Com uma fé inabalável na bondade humana, na compaixão e no amor, Teotônio percebeu que aquele homem era na verdade um velho conhecido seu, um velhaco esperto e bem-humorado que vem, de quando em vez, fazer alguma proposta, ou seja, o homem era na verdade o demônio. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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A terceira tentação de Teotônio.

Como podes falar com tanta ansiedade,
Com palavras tão puras, firmes e inflamadas?
A mim basta o papel, qualquer folhinha,
Mas escreve com sangue, usa uma gotinha.
(Mefistófeles com o amigo Fausto. Goethe)

A ferida ainda estava aberta, Rodrigo Bastos era querido e sua simplicidade doava aos corações humildes aquela fragrância gloriosa da bondade. Bondade que tinha se extinguido com seu último suspiro. Essa unidade de sentimentos melancólicos durou várias semanas com muitos embates, mas a marcha comum dos dias colocou todas as coisas no rumo, denotando, mais ainda, a absurdidade da vida. Para responder o absurdo da existência somente uma existência absurda; uma vida absurda como a de nosso herói que, somente negando o negado da vida, pode ascender à condição épica.

Teotônio, com a certeza de ser um dos mais espirituosos na tarefa de consolar, exercitava-se nessa missão e saía, todas as manhãs, com a vigorante intenção de ir levar a Palavra. Erguia-se e cruzava as estradas de terra, indo de barraco em barraco. Encontrou simpatias e boas afeições nas casas; às voltas com as emoções mais simples, tinha nessas pocilgas sorrisos felizes que contradiziam a fome e as necessidades mais corriqueiras vividas ali. Era muito bem recebido onde quer que fosse e isso gerava inveja e indignação tanto dos monopolizadores da terra, como em alguns de seus companheiros. No entanto, a verdade era que a loucura de Teotônio preenchia vazios e apontava caminhos.

Desde aquela noite tempestuosa, durante os dias amorfos que dão seguimento ao luto, Alexandra não se afastava de Teotônio e todos tiveram de reconhecer que não esperavam encontrar naquela maluca nem tamanha firmeza de caráter, nem tamanha habilidade para com a dor. Por mais terrível que parecesse para nossa cantora lírica a ideia de que a morte é o fim silencioso donde emana uma escuridão vazia de um grande Nada, ela não podia se opor à tentação de crer que sua semente vigoraria para sempre. E essa eternidade do sempre não era, para Alexandra, a consciência de estar viva e sim a consciência de estar viva na consciência do outro. Ser lembrada, homenageada e se certificar que sua existência não foi um simples vulto, era o trunfo recompensador de uma vida dedicada inteiramente ao outro.

desoc1É preciso dizer ainda que, por aqueles dias, o assentamento fora atacado. Um incêndio, para o qual nossos heróis permaneceram indiferentes na noite da véspera, tinha aumentado de maneira crescente durante toda a madrugada. Pagu [1] estava em chamas e muitas plantações e barracos estavam perdidos para sempre. Ardiam ao mesmo tempo os blocos: Marighela, Astrojildo Pereira, Carolina de Jesus, Olga Benário, a cana de açúcar e o depósito de mantimentos ao lado da cachaçaria. Todas estas coisas feneciam e eram agora vistas com repulsa tanto por Teotônio quanto por Alexandra. E, assim, da indiferença chegaram a indignação atroz. Nada mais comum numa desocupação forçada do que aliá-la ao fogo.

Foi com esse sentimento que nossos heróis decidiram rumar para os centros dos acontecimentos. O caminho que ambos faziam naquele dia se estendia pelos becos até a rua batizada de Antônio Conselheiro e de lá para a rua Central onde todos se reuniriam em assembleia. Na maioria dos barracos, as portas de madeiras e as janelas encontravam-se fechadas. As ruas e as esquinas improvisadas estavam vazias e o bolor do ar esfumaçado contaminava todos com seu odor. A desolação, própria à destruição, corria livremente deixando os animais de estimação aflitos e agitados. Os cachorros não sabiam quem acompanhar e seus donos estavam por demais atarefados para com eles se importar. A sensação era que o idílio de humanidade e poesia vividos naquele acampamento cedia o passo para a prosa mundana do mundo histórico.

