E levaram Teotônio até a delegacia mais próxima tentando imputar-lhe a culpa pela morte de Alexandra. E agora o paraíso, livre de toda e qualquer necessidade, lhe parecia já aprazível. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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É-me dado todo o poder no céu e na terra. Portanto ide, ensinai todas as nações. (Mateus)
E levaram Teotônio até a delegacia mais próxima tentando imputar-lhe a culpa pela morte de Alexandra. Quando finalmente adentraram pelas sombras tenebrosas com o camburão, ao ouvirem os sons agudos e agonizantes da sirene, ao serem envolvidos pelas horríveis constatações da tragédia que se somavam ao soturno barulho de carros pela avenida, Teotônio subitamente ergueu a cabeça, tentando abrir os braços como se quisesse amorosamente abraçar o mundo, e exclamou:
– É chegado o momento!
– Cala a boca retardado! – Gritou um policial bravo. Uma vez na delegacia, os policiais, como de costume, testificaram falsamente contra nosso messias. Durante o julgamento Teotônio estava calmo, embora sério e pensativo – naturalmente o que estou chamando de julgamento é simplesmente a presença de nosso messias frente ao delegado. Seu desprezo pelo delegado era tão intenso que nosso mestre não desejou um só instante enfatizá-lo por uma supérflua demonstração de alegria frente a condenação que sabia que viria. Nosso mestre estava simplesmente tão calmo como era necessário para esconder dos inimigos, hostis e maldosos, a grande melancolia pela perda de Alexandra.
Calou-se e nada respondeu; algumas vezes olhava por uma vidraça quebrada frente a mesa do delegado. Este suava e babava tentando dar-lhe lição de moral enquanto Teotônio manifestava em relação a tudo o que estava por acontecer alguma curiosidade; dolorosa pela certeza do martírio que adviria, mas ainda assim, alegre pela igual certeza da redenção. Estava como acontece aos loucos que são movidos por uma ideia que lhes absorve toda alma. Lançava um olhar fraterno e rápido, observava com certa ternura e concentrava-se em alguma frase que considerava interessante de seus incriminadores, depois retomava seus pensamentos sobre a ideia geral de como era o paraíso.
E agora o paraíso, livre de toda e qualquer necessidade, lhe parecia já aprazível. O Paraíso podia ser visto no fundo dos seus pensamentos; pensamentos que estavam límpidos como uma janela que acabava de ser esfregada por mãos hábeis. À primeira vista, as ruas no céu pareceriam não ter casas, mas quando se olhasse por mais tempo, via-se pequenos quartos ornamentados com simplicidade e plenamente confortáveis, de uma beleza singela que ia ficando cada vez mais profunda, mais manifesta, mais intensa. E o fato das ruas serem amplas e os pequenos quartos não se revelarem todo de uma vez, e sim do contrário, esconder-se castamente entre bosques e pomares, tornava-o tão encantador quanto uma moça que desabrocha a fragrância rósea da juventude. E Teotônio olhava para o céu pela vidraça, coçava o queixo, piscava com calma os olhos, com seus cílios femininos e belos, meditando com carinho em todas essas belas coisas divinas.
Distraído, pôs-se a movimentar as mãos apertando uma contra a outra, e franziu a testa com alegria ao descobrir que todas as ruas do Paraíso terminavam em gigantes praças públicas. Praças onde se concentram os mais belos e divinos recitais ensaiados pelos grandes corais de Serafins e músicos de todas épocas que se reúnem sob a concha acústica. Ao ver tais coisas pela vidraça da delegacia quase instantaneamente a cor das faces de nosso messias se fizeram fortes, desafiadoras. Com os dedos começou a coçar a cabeça com uma animação pouco vista naquele espaço tão indecente. A alegria da vida eterna e da certeza inexorável do Paraíso tornaram-se fortes em seu peito, e seu rosto franco e simples novamente estava voltado para a vidraça. De repente, perante a escassez de água em São Paulo, um escrivão trouxe uma bacia de água para o delegado que queria lavar as mãos e degustar um terrível salgado. Ao lavar as mãos, disse:
–É impossível condenar esse homem, havia muitas testemunhas no lugar e nem os paulistas conseguiriam admitir uma mentira dessas! De modo que – Olhando para a bacia concluiu sarcasticamente – Lavo minhas mãos!
