A tempestade se acirrava e as folhas das árvores e a maconha eram as alternativas para boicotar a indústria. Por Rafael M. Zanatto
Quando um cego grita pra outro cego, os dois
tropeçam na mesma pedra.
Vincent Van Gogh
De volta, com os dois pés firmes no chão, na terra que um dia foi dos papagaios. Trago mais que um “trago” de lembranças de Amsterdam. Mas não esqueci por lá a sistemática, que por mais que queira dissolver, ela corrói por dentro todas as possibilidades de criação. Vai e volta desgraçado, que não consegue falar das bicicletas que rasgam a cidade pra lá e pra cá. Mas os carros são pragas que não morrem fácil. Alguns persistentes motoristas se arriscam a atropelar uma multidão de ciclistas. As regras já estão incorporadas e qualquer deslize, qualquer desatenção, como atravessar desavisado pela ciclovia, uma voz que rasga o vento velozmente de pronto adverte-lhe: Veja por onde anda! O sistema é planejado, a cidade, plana, os canais, cheios de água e barcos, casas que flutuam. Flores de todas as espécies, multicoloridas, pés de maconha em escolas de cultivo. Turistas, quantos turistas para conhecer a cidade “mais livre do mundo”, onde a prostituição é legalizada e a maconha, se pode fumar em cafés.
Estarei eu falando do falanstério de Fourier ou da Utopia de Morus, que adormece ao som de Blues e acorda ao som de Jazz? Relíquia da contracultura, Amsterdam é mais que cidade de malucos, pervertidos, drogados de todas as espécies, turistas da droga que se reúnem como os bucaneiros na ilha de Tortuga. É uma cidade palco de lutas acirradas entre a população e as forças reais. Juventude, vontade, anos 60. Um amontoado de provocadores, vanguarda estética, happenings no menino de Lieverdje, escultura de Carel Kneuman na praça da Spui. Bela oferta da indústria do tabaco. A opulência holandesa insuflava o anticonformismo e a tradição anarquista florescia na mente de um grupo que se denominou “Provos”, mas não se conteve na luminosidade insuficiente da vanguarda. A desobediência civil alastrou-se e as lutas culturais foram violentamente reprimidas a golpes de sabres. Membros decepados adubariam o solo holandês. A juventude incendiária não se esquivaria de intervir no espetáculo e a imagem foi-lhes o instrumento.
Seria uma desilusão com a indústria e com o consumo? Pergunta retórica, a passividade saía de moda e logo as manifestações estéticas contra a indústria e propaganda empesteavam a cidade maçã. Contra a indústria do cigarro, levantou-se Robert Jasper Grootveld, fundador de um templo que tinha como ritual a execução de Happenings contra o vício disseminado e inconseqüente da nicotina. Do templo “Dependência Consciente da Nicotina”, os transeuntes podiam ouvir os fiéis entoando mantras como “cof cof cof”, e os K’s negros espalhavam-se pelos cartazes da indústria do tabaco em Amsterdam. A atividade de Grootveld rendeu-lhe duas prisões, mas os Kanker não saíam com uma pancada de chuva.
A tempestade se acirrava e as folhas das árvores e a maconha eram as alternativas para boicotar a indústria. Pobres empresários do tabaco. O que teriam feito eles para ser alvo de tanto estardalhaço. Eram eles o símbolo da manutenção do status quo, a empresa onde poderiam trabalhar pelo resto de seus dias em uma máquina desgraçada que não cessava em explorar as forças vitais de seus trabalhadores. A revolução cultural estava em curso e na estátua do pobre menino de rua, tornou-se o epicentro de uma turba de baderneiros pervertidos, e não se enganem anarquistas profundamente influenciados pelo dadaísmo e afinados com as tendências artísticas de seu tempo. O dadaísmo de Grootveld tomava o menino de Lieverdje, palco de danças, fogueiras, teatros, jogos e discursos dos mais absurdos, em contestação à estética discursiva dos políticos profissionais.
