Enveredando pela avenida ampla que atravessava a cidade, ou melhor, a Avenida Paulista. Nesse momento, Teotônio avistou ao longe um grandíssimo boneco com barba branca e roupas listradas que flutuava no ar, envolvido numa nuvem de fumaça. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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Nada pode pôr mais temor em um ser humano sensível que a hora fatídica, quando ratos, crendo ser fortes por serem numerosos, saem dos esgotos e bueiros tomando as ruas. Nesses tristes momentos, é preciso encontrar a flauta de Hamelin para dar fim a essas pragas que acreditam poderem exibir suas sujeiras sem qualquer decoro. É preciso afogá-los no Tietê pois que o rio Weser é muito longe de São Paulo. Por aqueles dias, um fenômeno estranho se deu; nas ruas de São Paulo pululavam ratos de várias espécies, eram milhares que possuíam uma característica comum; no geral eram velhos e babões. Exibiam uma espuma branca e medonha na boca e quando grunhiam, a expressão assassina dos seus olhos ao invés de medo causava nojo, uma repulsa que ataca até o estômago acostumado a pimenta. Esses fenômenos não são raros em São Paulo, ouviu-se dizer que no início do século XX galinhas de cor verde tentaram tomar a cidade também – bem ali onde está história começou – mas, foram logo dispersadas à bala.
Depois de uma calorosa despedida do assentamento Teotônio inutilmente buscava concentrar-se para clarear as ideias. Por isso, dentro do ônibus adquiriu o hábito de cochilar e deitou-se no ombro de Alexandra. Nosso messias retornava para Jerusalém, ou a velha São Paulo. É preciso dizer, não obstante, que a despedida de nossos heróis foi regada a muitas lágrimas e pela ajuda das dezenas de assentados que lhes deram uma importante quantia para que, pelo menos nas primeiras semanas, não ficassem nas ruas. Com passagem clandestina ambos; o ônibus extraviara-se do caminho certo e confortável, enveredando inopinadamente por um atalho com intuito de arrumar novos passageiros. Apesar dos duros solavancos que jogavam Teotônio e Alexandra de um canto para outro, de sorte que o sono não podia resistir, nosso herói mantinha-se tranquilo, quando já na entrada da capital, preferiu lançar-se para fora do veículo, atirando-se prontamente às ruas intranquilas da megalópole.
O sol feria as faces e pela estrada divisavam as altas torres da grande cidade. Alexandra lamentava-se em altos brados, uma vez que, ante aquela cena, as feridas no peito lhe eram reabertas; novamente parecia estar fora de si. Como convinha ao filho do homem, Teotônio refreou sua loucura; apenas gritou comedidamente para Alexandra, dizendo-lhe que não deixasse aquele espírito de lamentações barrar sua jornada, e lembrando-a de que Teotônio Cristo, o mais justo e manso dos nossos tempos, estava com ela por todo sempre, e que, portanto, deixasse para lá as lembranças amargas que trazia no peito. Conheces, caro hipotético leitor, o poder que habitualmente Teotônio exercia sobre os corações, e foi dessa maneira que Alexandra imediatamente parou sua lamentação, e passou a andar calmamente procurando expressar ternura em seus modos. Felizmente tudo ficou rapidamente familiar e se deram conta de que aquelas ruas eram conhecidas, e eles estavam, portanto, em condições de seguirem a pé pelas avenidas, enquanto pensavam como iriam se arrumar para passar aquele dia.
Mas, nas proximidades donde iam, se depararam com uma porção de gente tão esquisita e tão estranhamente esbaforidas que Teotônio esfregou os olhos para certificar-se se aquilo era uma revelação ou a mais incomoda realidade. Teotônio pensava que, talvez, uma faceirice de Satanás pudesse tê-lo levado para o inferno ou para as orlas circulares do purgatório. – Essas pessoas, que viam Teotônio e Alexandra, andavam arqueadas, os olhos vazios e coléricos, como se atrás das pupilas não houvesse mais nenhum sentimento ou sopro de vida e, por isso mesmo, Teotônio julgava serem habitantes de uma terra distante, separada talvez por muros e grades, talvez por andares muito altos. Os cabelos das mulheres, penteados e com luzes feitas com esmero, lhes caiam sobre os ombros e as costas, e na cabeça traziam uma pequena faixa brilhante escrita Brasil. Alguns estavam de regatas e bermudas, à maneira de passeio no parque aos finais de semana, outros usavam camisetas da seleção brasileira e levavam bandeiras nas mãos, semelhante a papagaios que já se viu, certamente, nas feiras e céus por aí.