Os policiais sorriram porque aquilo indicava somente uma coisa. Enquanto isso, nosso messias despreocupado observava o céu, que vinha ficando cada vez mais claro, perdendo gradualmente a escuridão. Um céu que foi ficando belo e se tornara rosado pela energia refletida da lua que sorria com suavidade na madrugada longínqua. Teotônio deu um suspiro, longo e caloroso, olhou mais duas vezes para a vidraça querendo se concentrar nos banquetes que logo lhe seriam servidos no Paraíso. Naturalmente, para Teotônio, longe do trabalho todos aprenderiam no Paraíso a cozinhar os pratos mais dignos e saborosos da Eternidade; construiriam as melhores praças, as mais belas universidades, os mais belos monumentos ligados a glória, os mais suntuosos teatros ao ar livre, não haveriam doenças, nem fome e a própria eternidade seria uma conquista daqueles que lutaram por essa fé, e tudo isso feito sem trabalho.
– E você não vai dizer nada contra os que te acusam? – Redarguiu subitamente o delegado, mas ele calou-se, e nada respondeu. O delegado lhe tornou a perguntar, e disse-lhe – É verdade que dizem por aí que você é o filho de Deus?
– Eu o sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu[1].
– Ave Maria! Esse é doido mesmo! – Bradou o delegado – Tirem esse estrume da minha frente!
E os policiais o consideraram, por isso, culpado de morte. “E alguns começaram a cuspir nele, e a cobrir-lhe o rosto, e a dar-lhe punhadas, e a dizer-lhe: profetiza. E os servidores davam-lhe bofetadas[2]. Teotônio encontrava-se num torpor divino fruto de sua preparação para a consumação de sua promessa e contemplava pensativo as profundezas do abismo daquelas almas, tão vazias, onde fervilhava indecoroso um ódio sedimentado em rochas de angústia e solidão.
Vozes atordoadas ecoavam nas paredes daquela delegacia e desapareciam logo em seguida. O rumorejar de teclados e de telefones soava como um gemido abafado, entrecortado pelos gritos de ordens que, abandonando as tediosas tarefas, erguiam-se e se lançavam na imensidão de vazios corredores iluminados pelos giroflex das sirenes.
Tinha Teotônio a sensação de ouvir o lamento tenebroso da humanidade traduzido na síntese daquelas vozes desumanas da delegacia, como se ele próprio estivesse prestes a sucumbir nesse lamento, como se toda sua vida se exaurisse no sentimento da mais escabrosa aflição. A tristeza daquele ambiente hostil partia-lhe o coração e, enquanto os cutucões policialescos lhe guiavam de volta para a recepção, era como se os demônios de todas as orlas infernais estendessem ao seu encontro o riso de escárnio e o atraíssem ao inferno da vida sob a égide do deus do dinheiro.
Eis que, muito próximo, ecoou pelos ares uma voz familiar e alegre tal como pagode, suavizando a dor que invadia o peito de nosso messias. Era a voz do seu grande discípulo de dias afortunados; Juliandro. E, por isso, Teotônio sentiu em seu interior despertar aquela ternura, monopólio de uma verdadeira amizade. Olhou ao redor e, enquanto prosseguia o eco da voz amistosa, percebeu que aquele lamento humano no interior daquele triste prédio teria em breve um final, que toda a tristeza consagrada a falta de recursos seria logo findada com seu sacrifício. Voltou a ter coragem de levar até o fim a sua missão.
– Oxe! Que faz aqui Teotônio? Que alegria te ver! – Perguntou Juliandro com um sorriso sincero.
– Na verdade meu amigo… estou aqui para cumprir o que está nas escrituras, hoje é o grande dia de derramar meu sangue para expiar todos os pecados! – Redarguiu Teotônio com calma incomum.
– Que coincidência! – Disse Juliandro – A gente se encontrar aqui… estou aqui por causa de pensão… não paguei e acho que você nem sabia que eu tinha filho né!?
Os assuntos a partir daí correram lacônicos, ambos estavam em situação desagradável; por um lado, Teotônio tinha que salvar a todos nós através do martírio, por outro, Juliandro tinha que pagar a pensão. Quando, finalmente, emocionado, arrebatado pelo sentimento do heroísmo que invadia o seu peito, Teotônio confessou seu amor a humanidade – a encantadora humanidade – sentiu toda a ventura da fé e do olhar de milhares. Deve haver um mistério em torno de almas como a de Teotônio, um encantamento e poder que retira a alma do caminho do trivial, do lisonjeiro, do útil. Privilégio de destinos que lutam contra todas as forças hostis e pressentem em seu íntimo que alguma coisa fantástica haverá de depositar nas mãos de todos os oprimidos e explorados – ou oprimidos porque explorados – a arma de que necessitam para vencer o monstro maligno.