O vazio de ter tudo menos a liberdade de fazer tudo proporcionou uma mistura química fabulosa para a movimentação explosiva. Os sabres só ampliavam a insatisfação da juventude, que de ter tudo, nada mais tinha a perder. Os profetas faziam fila e logo uma comunidade de idéias fazia da repressão às suas atividades o motor propulsor para seu desenvolvimento. Duijin e Stolk lançam às ruas a revista “Provos”, distribuindo-as clandestinamente no meio dos jornais conservadores. A revista defendia uma conduta anti-social, o nomadismo, a arte, a ecologia e o fim da monarquia; resposta violenta ao consumismo levado às últimas conseqüências. Sua plataforma política concentrava-se em substituir a “caixa peidorenta de ferro” pelas bicicletas brancas, espalhadas pela cidade para uso público e gratuito, doadas pelos freqüentadores da Spui. A emancipação sexual, a legalização da maconha, o fim da propriedade privada e de qualquer forma de proibição estava entre as linhas gerais dos planos da juventude, que se aglomerava entorno dos Provos.
O jornal conservador Telegraph em 1991 lamenta que “a sociedade holandesa nunca se recuperou das loucuras hippies, do “Flower Power” e das viagens para fora da realidade provocadas pela droga. Enquanto todas as sociedades ocidentais foram trazidas de volta à Terra, a sociedade holandesa ficou nas nuvens”. Discordar do Telegraph não basta e o argumento ideológico demonstra-nos ser insuficiente para analisar. Cabe um empirismo naturalista, o olhar do estrangeiro que provém de um país conservador que impede marchas, fecha universidades, destina a verba pública a aprisionar grande parte de seus cidadãos. Os críticos do Telegraph se esqueceram de mencionar que Amsterdam é um grande playground do consumo de drogas. Tem pra todos os gostos, sabores, haxixes em pacotes ou na balança. Coffee shops para maconheiros locais, para fumadores do mundo, para desavisados que nunca puxaram um fumo e que chegam sem saber fazer um cigarrinho. O Coffee Shop Central é um café que serve para velhos marujos e estivadores. A qualidade do produto é melhor e a forma de venda é mais simples. Um grande brutamonte de cabelos longos lhe apresenta seus produtos de cores das mais amarronzadas às mais negras, requerendo o passaporte. Já em outros, como o “Bulldog”, mais para marinheiros de primeira viagem, há também baseados bolados em cartelas, algo que achei extremamente tragicômico, mas acessível a um grande número de turistas que superam suas convenções sociais para saborear a erva proibida. Ali, o paraíso não lhes será tomado. Não se peca onde a legalidade da cannabis impera. As lojas de souvenires estão por todos os lados e a temática da cultura cannábica está totalmente mercantilizada. Lojas de sementes especializadas são os melhores lugares para comprar as premiadas no “Cannabis Cup”. Até a idéia das bicicletas provocadoras foram apropriadas pelo mercado e muitas empresas as locam para os turistas. A revolução cultural parece ter sido totalmente apropriada pela cultura do consumo e Amsterdam lhe é monumento.
A vitória parcial das lutas culturais e ou ecológicas se faz a partir de sua imediata inserção na lógica da sociedade do consumo, e este parece ser os objetivos das lutas de nosso tempo. Esse tempo sem ideologia. O pluralismo transforma-se na tábua de salvação do pensamento político, uma ideologia de uma era sem ideologia. Isso não quer dizer que as noções de diversidade não são falsas nem contestáveis. O mundo natural, o físico e o cultural são caracterizados pela diversidade, e nos regozijamos mais com as diferenças do que com a uniformidade, mas essas idéias não podem ser encaradas com dogmatismo, e a abrangência do termo fundamentado pela inclusão, é uma política que parece substituir a política. Se tudo é político, se tudo é cultural, tudo o é e nada existe ao mesmo tempo e esta combinação me parece o campo fértil para florescer a conformidade. Não devemos nos esquivar do fato de que a ascensão das lutas culturais está associada ao declínio da utopia, um indicador do esgotamento do pensamento político interessado nas transformações estruturais que eliminem a exploração do homem pelo homem. Maldito refluxo histórico. A partir do momento em que a cultura é definida como um conjunto de ferramentas, códigos, rituais e comportamentos, cada grupo ou subgrupo, e não apenas cada povo, terá sua cultura. Múltiplas culturas no interior da sociedade do consumo, a repousar sobre as mesmas infra-estruturas. O segredo da diversidade cultural parece ser sua uniformidade econômica e política.
