No mundo atual, a defesa da “arte proletária” como um fim em si mesma beira o elogio à miséria e ao imobilismo, transvestido de ostentação e afirmatividade. Por Poeta em Buenos Aires
“Através desta primeira iniciação nas realidades que nutriram a uma poesia, a cultura é também o meio de advertir, em fim, o carácter específico da poesia, seu papel, seu objeto, sua finalidade”
(George Mounin, Poesía y sociedad, p. 111)
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Após termos conhecido a proposta produtivista de Tarabukin na primeira parte, podemos agora esboçar uma certa diferenciação no cruzamento dos campos da arte e da política: por um lado o modelo esteticista pelo qual o artista faz uma leitura política da vida cotidiana ou nacional a fim de criar uma estética, uma estilística que seja autêntica e que se dirija aos trabalhadores como consumidores de cultura (visitadores de museus, audiência de espetáculos, leitores de novelas, receptáculos de uma mensagem transmitida pelos meios reconhecidos como artísticos). A melhor expressão desta captura quase científica da percepção das massas e seus gostos é sem dúvidas Hollywood e sua capacidade de produzir identificações afetivas nas massas de trabalhadores. Nas outras artes, a música é consumida pelas massas a virtualmente qualquer hora do dia e escolhida a dedo, personalizada para o consumidor pela internet, as artes plásticas sofrem do fenômeno das mostras de massas, megaproduções publicitadas e financiadas por empresas privadas ou por agências estatais, criando um novo consumo cultural baseado em mostras interativas para levar a família passear, um entretenimento sofisticado.
Por outro lado, a metodologia proposta por Tarabukin, partindo de uma leitura política da vida social para aplicar as habilidades formais (construtivistas) e estilística diretamente às necessidades cotidianas e políticas. Direcionado não a um consumidor, como podem ser a intelligentzia do proletariado, as classes médias progressistas ou as massas de trabalhadores, senão ao próprio processo político, social e econômico de base, nos territórios das atividades e da vida dos produtores. Segundo Tarabukin, no campo da produção e da agitação social. Involucrar-se nos processos sociais, involucrar a arte nos processos sociais e políticos e involucrar as massas nos processos artísticos.
A questão da “arte proletária” que Tarabukin menciona está longe de ser expressada apenas como um recorte de origem dos artistas soviéticos. Ela era também uma questão política educacional, de disputa econômica tendo a NEP ((Nova Política Econômica, com sigla em inglês) como fundo, e inclusive uma questão de controle sobre a censura e a política editorial soviética. O grupo da “arte proletária” defendia a ênfase na procedência de classe para impulsar a arte soviética, impulso associado à formação de uma elite operária (educação superior de quadros nas artes). Em sua oposição estavam as linhas políticas que defendiam um modelo de educação cultural de massas. Num destes verdadeiros labirintos ideológicos, a própria esquerda soviética estava dividida entre propostas diferentes para a cultura [1] – não faltaram opiniões aparentemente contraditórias, como quando grandes referentes do Proletkult, organização de massas, defendiam uma concepção de formação cultural elitista. Para entender melhor estas posturas, deve-se ter em mente a intenção de muitos dirigentes políticos em tentar controlar o sentido da produção cultural soviética a partir do polo operário e contra a oposição feita pelo polo populista-campesinista. Este último passou a contar com uma melhor posição política a partir da implementação da NEP, e contava com muitos artistas e intelectuais que travavam também de seu lado a batalha cultural.
Em outras palavras, a questão da origem proletária dos artistas num primeiro momento teve a ver com as divisões políticas dos primeiros anos da revolução. Alguns setores, embasados em um marxismo mecanicista, argumentavam que, sendo o operariado o sujeito revolucionário, a arte operária seria a verdadeira arte revolucionária. Tal lógica é tão limitada que nem chega a tocar a crítica aos modos e finalidades da arte na sociedade burguesa; debate que rendeu muita tinta e argumentos estéticos feitos à medida para defender questões políticas de continuidade ou de rejeição à arte burguesa e religiosa (outro tema pródigo em confusões e situações labirínticas quanto às divisões ideológicas e políticas [2]). Enfim, enquanto a “arte proletária” enfatiza o artista (e no contexto revolucionário, como vimos, a educação formal em artes), Tarabukin desenvolve uma formulação verdadeiramente autônoma do artista na medida em que este é formado com instrumentos de ação e interação nas bases sociais, e não para produzir uma estética que sirva de defesa política; ação e interação de livre autonomia e envolvimento nos processo de base e autogestão das lutas e da economia, na criação de novas relações sociais segundo a visão materialista.