Embora todos parecessem muito zangados, tinham uma voz infantil, contudo, grave, seus movimentos eram exagerados, e alguns ostentavam os braços como se com eles garantissem seus desejos. Da parte de trás da procissão verde-amarelo, Teotônio via emergir um fantasma fedendo a enxofre, embora se usasse nessa procissão os mais caros perfumes. Outros estampavam nos rostos bolor e fedor de mofo e faixas nas quais haviam afixado grandes dizeres, sem conteúdo, faixas das quais habilmente faziam emergir nuvens de fumaça quando o ódio dos olhares vazios se expressava e se encontravam com os demais. Ainda outros andavam com grandes cartazes como se estivessem prontos para enrola-las e enfiar prontamente no inimigo interno que criaram para deleitar seu desejo de aniquilação. E alguns havia ainda que olhavam para aquela baba saindo das bocas e apitos, com ar sarcástico ou mesmo sem entender toda aquela celeuma histérica.
Podes imaginar, que nosso mestre buscando enriquecer sua dádiva entregue por Deus deteve os passos e se pôs a examinar minuciosamente aquela gente estranha. No entanto, eis que, de repente, se viu cercado por aqueles vultos; soltavam gargalhadas tenebrosas, berravam:
– Comunista! Comunista!
Sem entender muito bem o porquê diziam aquilo Teotônio se aborreceu muito. Porque afinal existirá algo mais ofensivo para o filho do homem do que ser resumido e encaixotado num substantivo que naquelas bocas espumentas tinha se tornado adjetivo. Com aquela dignidade peculiar à amiga do filho do Altíssimo, dono de todo ouro e toda a prata, Alexandra redarguiu dizendo o seguinte:
– Vão se foder seus ratos! Não me ofendem com isso seus restos de nada!
Aí todos começaram a resmungar; mesmo aqueles que até então ainda não tinham levado seu ódio à cega atitude, empunharam as suas caras de olhos avermelhados com cólera e, agitaram impotentes as mãos, bradando palavras desconexas com enormes baforadas insuportavelmente fétidas no rosto de Teotônio. Os bafos eram tão fedidos que atordoavam o filho do homem e mesmo a valente Alexandra. Em seguida, praguejaram contra o filho de Deus em termos tão próprios a estirpe de vultos que nem vale a pena repetir ou reproduzi-los aqui. A lembrança daquela cena um dia enchera toda a humanidade do mais profundo horror. Finalmente afastaram-se, soltando gritos histéricos, e ouviu-se a menção; “temos que matar esses vagabundos”.
Uma moça da imprensa que tinha assistido tudo e tudo ouvido, torcendo as mãos aflita, disse:
– Ah, senhores, com todos esses xingamentos e demonstrações de ódio, se fosse vocês eu sairia de mansinho! Essa gente está ensandecida… é a mesma história do bode expiatório… de certa maneira, são como crianças irritadas. Por isso, em toda parte se vocês ficarem por aqui, ainda mais com essa camisa vermelha, poderão levar bordoadas! – Perdoe-me hipotético leitor, eu esqueci de denunciar esse fato; o xingamento começou por causa de uma camisa.
Teotônio, entretanto, não esperou que a boa moça acabasse de falar, em vez disso, dirigiu-se juntamente com Alexandra para o meio da procissão dos vultos verde-amarelo. Percebes que é perfeitamente possível ser um grande personagem do destino humano e, no entanto, desconhecer as coisas simples, corriqueiras da vida social, e perder-se em devaneios flanadores que cabem somente a uma ingenuidade pura, que de tão pura é louca. Aliás o que torna grande a personagem talvez é justamente sua ingenuidade e loucura que aos olhos de vultos são inconcebíveis. Teotônio vivia no mundo, mas não conhecia aquele tipo de gente! Lhe era improvável que o alimento do ódio pudesse surgir do espetáculo e da fantasia de criar um inimigo sombrio na imaginação. Lhe era impossível pensar que a negação ao diferente por parte de gente daquele tipo se tornasse um desejo de aniquilar pura e simplesmente todas as diferenças. Enfim, lhe era impossível entender que, pior que animais irracionais, aquele tipo de gente quisesse que tudo no mundo correspondesse a sua expectativa mediana de vida, ao seu reflexo e a sua crença.