As lutas culturais, em específico, as antiproibicionistas ou pela legalização da maconha, não se interessam pela revolução cultural, e sim batalham por um espaço para respirar fora da ilegalidade. A cultura cannábica está a todo o vapor, e produz lucros fabulosos nos países em que está legalizada. O comércio é dos mais lucrativos, mas a opção proibicionista lucra com a ilegalidade, e como efeito colateral: violência generalizada. Há mais de meio século, a guerra contra as drogas nos moldes dessa civilização padronizada e globalizada é das que mais cometem o assassínio e o encarceramento. Quem está a ganhar com essa máquina diabólica? É melhor saltarmos de cabeça nos anos 20, história dos nossos grandes amigos estadunidenses. É necessário dizer que, tanto lá quanto cá, a proibição assenta-se em uma ideologia profundamente moralista e sem escrúpulos, interessada na contenção social de grupos minoritários como os negros, indígenas, e nos states, também dos mexicanos. Mas a depressão que se seguiu ao crack da Bolsa de New York e com o New Deal, as minorias começaram a ascender socialmente, ocupando espaços na sociedade reservados aos brancos, e naturalmente, trazem consigo nesta escalada o hábito de consumir maconha, e seu uso começa a se disseminar entre os brancos. Além da questão racial ou moral, devemos compreender que a proibição não se fez apenas no campo ideológico, mas também com a atividade de uma burocracia montada para atender as demandas da política de repressão ao consumo de álcool. A lei seca dos anos 20 criou dois aparelhos mastodônticos: a máquina burocrática federal, encarregada de coibir o tráfico de destilados alcoólicos e o crime organizado, que auferia grandes lucros com o mercado negro de bebidas.
Nos anos 30, ambos os grupos se aperceberam que a liberação do consumo de álcool era inevitável e passaram a trabalhar na manutenção de seus lucros e privilégios. As campanhas da Liga da Decência serviram de plataforma para J. Edgar Hoover ascender à chefia do FBI, a partir de seus sucessos estratégicos contra o comércio de bebidas. Esse superburocrata amealhava poder a partir da máquina de estado e afirmava possuir um arquivo secreto com todos os podres dos políticos estadunidenses. Anslinger, seu antigo adversário, na luta pela sobrevivência pessoal após o fim da lei seca, é nomeado para o cargo de comissário do Bureau de Narcóticos e se apercebe do enorme potencial de suas novas funções, sendo capaz de gerar espaços maiores que a proibição do álcool.
A orquestração proibicionista, composta pelo crime organizado e brancos racistas, encontrou em Anslinger seu maestro. Articula um lobby conservador na assembléia dos deputados e garante, graças às suas influências e pressões, amplos espaços na imprensa. Ele cria o problema, atemoriza com as conseqüências eventuais e goza as glórias de combatê-lo. Com o Marihuana Tax Stamp Act, a maconha é proibida em todo o território americano, e temos como conseqüências imediatas a reativação de departamentos fechados com o fim da lei seca a partir da liberação de pesados recursos e Anslinger tem novo cacife para sustentar seu ego na luta contra Hoover. Mas as coisas não param por aí e recrudescem as manifestações racistas contra latinos e negros, que estariam a envenenar a laboriosa juventude americana. E, por fim, o crime organizado logra sustentar sua grande estrutura, tão duramente montada nos anos de repressão aos alcoólicos, através da expansão e aumento dos lucros, como a colocação de opiáceos no mercado. Os preços da maconha vão aos céus, e a maconha torna-se a porta de acesso ao tráfico. Na ONU, a erva é inserida na Carta de Princípios como inimiga a ser combatida e debelada, e os traíras da vez foram os EUA, Venezuela, Brasil e Gana.