Vez ou outra, caminhando no chão de terra batido, apareciam moradores do assentamento de feições contritas e inquietas que olhavam para Teotônio e Alexandra com espanto e sorrisos de uma dor silenciada por dentes abertos forçosamente. Além da pequena estatura e do corpo que emagrecera pelo demasiado jejum, além da expressão serena, solícita, concentrada e sofrida de seu rosto, os assentados olhavam para Teotônio porque queriam crer que aquele homem incomum poderia dar-lhes a justiça. Junto a uma pequena horta, três rapazes explicavam algo para um senhor que não os compreendia e detiveram Teotônio para perguntar se ele não concordava que aquele crime deveria ser pago com a mesma moeda. Teotônio apenas balançou a cabeça e seguiu adiante.

Com horror e pressa, ambos – Teotônio e Alexandra – carregavam um plano comum, como algo terrível e alheio, receavam perder as forças de algum modo. É preciso dizer que mesmo a loucura reconhece limites. Mas nossos heróis não estavam fadados a levar até as últimas consequências aquilo que traziam nos corações. Mesmo que nada os detivesse no caminho, o plano não poderia ser executado porque Emiliano, algumas horas antes, havia traído a todos ao negociar com os grileiros oligarcas, e agora, no estado de ânimo da mais legítima desfaçatez, dava ordens minuciosas e detalhadas sobre as medidas que deviam ser tomadas para acalmar o assentamento.

Naturalmente nossos heróis não sabiam disso; totalmente absorvidos no que tinham pela frente, atormentavam-se pela natureza corruptível do medo que existe ao se tentar realizar algo impossível. Atormentavam-se com medo de fraquejar no momento decisivo, mas em nenhum momento, nem só por um instante Teotônio ou Alexandra pensaram em afastar de si aquele cálice, o cálice sagrado de colocar tudo abaixo, de instaurar o novo superando o velho e aniquilando o que não cabe mais à vida futura.

À medida que nossos heróis se aproximavam da rua Central, todavia, a fumaça ficava cada vez mais forte e o calor do incêndio somava-se ao calor produzido pelo sol. Rotineiramente saltavam, crispados, pedaços de telhas por causa do fogo. Havia muita gente concentrada e aflita ao redor de Emiliano. Martha estava com olhos irados; Armando estava a ponto de voar no pescoço desse Judas e, embora Teotônio sentisse que algo fora do comum ocorria à sua volta, não se dava conta de que ali estava pronta uma arapuca. Não se deu conta também que Alexandra estacara frente à multidão e agitava todos com um grande, crescente e poderoso “Não!”, dado a Emiliano e sua solução do conflito. Solução esta que pedia a saída imediata das setenta e quatro famílias do alegado terreno da M…….. Celulose Ltda.

desoc2Ao lado da turba de gente quase descontrolada na rua Central, estavam jogados e amontoados os objetos de várias famílias: colchões, sofás, a imagem de Nossa Senhora Aparecida e móveis de todo tipo. Sobre o chão batido, ao lado dos móveis, uma moça magra e jovem, com enormes olheiras no rosto, balançava o corpo balbuciando algo indescritível. Chorava e soluçava. Duas menininhas, de oito e dez anos, com roupas sujas olhavam para a irmã com uma expressão perplexa e apavorada. O menino um pouco mais velho, com um calção verde, camisa azul e de pés descalço chorava de indignação e impotência; aquele choro abafado unido à sensação da dolorosa ausência de sentido. Uma senhora suja, com o rosto manchado pela fumaça, estava sentada sobre um velho sofá despejado na terra, desmanchava as tranças do cabelo e os cheirava a fim de conferir o odor do estorricado. Os olhos marejados, e comuns àquela família, denotavam imensa angústia enquanto miravam o horizonte observando, naquele instante, a chegada da polícia para fazer a remoção. A poeira levantada pelo vento, e as fagulhas eriçadas pelas chamas que chiavam assoviando a indignação, embaçavam a visão da fileira de policias armados e de escudos terrificantes na entrada do acampamento.