“Sim! É claro!”, pensou Teotônio, “São filisteus!”.
Quando finalmente se adentraram pelas sombras diabólicas daqueles corpos sem expressão, ao ouvirem os sussurros e suspiros incriminadores dos vultos, ao serem envolvidos pelos gritos ensandecidos das bocas espumantes, pelos desafinados tons de gargantas centenárias e viúvas da maldade que ecoavam no meio dos edifícios frios e cinzentos, Teotônio subitamente sustou o passo e bradou, abrindo os braços, como se quisesse descarregar todo aquele peso de ódio no chão.
– Como me sinto mal aqui! Muito, mas, muito mal! – Alexandra olhou espantada para o seu amigo, entendendo perfeitamente a sensação e as palavras que seu messias dizia. Foi quando Teotônio pegou suas mãos e disse – Minha irmã, nesse momento esses corações não batem senão por si próprios, compreende como há tanta besteira em acreditar que a individualidade pode levar o bem para todos?
– Sabe mestre… – Redarguiu Alexandra – Se tem uma coisa correta que aquela velha da minha mãe me ensinou foi o seguinte: com criança ainda dá tempo de corrigir, agora essas crianças crescidas são incorrigíveis, eles não querem pensar, e por isso, não sabem sequer dialogar.
Tudo neles é satisfação de desejos, para eles faltou um não, e eles não aguentam levar um não! Hi! Hi! Hi! Eu acho graça sempre quando estou diante da desgraça e essas sombras são os representantes legítimos da desgraça!
– Me diga então como posso perdoar? – Perguntou Teotônio enquanto um grupo de vultos bradava: ‘Vai pra Cuba!’.
– E eu lá sei! – Redarguiu Alexandra.
– Pense comigo, não posso perdoá-los e desse modo arderão no fogo do inferno, porque o que é o perdão? – Perguntou retoricamente Teotônio – O perdão é a mortificação de si mesmo. É um auto sacrifício que fazemos em prol do outro. Do mesmo modo, o ato de pedir perdão é um ato corajoso porque é onde se assume os próprios erros e se coloca diante de um espelho sem máscara. Tanto o ato de perdoar quanto o ato de pedir perdão é então a morte. E aqui é necessário chamar atenção para a própria ideia de morte. Para os tolos a morte é um fim, para nós não; a morte é um recomeço ou melhor uma ultrapassagem, uma negação daquilo que se foi, para manter só o que se quer tornar e transfigurar a própria experiência passada com um novo significado.
– Sei – redarguiu Alexandra observando os vultos que se acostumaram com sua estranha presença – E como esses ratos são covardes jamais entenderão o próprio erro e a própria covardia!
– Jamais irão querer superar a condição que se encontram, mesmo sendo a vida desses pobres diabos, a mais tediosa de todos os séculos! E digo isso porque sou o verbo!
Esses infelizes estão condenando o mundo a manter-se numa roda infernal e infinita. Não querem mudar a experiência passada, porque o passado os representa e, fazendo isso, não mudam a forma como a consciência lida com essa experiência no presente. E assim procedendo eles fazem com que o passado se torne um perpétuo presente!
– Então a falta do não – disse Alexandra – Atrofiou essas consciências… Quer dizer, eles são semibárbaros, para eles nem história existe?
– De tanto ouvir meus sermões está pegando as coisas fácil! – Redarguiu Teotônio coçando a barriga.
– E onde aprendeu tudo isso Téo?
– Meu pai me assopra no pé do ouvido!
Entrementes, mais tranquilo, Teotônio havia tomado os braços de Alexandra e continuava na procissão com passos agora mais rápido porque a fome começava a se fazer presente. Teotônio lembrava-se de todo idílio do assentamento e todas as boas amizades que lá teve, e agora via-se diante da prosa do mundo calçando as ruas daquela Jerusalém. Acabavam de deixar a parte densa e cheio de blush Mary K… Enveredando pela avenida ampla que atravessava a cidade, ou melhor, a Avenida Paulista. Nesse momento, Teotônio avistou ao longe um grandíssimo boneco com barba branca e roupas listradas que flutuava no ar, envolvido numa nuvem de fumaça.