Pra acabar com esse texto de uma vez, cabe dizer que o uso da cannabis está completamente dessacralizado, sem rituais preestabelecidos [salvo muitas exceções], mas passível de ser adquirido nas esquinas, para o consumo hedonista, como recurso de lazer ou recurso estimulador da criatividade, ou indiretamente, num gesto de recusa aos padrões estabelecidos. Também não se encontra maciçamente incorporado nas práticas médicas, mas as pesquisas avançam e é ela a erva largamente recomendada para reduzir as náuseas e aumentar o apetite, geradas invariavelmente pelos tratamentos de câncer, e aos poucos os artistas reincorporam-na em seu processo de criação. Mas afinal, o problema reside em sua maior parte na proibição, que mantém a alta lucratividade do sistema de segurança, enquanto a saúde pública fica às moscas, ou reduzida a conglomerados de clínicas privadas para o tratamento de dependentes. Os religiosos que me perdoem, porque aqui não vou falar do uso religioso da maconha, não por ignorar a questão, mas para me concentrar exclusivamente no uso da diamba e das outras drogas na sociedade do consumo. Nessa modalidade social, desprovida de rituais ou ordenamentos de uma coletividade específica como o clube de diambistas do Maranhão, aparece como problema o vício. Então vamos ignorar cinco mil anos de história e nos concentrar nessa história do tempo relativamente presente.
Ninguém mais soube sobre drogas no ocidente do que William S. Burroughs, pelo menos é o que se diz nos guetos sobre o mais ilustre viciado de nossa cultura. O maior dos junkies, viciado em heroína e em tudo o que se pudesse provocar qualquer sensação distinta da cruel realidade. Freqüentador das casas de ópio, antes de Nick Tosches pudesse decretar seu fim. Mas não é porque um turista americano não as encontrou que elas deixaram de existir. Burroughs no Marrocos buscava nos opiáceos o tratamento de seu vício em heroína. Em 1953, Burroughs fizera a mesma busca na América do Sul, ali pro lado do Equador. E disponibiliza aos leitores as representações sobre o que sentia durante o período de desintoxicação. “Paranóia do início da abstinência… Tudo parece azul… Carne morta, pastosa, descorada” e nos pesadelos da abstinência podia ver “um café forrado de espelhos. Vazio… À espera de algo… surge um homem na porta lateral…um árabe baixo e franzino” e por aí vai a alucinação desse pesquisador, em busca da cura do vício em heroína. Durante sua busca, vê no Yage a possibilidade de abandonar as três picadas diárias. O colecionador levava consigo uma mala de substâncias das mais variadas, para controlar todos os impulsos possíveis de seu corpo. Em busca do líquido que o desintoxicaria, buscou os xamãs, que, para ele, prepararam a tão buscada poção. Mas, ali, naquele culto ritualístico, Burroughs sofre com as náuseas provocadas pelo chá, efeito que hoje se sabe esperado quando a substância entra em contato com um organismo intoxicado. No caso deste escritor de quem examinamos a trajetória, nada mais certeiro do que o chá o derrubar no chão e o fazer vomitar, devendo ele aceitar a ação daquela substância para completar o rito.
Porém, Burroughs, em sua obsessão por estar no comando de seu corpo como uma máquina, ingere em meio à crise substâncias industrializadas, cujo efeito pode controlar seus espasmos e náuseas. Neste episódio narrado em uma carta para Allen Ginsberg, ficam evidentes os limites entre rito e uso ocidental. Burroughs constitui em si uma metáfora da separação entre ritual e entretenimento. Em contrapartida, florescem estruturas de sociabilidade, transpassadas por fluxos e impulsos aleatoriamente humanos. O uso ocidental ou na sociedade do consumo das drogas é hoje uma cultura, não apenas da cannabis, mas todas as outras, inclusive das legalizadas como o álcool e o cigarro. São lutas culturais que têm por objetivo a legalidade, suprimindo as políticas proibicionistas em benefício da saúde, da qualidade de vida, educação, da criação legal de um mercado, que aponta talvez para uma atenuação da violência gerada pela guerra às drogas.