Os gritos nervosos das pessoas, a visão das vermelhas nuvens de fumaça, oscilantes, gigantes e escuras, que ora se contraíam, ora se elevavam com suas fagulhas; a terrível sensação de calor, dos movimentos rápidos e falas lancinantes produziram em Teotônio aquela agitação que só poderia ter fim com a completa ruptura com tudo proposto. Tal agitação era pungente em Teotônio porque, como sempre, ante a visão dos males, ele se sentia livre do peso de qualquer normatividade. Sentia-se divino, animado e resoluto. Contornou a assembleia que discutia calorosamente e quis correr ao encontro dos policiais armados para os atacar com sua legião de arcanjos que, com certeza, para nosso herói apareceriam num instante; Miguel Arcanjo enviaria um raio fulminante que acabaria com toda aquela tropa. Entretanto, bem em cima de sua cabeça ouviu-se a voz de um homem que, o agarrando pelos braços, lhe disse:

– Calma aí, chefinho, para onde pensa que vai? Está muito nervoso, tudo se pode resolver com uma conversa!

– Quem és tu? – Perguntou Teotônio com ar de surpresa.

– Disso você não precisa saber… saiba somente que estou aqui para conversar e quem sabe… estabelecer algo bom para nós dois! – Disse o homem que, com suas roupas estranhas, demonstrava claramente não ser do assentamento.

– Algo bom para nós dois? – Perguntou Teotônio agitado – Eu sei o que é bom para nós dois, e o bom é proteger essas famílias!

– Olha eu sei da sua fama… sei que você anima muita gente e muita gente te segue, vai nas suas aulas… – Dizia o homem com ares de mistério, quando foi interrompido por Teotônio que disse:

– Primeiro, não são aulas, são sermões…

– Que seja! Eu sei que muita gente irá te seguir aonde for! Por isso estou aqui! – Redarguiu o homem arrumando a gravata.

– Então diga logo, se eu puder ajudar… – Devolveu Teotônio com certo enfado na voz.

– Tu acreditas em Deus? – Perguntou o homem.

– Você só acredita naquilo que não está presente… A crença se estabelece pela ausência… se algo está presente não precisa acreditar, eu não acredito em Deus, ele é meu pai, não preciso acreditar em algo que está aqui, que me move, me cerca! – Fez Teotônio apontando para o peito.

– Tudo bem, se é assim, você acredita nas leis! – Redarguiu o homem.

– Não acredito, não! As leis pelas leis são algo aqui! – Disse Teotônio apontando para o alto – Agora sua validade é algo que precisa ser visto aqui! – Encerrou apontando para o chão.

– Meu Deus – balbuciou o homem – Isso vai ser mais difícil que pensei!

– O que está dizendo? – Interferiu Teotônio.

– Não… nada… é que assim… nós estamos do lado da lei! – Disse o rapaz – E esses seus seguidores estão todos fora da lei! Temos os papeis que dão a posse dessas terras a nós e, assim, terão que sair… mas como somos muito humanos, não queremos que haja derramamento de sangue e olha… tem um monte de gente que pensa o contrário… estou aqui para que você se convença que sair é o melhor a se fazer! Assim cumprirá a lei dos homens e também a lei de Deus!

– Primeiro, a lei dos homens não é feita por homens, mas por alguns homens. Segundo, a lei de Deus é uma só: amar ao próximo como a ti mesmo! Tem gente que vai dizer ‘o próximo é o teu parente, o teu amigo’. Por isso, ao não dizer quem é o próximo, esse código dá a liberdade e se torna universal! Se alguém apropriar ele e disser que o próximo é X, Y ou Z estará fora desse mandamento universal! O próximo é todos e a universalidade é o amor para todos! – Disse Teotônio coçando o nariz e continuou – Portanto, cumprir a lei dos homens feita por alguns homens é contra o mandamento de Deus, porque ela justamente vai beneficiar alguns homens e não todos, muito menos as mulheres ou homens que não se encaixam num certo modo naquilo que se considera homem… entende?

– Mas a lei é universal! – Redarguiu o rapaz – Todos devem estar sob seu império!

– Qual lei é universal? – Disse por sua vez Teotônio – Tirar famílias de suas terras e dá-las aos especuladores por meio de um papel assinado com favores? Para ser universal ela tem que ser legítima para quem está aqui – rodeou o assentamento com os dedos e por fim encerrou – Não há lei divina no mundo dos homens, e ela também não vem do nada, isso é balela!