E assim, com tais pensamentos, Teotônio fora obrigado a se afastar de Juliandro e com um doce olhar lhe disse: adeus. Seguiu assim por um tenebroso corredor sendo acompanhado por um dos policiais. Nosso messias agora algemado avistou nos fundos da delegacia um camburão cheio de policiais, pareciam já lhe aguardar. Percebia no fundo, que aquela companhia o levaria para um passeio sem retorno e exatamente por isso prestava atenção nos mínimos detalhes.
Enquanto isso sucedia tal como aqui narro, na recepção da delegacia Juliandro estava sendo questionado; perguntavam-lhe se conhecia Teotônio e, o mesmo, negou seu messias por três vezes. E essa impossibilidade de dizer a verdade, que pela primeira vez apresentava-se ao fraco juízo de Juliandro, enchia-o de terror. Ainda sem ousar entender o que estava nas entrelinhas daquela interpelação policial, ele já sentia a inevitabilidade do destino de Teotônio; suas mãos e pés adormeceram, pois, parecia que a culpa pelo sangue inocente seria depositada em suas mãos. Mas, ele se lembrou de como Teotônio era bom e aquilo nada mais era que o cumprimento de suas palavras.
***
Teotônio Cristo nunca havia pensado na morte, tinha por ela grande desprezo e a considerava como algo menor, algo que não lhe poderia afetar. Com aquele ímpeto tempestuoso pela vida e pela felicidade dos povos que faz qualquer sentimento ruim desaparecer sem deixar rastros, não compreendia a necessidade de se preocupar com a finitude. É exatamente isso que fazia com que tudo que lhe pesasse sobre a alma, e ferisse seu ânimo, fosse logo superado desaparecendo em seguida. Somos agora testemunhas de que ele tomava cada tarefa, mesmo as mais corriqueiras, com a mesma seriedade e calma de alguém que vê em tudo um grande nada temporal e finito. Por isso mesmo, tudo em sua vida até aqui fora alegre, tudo era importante, tudo devia igualmente ser feito com dedicação.
Mesmo no interior daquele carro odioso nosso messias não ficou triste: “apesar de não ter santa Ceia ou eu não ter conseguido reunir doze discípulos, não fracassei em minha busca”. Mas depois pensou: “Algo tem que sair conforme as escrituras: morrer para salvar milhares”. Por mais estranho que se possa imaginar, Teotônio dentro do camburão dedicou-se a pensamentos alegres, que por vezes, pareciam levá-lo a acreditar que no dia seguinte iria comer um pão com manteiga e fazer todas as coisas que sempre fez. Embora soubesse que não teria resposta, disse para seu Pai que o havia abandonado: – Pai perdoa-lhes, eles fazem, mas não sabe o que fazem!
Dizer aquelas palavras era o mesmo de sentir alguém lhe golpear o coração. A sensação era muito dolorosa e impertinente, porque nada humilde. Teotônio sabia que aqueles homens eram mais baixos do que cães, pois cães obedecem às ordens sem ter o privilégio da dúvida; desculpa que não pode ser dada a nenhum ser humano. Por isso a dor não passava, e ficava a cada quilometro mais intensa e duradoura, e passou a assumir contornos firmes de uma ansiedade insuportável.
Não se pode dizer que tinha medo. Em especial naquele momento tinha um horror pelas caras carrancudas, mas se sentia, contudo, livre, sentia um influxo especial de alegria tão avassaladora e estranha a sua natureza terna que julgou, com razão, estar se aproximando de seu destino final. Um patético policial lhe preparava uma coroa, não de espinho, mas de cartolina onde escrevia: “Eis aqui Teotônio Cristo, rei das putas, dos viados e dos pretos!”. Teotônio sabia que a vida tinha se convertido em um mundo incompreensível de fantasmas e fantoches, algo terrível. Que, embora haja atualmente todos os mecanismos para que se comuniquem entre si, os homens mais assemelham-se a mudos ou ao invés de palavras soltam grunhidos.
Rumando para o seu Gólgota dentro daquele camburão, tentava recordar o que significava viver naqueles dias. Tudo parece se mover, as bocas parecem abrir-se, ouvem-se alguns sons, as pessoas movem os pés e viajam, mas nada é substancial nem tem significado. São as coisas, os objetos que ganharam vida e começaram a se mover e a julgar: o giroflex, a roda do camburão rumo ao destino final, os cassetetes e a ponto 40. Teotônio via os homens chorar e sangrar pedindo socorro, enquanto os objetos conversavam entre si em sua própria linguagem. Eram as coisas tornadas mercadorias que guiavam Teotônio para o patíbulo – a camisa de grife, a bolsa de jacaré, a fechadura da porta, o computador de última geração – eram eles que adquiriram uma linguagem própria e conversavam entre si, dando risadas e tecendo planos e estratégias para escapar da culpa pelo sangue inocente de nosso messias.
