia, Espanha, Portugal), as lutas autônomas dos trabalhadores somaram-se às lutas pela derrubada de ditaduras militares, reforçando-as ao tempo em que se embebiam das contradições próprias a este tipo de luta. Sob condições diferentes, os trabalhadores do Leste Europeu travaram lutas que hoje são comemoradas como episódios revolucionários de grande monta (as greves de Berlim Oriental em 1953, as revoluções húngara e polonesa de 1956, a Primavera de Praga em 1968, as greves e protestos na Polônia em 1970, 1971, 1976 e 1981 etc.), permanecem pouco estudadas em seus detalhes.

Nos EUA, outro lugar de onde emanam os “textos” que inspiram os “autonomistas”, a segregação racial, que ainda divide os trabalhadores, foi duramente questionada não pelas palavras de alguns líderes religiosos, mas pela ascensão dos negros que, ao equipararem-se social e economicamente aos brancos, enfrentaram as barreiras impostas pelas leis Jim Crow e pelo racismo disseminado por décadas de propaganda eugenista. Da mesma forma, a grande audiência da chamada “segunda geração” do feminismo corresponde ao crescimento paulatino da participação feminina na composição da força de trabalho nos EUA. Nos dois casos, sempre houve os chamados “precursores”, os que pregaram no deserto em momentos anteriores; a chave para entender a passagem do relativo isolamento destes “precursores” ao momento em que as ideias encontram eco é a mobilidade social e econômica ascendente destes dois setores. Só então as radicais ideias igualitárias do movimento dos direitos civis e da nova geração de feministas tiveram uma base social que lhes repercutisse e lhes desse a força necessária para impor mudanças políticas duradouras. Esta mobilidade social ascendente resulta de um ciclo de lutas de trabalhadores que, mantendo-se em estado larvar com as lutas de chão de fábrica dos anos 1950, estourou em protestos e greves selvagens entre os anos 1960 e 1980.

Na África, não é difícil localizar nas lutas pela independência dos anos 1950/1980 componentes de luta autônoma, em especial quando estas lutas ligavam-se às lutas dos trabalhadores nas antigas metrópoles, reforçando-se mutuamente. Entretanto, as lutas autônomas enfrentaram, na África, obstáculos muito difíceis, que com o tempo se mostraram impossíveis de contornar. As condições enfrentadas pelas lutas autônomas na África foram duríssimas (ver aqui); adicionalmente, observamos que a especificidade político-antropológica dos estratos sociais que podiam ser os motores da libertação econômica e uma conjuntura internacional desfavorável estão entre as causas mais evidentes destas contradições, mas há que se observar de igual maneira a incapacidade das elites revolucionárias de interpretar de modo criativo a situação social em que se encontravam e colocar-se tarefas políticas adequadas ao contexto; seguindo o dogmatismo da esquerda coetânea, limitaram-se a uma leitura ortodoxa das categorias sociológicas e marxistas, sem aprofundar o entendimento das contradições próprias do colonialismo e da forma como os trabalhadores se inseriam, estrutural e subjetivamente, nos processos de trabalho. Momentos luminares como a independência de Gana (1957), a revolução burkinabé (1983-1987) sucumbiram rapidamente sob o peso conjunto da ação articulada do imperialismo, do isolamento diplomático dentro da própria África e de suas contradições internas. Com a independência política, o colonizado resgata sua “humanidade”, mas insere-se nesta “humanidade” no lugar de explorado, de oprimido, e a mobilidade social conquistada se dá nos quadros de uma estrutura legada pela administração colonial. É neste histórico que residem as condições de surgimento dos regimes sacudidos pelas manifestações multitudinárias dos últimos anos (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) e pelos rearranjos na economia global (ver aqui).

