Talvez, atualmente, “o que fazer?” demande, primeiramente, uma reflexão sobre “o que não fazer”. Por Lindberg S. Campos Filho

“Em todas as revoluções anteriores”, escrevia Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918, “os combatentes se enfrentavam de peito aberto: classe contra classe, programa contra programa. Na revolução atual, as tropas de proteção da antiga ordem não agem sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um ‘partido social-democrata’. Se a questão central da revolução fosse colocada aberta e honestamente – capitalismo ou socialismo -, nenhuma dúvida, nenhuma hesitação seriam hoje possíveis para grande massa do proletariado.” Assim, alguns dias antes de sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobria o segredo das novas condições criadas por todo o processo anterior (para o qual a representação operária contribuíra muitíssimo): a organização espetacular da defesa da ordem existente, o reino social das aparências onde já nenhuma “questão central” pode ser colocada “aberta e honestamente”. Nesse estágio, a representação revolucionária do proletariado tornara-se ao mesmo tempo o fator principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade. Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo.

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George Grosz – Metropolis – 1917

Tanto o ato do último domingo (8/11) quanto a Frente Povo Sem Medo como um todo são expressões contemporâneas de uma formação política chamada de social democracia. A social democracia é, como definida por Guy Debord, “a representação operária que se opõe radicalmente à classe”. Ela é, desse modo, uma fração de dirigentes, intelectuais e forças religiosas oriunda da classe trabalhadora que possui todo um instrumental técnico para impedir a eclosão de conflitos na luta de classes. Porém, a social democracia é um comportamento político que tem uma série de colorações histórica e geograficamente localizadas. Isto quer dizer que a social democracia brasileira tem diferenças internas muito significativas e também em relação a sua forma europeia no melhor estilo “desigual, mas combinado” ou ainda “diverso, mas não alheia”.

Se por um lado, a social democracia foi fundamental para literalmente desarmar a classe trabalhadora Europeia – que se encontrava armada, pois havia vencido a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) nas frentes antifascistas, preservando assim as propriedades da classe dominante – através da construção de todo um aparelho de estado voltado para um bem estar social baseado na efetivação de direitos como substituto da revolução. Por outro lado, o advento da social democracia brasileira na economia de comando, começando já nos anos imediatamente anteriores ao mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), passando por Lula (2003-2010) e indo até os dias de hoje no segundo governo Dilma Roussef (2011-hoje), foi caracterizado pela política centrista e, consequentemente, sistemática retirada de direitos sociais quando pressionada pelas forças economicamente hegemônicas. Trocando em miúdos, a especificidade brasileira está na neutralização da luta de classes através de um grande pacto de classes que emerge de programas de administração do social. O exemplo mais evidente é o 0,47% dos 45,11% de todo o orçamento nacional executado que o capital financeiro nacional e internacional acumula via pagamento do juros e amortizações da dívida pública que é distribuído na forma de bolsa família.

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Max Beckmann – The Night – 1919

Tal esquema ainda tem a vantagem de inserir setores de massa no sistema de crédito, pois o que houve foi a distribuição de dinheiro e não a efetivação de direitos como saúde, educação ou habitação – algo que, sem sombra de dúvidas, produz consciência, diferentemente do dinheiro que anula processos e a interdependência coletiva em sociedade. Além disso, é justamente essa inserção via consumo uma das principais causas do atual individualismo, agressividade e conservadorismo popular e da existência de uma “nova classe média” cujo ressentimento em relação às ilusões de ascensão prometidas pelo petismo está sendo acumulado politicamente pela direita e especialmente pela extrema direita. Algo, aliás, que já deveria ter ligado o sinal amarelo para esquerda como um todo.

Isto tudo sem o prejuízo do fato assustador de que 74 reais mensais é crucial para milhares de famílias neste país; a questão aqui é entender friamente em qual lógica essa gestão do social se insere. Daí, não causar muito espanto a participação do PSOL nesta frente porque, por mais heterogênea que a sua substância possa parecer, a intervenção deste partido varia da petista em grau e não em tipo. Contudo, o mais preocupante da presente conjuntura é o jogo de sombras que tanto as marchas à direita quanto a Frente Povo Sem Medo promove, e que a extrema direita tem instrumentalizado. O que une ambos é que os direitos sociais e a ruptura com o atual estado de coisas são questões secundárias em relação à permanência ou não de Dilma na cadeira de presidente. Tudo é negociável para ambos os lados – regime democrático, liberdade de expressão, reforma agrária e demissões, só para citar alguns exemplos – com exceção do apoio ou do rechaço ao governo petista. É um jogo de imagens que substitui o real, o que de fato importa – a concretude da luta de classes materializada nas pautas reais – por um conjunto de pseudoeventos que nos fazem girar em falso e terminam de afogar toda inteligência social brasileira. Afinal de contas, como vamos animar a classe trabalhadora nos aliando com quem a enganou e a ataca diretamente do poder executivo? Do mesmo modo que é verdade que não há ainda um polo político que anime os trabalhadores deste país para lutar para defender seus próprios interesses, também é verdade que a Frente Povo Sem Medo jamais cumprirá este papel, primeiramente porque não é este o seu real interesse e secundariamente devido ao fato de ser impossível conceber que dirigentes que precisam andar com guarda-costas em atos e assembleias com medo da base enganada, como é o caso do alto escalão da CUT, possam se apresentar como alternativa a qualquer coisa que seja. O que importa, para a quase totalidade da esquerda, é a simbologia que encobre as forças governistas e não o que de fato tem e está acontecendo.

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Otto Dix – The Skat Players – 1920

A experiência petista representa, simultaneamente, um episódio inédito e recorrente na história política brasileira. Inédito porque o PT foi o principal responsável por criar no imaginário brasileiro a possibilidade de um governo de esquerda – algo impensável no contexto nacional pré 1964. A coordenação de uma transição democrática lenta e gradual que não venceu e nem desarmou a ditadura militar com o acúmulo de forças, que desembocou na criação do PT, lançou as bases da reinvenção do social nos anos 1980. Este social é marcado, como nos esclarece a professora Tatiana Maranhão, por um consenso moralizante que culpabiliza o indivíduo pela sua condição de pobreza. Em outras palavras, desenvolvimento passa a ser visto como o combate à pobreza extrema, fazendo com que a miséria deixe de ser um problema estrutural e resultado necessário da reprodução social capitalista para se metamorfosear em uma fatalidade que dissolve conflitos: todos contra fome. No entanto, como dito logo acima, a atual situação também tem uma dimensão recorrente, pois faz parte da dinâmica social imposta ao Brasil pela sua inscrição na ordem mundial.

Acredito que Roberto Schwarz está coberto de razão quando afirma, em seu Um Seminário de Marx (1998), que, devido à atenta divisão mundial do trabalho, toda tentativa de superação dos atuais arranjos sociais é seguida da “reposição daqueles mesmos arranjos (a reposição do atraso) ou de sua reformulação (o atraso reposto de modo novo)”. Há, a meu ver, a ausência de uma experiência de ruptura revolucionária abrangente e ambiciosa que bloqueia a saída desta situação. A questão que se coloca a partir de tudo isso é como a esquerda pode deixar de fazer o que vem fazendo desde os anos 1980 que, por algum tempo pode até ter feito sentido, mas que hoje é a própria lógica da dominação do capital e que retira as ideias de esquerda da sua vocação: incendiar os conflitos existentes que são escondidos pelos tentáculos da democracia à serviço do capital. Talvez, atualmente, “o que fazer?” demande, primeiramente, uma reflexão sobre “o que não fazer”.

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