– Oh, oh! – Exclamou ele – Mas, que diabos é aquilo? – A essas palavras partiu em desabalada carreira retirando de Alexandra o sempre presente canivete.
Teotônio foi chegando mais e mais perto, e para nosso herói tinha-se a impressão de que não se tratava de um boneco, mas de um colosso de estatura descomunal, enquanto balançava ao sabor dos ventos e remexia-se ao som do axé music que improvisava uma musiquinha sem-vergonha com passinhos horripilantes. Os vultos passavam sérios e histéricos. Em frente um prédio, diante do gigantesco boneco, conversavam pessoas igualmente carrancudas. Alexandra seguiu Teotônio e em nada repreendeu sua louca iniciativa. No caminho até o boneco tinham que passar por muitos vultos. Aconteceu, então, por acaso, que um daqueles vultos interpelou os dois, e em resposta recebeu um soco de Alexandra que o fez cair com os dentes cheios de sangue. Os vultos petrificados, ficaram parados diante do engasgar do seu companheiro, sem saber o que pensar ou o que fazer. E assim, sem parar na firme resolução, Teotônio tomou das mãos de um vulto um grosso barbante que mantinha o boneco gigante flutuando.
Por mais que, no momento, não queira dar aqui explicações, certamente tu hipotético leitor, já sabe que naquela altura a polícia tinha sido acionada. Como a multidão de vultos, porém, dificultava a arremetida dos policiais, deu tempo para Teotônio baixar o boneco inflado e lhe cravar o canivete fazendo um buraco da largura de uma bola de futebol. Decerto era efeito milagroso que se processava naquele instante, o boneco foi diminuindo e pousou lentamente sobre a cabeça de centenas de vultos. Essa distração deu tempo hábil para que Teotônio e Alexandra se esquivassem pela rua chamada Haddock Lobo.
Um grito de dor ecoou daquela multidão sem rosto e sem espírito, como Ulisses, Teotônio cometeu um ato de necromancia ao contrário; ao acabar com aquele boneco, acabava também com o símbolo de ódio daqueles corpos sem vida. Tal impressão provinha indubitavelmente do forte abalo que ocorreu quando o boneco pousou sobre as cabeças daquela gente. Certamente em muitos lugares na face dessa terra deve haver vultos como esses que cruzam as ruas paulistas, mas provavelmente nenhum foi formado por quinhentos anos de catolicismo que ergueu a adoração pelo ícone. Teotônio tinha acabado também com o ícone e agora tudo era sem sentido.
– O que aconteceu pelo amor de Deus, o que aconteceu? – Exclamava esbaforido um homem na televisão e ninguém sabia responder porque toda procissão – ou passeata como chamava o homem na televisão – tinha transcorrido no interior da ordem e decência. Como aquilo poderia ter acontecido bem ali? Não posso ocultar o fato de que alguns corações palpitaram de alegria. Alguns olhares amistosos queriam contemplar a face de Teotônio sem aquelas manifestações contundente de ironia. Centenas de vezes isso acontece, eram bem poucos os corações, mas certamente ainda palpitavam no lado certo do peito.
Enquanto os policiais tentavam saber o que tinha acontecido; enquanto os canais de televisão, repetidamente, estampavam o boneco esvaziando e murchando lentamente; enquanto aqueles vultos voltavam para seus lares e suas vidas tediosas; nosso herói junto a Alexandra descia já a rua Augusta com o sagrado sorriso no rosto. Rumavam ao delicioso Centro velho, lugar de palcos e pulsão. Lugar em que a verdade aparecia em seu grau máximo de realidade, lugar tosco e nada belo, mas que guarda alguma coisa extraordinária, sim porque foi nesse lugar que surgiu Teotônio; por isso, era o lugar em que iria exercer seu ministério e fazer seus primeiros discípulos.
Meu irmão… estava esperando para comentar no final, mas esse capítulo é vivo demais!!!
Soco no estômago dessa direitona arrogante, chata e pedante.