obras-pista_600x400Veja-se com mais detalhe o caso sul-africano, que em muito se assemelha ao brasileiro. O sucesso das lutas contra o apartheid se explica não somente pela ação militante do Congresso Nacional Africano (African National Congress – ANC), do Partido Inkhata da Liberdade (Inkhata Freedom Party – IFP), do Partido Comunista Sul-Africano (South African Communist Party – SACP), do Movimento da Consciência Negra (Black Consciousness Movement – BCM), do Congresso Pan-Africanista de Azania (Pan Africanist Congress of Azania – PAC) e do Congresso Sul-Africano de Sindicatos (Congress of South African Trade Unions – COSATU); explica-se também pelo cruzamento destas ações com um ciclo de greves no setor automobilístico coincidente com a fase final da luta contra o regime racista, nos anos 1970 e 1980. As lutas nas duas frentes reforçaram-se mutuamente na medida em que não apenas os trabalhadores, majoritariamente negros, sofriam as consequências da apartação, como também sua ascensão paulatina aos quadros médios das empresas reduziu a distância social entre brancos e negros num quadro profissional comum e criou, assim, as bases sociais para a derrocada do regime. Atualmente, as contradições entre as lutas sociais e um arranjo político de esquerda à cabeça do Estado é tão evidente lá quanto cá (ver aqui, aqui, aqui e aqui).

BOM DIA.01Estes exemplos escolhidos a dedo – sequer discorremos sobre a Ásia (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) – não foram apresentados como modelos para cópia. Lutas sociais não são passíveis de serem copiadas, pois são travadas em contextos, épocas e lugares diferentes. Trata-se de experiências de luta dos trabalhadores de onde foi possível extrair as linhas gerais apresentadas na parte anterior. As linhas gerais, abstratas e teóricas das lutas pela autonomia que avançamos anteriormente foram encontradas em meio a este turbilhão de lutas políticas, sociais e econômicas.

Esta digressão histórica se fez necessária para mostrar que os trabalhadores não são seres abstratos. Pelo contrário, só se pode entender as contradições com que se deparam ao compreender as particularidades da sua formação enquanto classe em cada tempo e lugar, e sua relação com as demais classes sociais. Qual a composição social da classe ou do setor que luta? São migrantes? Jovens? Velhos? Qual sua composição étnica? Há conflitos interétnicos envolvidos? Qual a divisão sexual do trabalho? Que impactos isto tem sobre a luta e seus resultados (ver, por exemplo, aquiaqui, aqui e aqui)? Por isso mesmo, não se encontra em lugar algum lutas autônomas “purase nem jamais se encontrará, porque elas simplesmente não existem; a autonomia da classe trabalhadora resulta das formas e dos meios pelos quais os trabalhadores se inserem nas lutas políticas, sociais e econômicas do seu tempo.

Isto não significa enclausurar as lutas em seu contexto, nem tampouco evitar comparações entre experiências diversas de luta. Uma burakumin não é nem jamais será igual a um khadem ou a umbaekjong, nem mesmo pelo status social que, a seu modo, compartilham; qualquer comparação direta entre suas lutas será frustrante se não remeter a um quadro mais abstrato das lutas camponesas ao longo do século XX, construído com o que se verifica nas próprias lutas. Vale o mesmo para qualquer comparação direta entre as lutas em Marikana, Dhaka, Lupeni, Gdansk, Turim, Sri Lanka, Camaçari, Uruguai, Liège, Ulster, Besançon, São Paulo, Alepo, Ballantyne Pier, Mondragón, Vietnã, Manaus, Ammanford, Adalen, o vale do Ruhr, Osasco, Moscou, Damasco, Nepal, Betim, Homs, Flint, Salvador, Buenos Aires, Grivita, Beirute, Rodésia, Contagem, Hama, Berlim, Dagenham, Borinage, Honduras, Viena, Florianópolis, Guiné, Cochabamba, Rio de Janeiro, Harlan County…

Só então a autonomia deixa de ser um princípio abstrato, um horizonte utópico, e ganha a carne de um projeto político de classe, construído a partir das lutas e conflitos. O que leva a algumas reflexões adicionais.

A série Reflexões sobre a autonomia contém 6 partes, com previsão de publicação de uma parte a cada domingo.

1 COMENTÁRIO

  1. Passa, sinto falta das referencias ao final do texto ou simplesmente sugestões de leituras que tomaram de base para elaboração dos textos. Ajuda muito quem está estudando a temática.
    Grande abraço.

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