Para Teotônio tudo se revelava com uma clareza atroz, tudo agora parecia coisa: os policiais, os obreiros, os pastores, os fiéis, os infiéis, os filósofos, os agitadores e, acima de tudo aquela trupe de palhaços que o carregavam para o destino final. Por isso morrer e acordar no Paraíso lhe seria algo bem-vindo. Para coisas não há morte e por isso Teotônio preferia morrer na esperança de, quem sabe, retirar esse encanto que cobre os quatro cantos do mundo. Para coisas a morte é apenas um desgaste e nisso todo o enigma da morte tornou-se mecânico e ritualístico e, por essa razão, algo terrível: velas, choros e a falta de crença que a morte poderia cedo ou tarde chegar, eis o fado que condena todas as coisas. Fado que se agarra ao tempo da própria produção de coisas e por isso parece não ter fim jamais.
“Os homens são algo raro no mundo”, pensava ainda Teotônio quando o camburão seguia numa estrada erma e escura. Por um instante lembrou-se do acampamento, da casa de Juliandro, dos dias felizes ao lado de Alexandra, da praça da Sé e imaginou ver aí pessoas reais. Então ainda sentado no chiqueirinho do camburão, contemplando a estrada passar pelo vidro do carro, Teotônio via aproximar o terror do mistério insondável, aparecendo-lhe com tanta clareza que o envolvia por completo. “Então é esse o sentimento de um condenado?”, pensava consigo. Algo se mostrou; era como se um socorro calmo e melancólico se desenhasse com traços turvos e se fizesse ver e sentir. A coragem foi recobrada e com ela o olhar altivo que como uma cachoeira a brandir sobre rochas mostra às coisas como são pequenas. O camburão parou.
– Desce seu vagabundo… não respeita a farda nem a Instituição? – Perguntou um dos policiais sendo seguido por outros quatro que desceram do camburão – Como ousa nos chamar de desgraçados, agora você terá o que peso morto como você merece!
Teotônio desceu sem se deter; os faróis ligados do camburão era a única coisa que iluminava aquela estrada triste coberta por uma neblina gelada que escorria mansamente do céu. Logo o rosto de Teotônio ficou abatido, a loucura explodiu rapidamente. Sua consciência apagava-se como uma vela no fundo de um pires. “Não é possível! Onde está a cruz?”. Sua consciência moribunda desesperou-se; vermelha como deve ser sua razão buscava resposta para aquela falta de critério dos soldados romanos. E assim, nosso messias, passou a sofrer dores inomináveis que rapidamente alcançaram um grau de angustia gigantesco.
– Senhores! – Bradou para os policiais – Onde está a cruz que serei crucificado?
– Não tem cruz nenhuma! – Disse rindo um dos policiais.
– Tem que ter uma cruz! – Gritou Teotônio avançando furiosamente no pescoço do policial que foi acudido pelos demais, estes deram golpes vibrantes nas frágeis costelas de Teotônio que tombou no chão gemendo.
– Vamos não torne as coisas difíceis! – Disse um outro policial – Erga-se e tome sua coroa!
– Preciso de uma cruz, canalhas! – Gritou Teotônio e foi erguido pelos outros policiais que riram de sua loucura e o coroaram, ficando frente a frente como nosso mestre.
Teotônio recobrou um fio de lucidez turvada, olhou em volta com uma curiosidade turística. Examinou a estrada, os matagais que a cercava por todos os lados, o camburão e os rostos displicentes dos soldados romanos. Uma estranha sensação alegre lhe tornou a invadir, estava certo de que não sendo crucificado pelo menos seria morto, o que já era um sacrifício e um martírio dos grandes. As mãos começaram a tremer, coisa que Teotônio estranhara. Seus pensamentos voavam distantes com as nuvens que não se via. Era como se o fogo reconfortante do que vivera até ali lhe desse um pulso firme e vibrante, um fogo que queria avançar e iluminar todas as almas mortas e sem sentido. No horizonte os primeiros raios do sol surgiam deixando as nuvens vermelhas e alaranjadas. A expressão de vigor, de repente, surgida nas faces de Teotônio assustou os policiais que de gargalhadas passaram a fita-lo com seriedade.
