A ingenuidade política da geração mais jovem envolvida no movimento não foi, por si, uma fraqueza. Ela impulsionou a juventude a testar o Estado e a medir a hipocrisia do governo. Por Nicole Thé e G. Soriano
Este texto foi escrito, em várias partes, a pedido de camaradas de fora da França, e inclui elementos de informação e reflexão que foram-lhe sendo gradualmente adicionados. Isto explica suas repetições, redundâncias e contradições. Assim que pudermos, tentaremos escrever outro artigo para desenhar um balanço mais detalhado deste movimento.
É preciso, em primeiro lugar, enfatizar a importância da ocupação de uma grande praça central de Paris, dedicada a reflexões e intercâmbios políticos. Não porque Paris ressente-se da falta de espaços independentes de reunião e discussão[1]. O fato de que qualquer um podia chegar e participar na assembleia geral ou nas comissões transformou a praça numa verdadeira ágora: a liberdade para organizar qualquer debate (mesmo se o fato de registrar-se numa comissão facultasse a seu tema ser anunciado oficialmente e beneficiar-se do sistema de som), tudo contribuiu para fazer de Nuit Debout um lugar político, no sentido pleno da expressão.
E esta iniciativa foi ao encontro de uma necessidade real. Numa sociedade altamente atomizada, numa cidade cada vez mais colonizada pelo turismo, pelas indústrias do espetáculo e dos “festivais”[2], num mundo onde a expressão pública é confiscada pela mídia ubíqua, a necessidade de escutar e de ser escutado, mas também de compartilhar e refletir em conjunto, é importante. Esta necessidade se revelou pelo inesperado sucesso do Nuit Debout, e foi confirmada pela excepcionalmente longa dinâmica que amadureceu e estruturou-se a si própria, desmentindo todos prognósticos de que desapareceria rapidamente.
A iniciativa se espalhou rapidamente pela internet (site do Nuit Debout, Radio Debout, Télé Debout) e teve uma expansão geográfica espontânea: apareceram Nuit Debouts em muitas outras cidades (com algumas ramificações no exterior), e também em alguns distritos e subúrbios de Paris, onde a proximidade existente permitiu articular a mobilização com questões mais locais, numa dimensão amigável.
A mídia e os céticos foram rápidos em focar na composição social limitada dos simpatizantes do Nuit Debout: eles eram apresentados como parisienses jovens e brancos da classe média precarizada – afirmação contestada por um estudo recente[3]. É verdade que pouca gente do subúrbio esteve na praça. Mesmo assim, estas reuniões e debates diários permitiram aos participantes mais jovens experimentar uma primeira socialização política – um papel que as lutas universitárias e secundaristas deixaram de desempenhar nos últimos tempos, porque se enfraqueceram ou deixaram de existir.
A ingenuidade política da geração mais jovem envolvida no movimento não foi, por si, uma fraqueza, pouco importando o que os grupos da ultra-esquerda ou pós-autonomistas digam a respeito. Ela impulsionou a juventude a testar o Estado e a medir a hipocrisia do governo. Este fator de maturação política não deve ser subestimado. Quem tenha se focado nas manobras políticas e nas manipulações de bastidores não entendeu que, para funcionar, o movimento deve ter, antes de tudo, perdido sua capacidade propulsiva e aceitado a hegemonia da cultura política dominante.
Nuit Debout também desempenhou um papel significativo na luta. Graças às suas comissões de “greve geral” e “convergência de lutas”, que debateram diariamente as formas de ação e revezaram várias iniciativas; graças, também, aos debates na “assembleia geral” focados, nas noites que se seguiam aos dias de mobilização, nas questões concernentes às lutas; mas sobretudo graças ao fato de que Nuit Debout ofereceu uma forma de continuidade ao movimento como um todo, uma ligação entre diferentes manifestações que pontuaram o calendário sindical – algo que o movimento contra a reforma previdenciária de 2010 foi incapaz de produzir. Ainda que, no final de maio e durante todo o mês de junho, certa exaustão se tornasse mais e mais visível – e o mau tempo não tenha ajudado muito.
Apesar de todas as suas limitações, este movimento provou ser um grande aborrecimento para o governo, que ainda não tinha encontrado algum meio para se livrar dele sem muitos danos colaterais. O tratamento que lhe foi dado pela grande mídia, sistematicamente hostil e desdenhoso, mostrou também por que aqueles debates e falas selvagens e incontroláveis irritaram as autoridades e aqueles responsáveis por produzir e propagar a linha do governo. Eles estavam claramente atemorizados pela existência de um lugar onde ideias e ações políticas eram discutidas sem qualquer controle e fora de qualquer enquadramento. Especialmente quando os “profissionais” da ação política, que poderiam, como na Espanha, ter guiado o movimento rumo a uma simples renovação de quadros na estrutura existente, (ainda?) não haviam encontrado ali um lugar[4].
Notas
[1] Mesmo La Parole Errante (“A Palavra Errante”), em Montreuil (um subúrbio no oeste de Paris), está ameaçado, e não sabemos se seu comitê de defesa conseguirá impedir seu fechamento, como ocorreu com outros lugares ativistas obrigados a encerrar suas atividades.
[2] O Partido Socialista promoveu, entre outras coisas, uma tradição de organizar “festivais” em torno de quase qualquer coisa sob a batuta “amigável” do Estado: festivais musicais, festivais de vizinhança etc.
[3] https://gazettedebout.org/2016/05/17/qui-sont-les-nuitdeboutistes-enfin-une-etude-serieuse/#more-7821
[4] Figuras como Ruffin e [Frederic] Lordon [economista e sociólogo, colunista do Le Monde Diplomatique e diretor de pesquisa no CNRS – Nota do PP], que contribuíram com o início do movimento, e desempenharam um papel menor com o passar do tempo. Na verdade, eles ainda são influenciados, fundamentalmente, pela ideia leninista de que mobilizações deveriam ser concebidas e organizadas por um pequeno comitê de iluminados. Sua posição não estava afinada com a sensibilidade e vontade políticas dos atores de Nuit Debout, convencidos da validade e força de seu movimento.
Recebido por e-mail e traduzido para o português pelo Passa Palavra.
Este texto está dividido em quatro partes:
A atmosfera social na França esquenta (ver aqui)
Nuit Debout (“noite de pé”) em Paris (ver aqui)
O peso político do Nuit Debout
A luta contra a nova lei trabalhista (ver aqui)