Mas para poder incidir nos processos sociais mais dinâmicos e potentes da classe trabalhadora, o mais importante da experiência intelectual de Tarabukin é a análise de conjuntura, especialmente se desejamos atualizar tal experiência. Essa é a forma de evitar os atalhos da “arte proletária” e balançar a arte de seu lugar confortável, adaptada à sociedade capitalista e herdeira das melhores tradições burguesas. À diferença de vanguardas e tendências estéticas, não se trata de uma análise de conjuntura das formas artísticas, com propostas sobre novas formas artísticas. É uma análise de conjuntura social e política, com propostas de intervenção artística e militante. Independente de como seja feita a análise, a atividade do artista que reivindica o produtivismo não pode se limitar à criação e intervenção própria – assim como durante a “tragédia do período de transição” de Tarabukin, no período atual também é necessário que a tarefa artística seja a “propaganda” a fim de conquistar mais artistas, que os artistas em geral atuem mais diretamente nos processos sociais, políticos e econômicos da classe trabalhadora (precarizados, operários, desempregados, usuários de transportes, estatais, imigrantes, minorias, etc). A militância produz arte engajada, mas existe um salto qualitativo quando se tratam de artistas com formação técnica avançada produzindo arte engajada, um salto tanto na inovação das relações entre formas e conteúdos críticos, quanto para dinamizar a criação de um movimento artístico provido das melhores ferramentas técnicas, ampliando de forma incalculável a potencialidade da relação entre artistas e sociedade. “Acaso não sabemos que o artista orador, o artista publicista, encontra com muito maior rapidez o caminho do coração do que o homem sem força artística?” [3]
Quanto à crítica, a herança da arte burguesa é a contemplação e o comentário acerca das variações sobre tema. Também por meio de sua ascendência dos salões liberais de jornais burgueses e universidades, a crítica especialista atual se enfoca nos fenômenos de consumo e em parte no mundo acadêmico, primeiramente com a desculpa do “gosto popular” (postura que não poucas vezes vai de mãos dadas com uma ideologia populista) e o segundo a partir dos círculos endogâmicos da intelligentzia nacional, cada vez mais submissa às demandas dos mecenatos capitalistas sobre os quais comentaremos um pouco na última parte. Mas a essência da crítica liberal é justamente ignorar o aspecto histórico da técnica artística inserida na sociedade de classes. Para tal crítica, a arte é alienada de seu processo produtivo e se apresenta como um produto independente, fetichizado, o quadro finalizado acima do cavalete, numa parede de sala de jantar ou de museu. Em sentido oposto, a análise da função social de cada arte e de cada artista aponta para a construção de uma cultura socialista que não ignora as relações sociais detrás da arte de consumo, que avança na relação dialética entre forma e conteúdo, contemporaneamente estancados em suas modalidades mais reificadas, como são o hiper-realismo e o conceitualismo hoje em voga.
Para terminar este comentário sobre a questão da “arte proletária” vale a pena chamar a atenção para as modalidades identitárias do consumo que dinamizam o capitalismo contemporâneo. A incorporação de novas camadas populacionais dentro do proletariado mundial abre diversos novos mercados, das marcas de cerveja ou refrigerante de menor qualidade e preço às cervejas artesanais e as “águas saborizadas”, como também a música e o entretenimento específicos para certos setores sociais com menor ou maior poder de aquisição. Considerando que um carro desenhado para mulheres com renda mensal entre US$1000-5000 e entre 25-35 anos dificilmente é criado por técnicos que se encaixem neste mesmo perfil, por sua vez, a “arte proletária” na época do consumo de massas representa um grande avanço no departamento de criação de produtos da indústria cultural, dado que os produtores culturais não têm que investir em pesquisa de marketing e de tendências, os artistas são eles mesmos a tendência encarnada do setor social ao qual pertence. O artista proletário concebido desta forma é a justificação de si mesmo, só pode resultar em arte reacionária. A internet e a massificação da tecnologia permitiu uma explosão de produções culturais que reproduzem o modelo artístico do consumo, em que cada consumidor pode ser um produtor que alimenta a oferta. A natureza empreendedora dos atuais “artistas proletários” apenas revela a hegemonia dos modelos capitalistas e burgueses de se produzir arte, não é em si o problema. Arriscamos aqui uma direção de crítica propositiva, que provavelmente fará sentido apenas para os que querem pensar a arte como um movimento social e político, não como um adorno ou investimento: a cultura consumista da arte massificada deixa completamente de lado a formação de um público, de uma audiência – são simples consumidores, gozam não da coisa histórica, mas de seu fetiche. Queremos ressaltar a função da arte enquanto objeto de diálogo entre produtor e público, diálogo e não monólogo ou Sistema de Atenção ao Cliente. Na medida em que a arte é completamente desvinculada de uma funcionalidade social, ela pode passar a ser qualquer coisa, tudo e nada. Talvez nisto resida o impulso ao aplauso acrítico, o valor dado ao artista mais que à arte, a diversão compulsiva de se consumir produtos semi-artesanais desconhecidos: não são apenas mercadorias de luxo, arte que benéfica porque arte, afirmação de identidade. Um público é submisso tanto mais aceita o produto sem questioná-lo em sua própria forma e existência, tanto mais é incapaz de tomar para si a tarefa artística e dar-lhe um sentido consciente e ativo. Na sociedade do consumo de massas, a arte que queira ser viva deve tomar para si a tarefa de formar seu público na crítica artística, pois a arte como expressão viva do espírito só é possível lá onde seu público conheça (ou queira conhecer) o papel da arte, seu objeto, sua finalidade. Defender certas expressões artísticas como um “modo de vida” de setores populares foi no passado algo conservador; no mundo atual, a defesa da “arte proletária” como um fim em si mesma beira o elogio à miséria e ao imobilismo, transvestido de ostentação e afirmatividade.
As obras que ilustram o artigo são de El Lissitzky
Referências:
Lunatcharsky (1975) As Artes Plásticas e a Política na U.R.S.S.; Lisboa, Editorial Estampa
Mounin, Georges (1964) Poesía y Sociedad. Buenos Aires, Editorial Nova
Notas:
[1] ver “A revolução e a arte” em Lunatcharsky (1975), onde o Comissário do Povo para a Educação promove uma polêmica com os artistas de esquerda, entre eles os produtivistas. Ainda assim, Lunatcharsky foi um dos poucos integrantes do Estado bolchevique a abrir as portas e reconhecer o espaço aos formalistas.
[2] ver “O poder soviético e os monumentos do passado”, em Lunatcharsky (1975)
[3] “A revolução e a arte”, p. 79, em Lunatcharsky (1975)