Embora, não estivesse escrito no livro sagrado, Teotônio sabia que sua vida tinha constituído um novo capítulo na história da humanidade; a serpente viva, pesada e fúnebre da história tinha mais um monumento para se erguer. Face a face com a morte, a formosa bondade voltava-lhe a brilhar vivamente no rosto.
– Vamos seu idiota – Disse um dos policiais – Caminhe naquela direção e não olhe para trás!
Sem demonstrar qualquer sinal de medo, Teotônio virou de costas e passou a marchar tranquilamente. Na verdade, era mais que a bela tranquilidade. Com a maravilhosa clareza que só um espírito nobre e santo pode ter, Teotônio era elevado aos mais altos píncaros da compreensão. Nosso messias, em seus passos pela estrada que começava a clarear, de súbito percebia o sentido da vida e da morte, e sorria diante da esplendorosa frugalidade daquele conhecimento. Parecia-lhe estar caminhando ao longo da montanha mais alta, mais bonita e mais harmoniosa; como dois continentes, a morte e a vida lhe apareciam como iguais, tanto que inexistiam não sendo senão uma miragem. Uma bela miragem, profunda e brilhante, que se fundia em uma só superfície ilimitada no horizonte.
Tau! – Ouviu-se o primeiro disparo, Teotônio nem sentiu que a bala se cravara em sua santa carne.
Continuou involuntariamente rindo, endireitou-se caminhando como se rumasse para Canãa celestial. E abrindo os portões do paraíso parecia destruir o tempo e o espaço com a impetuosidade de seu olhar que compreendia tudo e tudo o compreendia. Mergulhou sua visão nas profundezas e mistérios dessa vida que estava lhe deixando ir, desse mundo que definitivamente não o merecia.
Tau! – Outro tiro.
Todas as coisas lhe apareciam sob um olhar renovado. Não importavam agora palavras, nenhum mistério da linguagem poderia descrever o que sentia; tampouco existia palavra adequada que não corrompesse aquele sentimento de liberdade. Nada que era mesquinho, mau, cínico e egoísta, que provocava tanto a sua repulsa, parecia sobreviver. Desapareciam também, tal como alguém que voa como os urubus e para quem a humanidade é como uma estrada, toda sujeira, rancor e ódio. Sem consciência de que de fato estava morrendo, Teotônio se ajoelhou na estrada que já estava totalmente clara pelo sol que despontava os raios calorosos e secava os orvalhos alhures. Nunca erguera tão feliz a cabeça e nunca se sentira tão livre e imponente. Como uma confirmação divina os raios do sol se puseram a reverenciá-lo corando sua face que sangrava.
Tau! – Outro tiro lhe cravejou.
Em direção ao céu Teotônio sobrevoava o tempo e percebeu como era claramente infantil todos os disparates humanos. Que coisa misteriosa o transportava com tantos solilóquios alegres, ninguém jamais poderá explicar. Com o coração rejuvenescido sua face desfalecia e um gostoso sono começou a pesar sobre suas pálpebras. Afinal não era tão ruim.
– No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus! – Balbuciou Teotônio ao tombar com o rosto no chão.
E assim morreu o filho do homem.
Para este que narrou a história; o maior dentre todos os homens[3].
FIM
[1] Marcos, 14, 62.
[2] Marcos, 14, 65.
[3] O hipotético leitor me desculpe à insistência, mas não posso me furtar à verdade; e a verdade é que me deparei com Juliandro tentando encontrar, sem sucesso, o corpo de Teotônio no IML. Foi quando me propus a ajudá-lo e exercer com cidadania minha advocacia. Devo dizer ainda que a trágica noite e madrugada foram reportadas em diversos jornais. Apareceram os rostos de Teotônio e Alexandra nos mesmos meios de comunicação, com destaque para esta última. Teotônio resumiu-se a um Auto de Resistência; colocaram uma arma próxima ao seu corpo e mesmo com a coroa, com as marcas das algemas e com os claros sinais de execução, o caso foi arquivado pela Secretária de Segurança Pública. O jornal não deu tanta atenção ao seu caso, mas aproveitou-se sobremaneira do caso de Alexandra.
Tornei-me assim amigo de Juliandro e fomos à caça do corpo de Teotônio, enquanto ele resumia tudo que tinha visto e ouvido falar das maravilhas feitas pelas mãos de Teotônio. Entretanto, três dias depois Juliandro voltou sorrindo e disse ter visto o mestre nas imediações da Praça da Sé. Obviamente, duvidei e quis eu mesmo ir vê-lo. Não o encontramos mais em lugar nenhum até que certo dia nas escadas da Catedral, um bando de loucos e vagabundos afirmaram que Teotônio tinha subido aos céus. Amém.