– Tudo bem! Tudo bem!

– Não fique zangado, eu também amo você! – Falou Teotônio a sorrir.

– Mas tem algo mais… está vendo toda aquela parte ali – fez o rapaz apontando para o lado nordeste do assentamento – Tudo aquilo poderá ser teu se…

desoc3Não devia ter dito aquilo. De repente, o rosto de Teotônio transfigurou-se. Com as mãos juntas às costas, ele caminhou em silêncio sendo seguido pelo homem que nem desconfiava quão terrível era a insinuação que fizera ao messias. Nosso herói havia enrolado as mangas de sua blusa, compridas demais, e as mãos grossas, quase robustas, escapavam pelos largos orifícios com os punhos cerrados. Caminhava em silêncio e, corado de excitação, imaginava que estava se justificando perante a humanidade. Tentava justificar-se por sofrer a mesma vil e desonrosa proposta de dois mil anos atrás. Com uma fé inabalável na bondade humana, na compaixão e no amor, Teotônio percebeu que aquele homem era na verdade um velho conhecido seu, um velhaco esperto e bem-humorado que vem, de quando em vez, fazer alguma proposta, ou seja, o homem era na verdade o demônio. Teotônio sentia-se tão envergonhado que enrubescia, como se, ouvindo novamente aquela afronta, cometesse um enorme crime contra a humanidade.

Em vias disso, agora nosso herói só desejava uma coisa: poder recriminar com todo seu ser aquela tentação, provar que não deviam sequer imaginar que ele fosse capaz de se dobrar ante aquele tipo de oferta, que não deviam ter dele o menor senso de busca material, nem se preocuparem com isso. Gostaria de explicar à humanidade que não tinha culpa. Talvez, aquela coisa peculiar que Teotônio trazia na alma – amor ilimitado a outrem e desprezo ilimitado a si próprio – fosse por si só uma justificativa para sua ação que explodiria dali a pouco. E sentia que não era sua culpa aquela terrível calúnia pronunciada numa tenebrosa oferta.

E se filósofos, psicólogos e carrascos do mundo inteiro se pusessem a ver nisto um sinal de corrupção? E se tais homens tentassem provar ao mundo que o filho do Homem nada mais é que um homem de moral excelente? Só mais um louco que acredita na imortalidade? Mas de que outra imortalidade poderia tratar o filho do Homem senão daquela em que se está de antemão morto em vida? Teotônio não teve dúvidas; pegou um pedaço de cipó pendurado, olhou para o rapaz, que era agora a encarnação do Mefisto, e deu-lhe uma surra de vara de marmelo.

– O que está fazendo? – Disse o homem saindo rapidamente de perto de Teotônio – Está maluco, desgraçado? Ai! Caralho! Ai! Porra! Tá maluco?

– Afasta-te de mim Satanás! – Bradava Teotônio segurando o diabo pela gravata e lhe dando várias ripadas intercaladas por tapas na cara.

– Alguém me ajude! Ele está louco! – Dizia o homem tentando correr.

– Ah! Demônio! Você nunca aprende mesmo! – E Teotônio continuava a bater no homem que teve o terno rasgado e a gravata arrancada para conseguir se livrar das garras do filho de Deus.

– Você me paga, seu maluco! – Disse o homem ao correr rapidamente – Eu vou me vingar!

– Ah! Pro inferno! Desde a fundação dos tempos você fala isso!

desc2Ora, nem mesmo a língua alemã é capaz de mostrar em suas miudezas aquele átimo de loucura teotonista. As pessoas mais serenas e que só pautam suas ações depois da profunda reflexão chamada sensatez, se chocam com essas tempestades abruptas do caráter. Assim, à primeira vista, estas últimas parecem estar fora do julgo das paixões, mas como se sabe, essa aparência é falsa; nada mais perigoso que um sensato ao perder o equilíbrio e, diga-se de passagem, a aparência de Teotônio era da mais pura sensatez. Passou-se não mais que cinco minutos dessa cena loucamente humana e bárbara quando chegou ofegante Alexandra dizendo:

– A polícia vai invadir nossa ocupação…

Calma lá! Já digo o que aconteceu com o assentamento, mas espera aí… só mais um pouquinho!

Nota

[1] Este era o nome do assentamento.

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