A luta cultural dos anos 60, contra o “American Way of Life”, valeu-se das drogas como instrumento político, como possibilidade de emancipação pessoal e coletiva, direitos civis, liberdade. Mas essa onda quebrou, deu tudo de si, e retrocedeu, restando apenas os resquícios de seu impacto na costa. O que Hunter S. Thompson metaforiza acima é a recuperação das lutas sociais pela sociedade do consumo. As lutas hoje não lutam pela transformação da sociedade embasada em um sonho hippie, de amor. Já se foi a época das revoluções, mas elas não parecem cessar de reflorescer, dando profundos impulsos pra frente. O que cabe é saber até que ponto a infra-estrutura está pronta para recuperar os impactos da luta social. Não podemos vislumbrar um futuro sem analisar esse movimento, e as lutas da cultura cannábica ou das drogas em geral não pretendem criar um modelo infra-estrutural, mas transformar a sociedade em noções embasadas em um número bastante grande de pesquisas atualizadas, para reduzir ou abolir a política de “guerra às drogas”, transferindo seus onerosos custos para o investimento em saúde pública. Tal noção construiu-se historicamente diante do completo fracasso da política de Anslinger.
A sociedade brasileira, especialmente as autoridades da PUC, parecem ignorar que eles não podem segurar um processo histórico que cresce a todo o vapor, e o impedimento do “I Festival de Cultura Canábica” é mais uma pequenina pedra na luta pela legalização. Mas devemos entender que as lutas a favor da legalização não são recentes, e se estendem desde sua proibição. Um exemplo é o “I Simpósio Carioca de Estudos Sobre a Maconha”, realizado na IFCS – UFRJ em 1983, durante o período da abertura política no Brasil. Existiam também associações para a defesa de usuários outrora presos e agora presos até segunda ordem. Cabe aos movimentos culturais prosseguirem os trabalhos, e às autoridades, mais coerência. Devemos ampliar a estratégia que vem tomando cada vez mais corpo, que é a ebulição de células de debates. O caminho que nos conduz a uma sociedade democrática deve ser o mesmo que liquida a ignorância e a desigualdade de seu seio.
Livros para desfazer a neblina, mas não tanto
Provos: Amsterdan e o Nascimento da Contracultura – Matteo Guarnaccia
Cartas Do Yage – William Burroughs & Allen Ginsberg
Almoço Nu – William Burroughs
O Barato da História – Elizabeth Remini
Diamba Sarabamba – Anthony Henman & Osvaldo Pessoa Jr.
O fim da utopia: Política e cultura na época da apatia – Russel Jacoby
Parabéns Rafael, texto muito bem escrito, com ideias nos pontos necessários e urgentes ao mesmo tempo que traz um chão histórico imprescindível para o entendimento, o debate e a luta que está posta.
Trata-se do melhor texto que li até o momento sobre a questão da cannabis, que venham outras colaborações para que possamos dar sequência ao desentorpecimento da razão, para citar os companheiros e companheiras do Coletivo Desentorpecendo a Razão (coletivodar.org).
Ótimo texto realmente, e extremamente agradável de se ler; parabéns ao autor.
Aproveitando o espaço de debate que o passapalavra promove, eu gostaria de exteriorizar também a minha opinião a respeito do tema, que a meu ver tem sido pouco debatido de forma satisfatória em nosso país.
É fato que, no que diz respeito ao comércio de substâncias de aceitação duvidosa, sempre houve um dilema para o Estado: proibir e ter que suportar a venda ilegal e o enriquecimento de traficantes e favorecedores ou legalizar e fazer com que a indústria lícita absorva a demanda e aí suportar os excessos socialmente nocivos que a legalização de substâncias desse tipo pode causar. Isso em termos puramente pragmáticos, sem se falar nas questões morais que também são envolvidas.
Enquanto prefiro não abrir o debate para o âmbito moral, exporei minha opinião em termos políticos.
O Estado, com o auxílio do livre-mercado pode absorver qualquer coisa; têm potencial para legalizar e regulamentar o que bem quiser, nesse sentido harmonizando as relações aí envolvidas, por encobri-las com o manto da legalidade. Mas o que se dá com uma mão se tira com a outra; se se regulariza uma situação indesejada, certos efeitos nocivos vêm inevitavelmente em conseqüência; nada em política é de graça. A questão então é: quando é adequado que assim se proceda, assumindo os efeitos potencialmente nocivos da nossa resolução?
Sobre a legalização da maconha, o principal argumento é: “se legalizarmos, acabamos com o tráfico”. Não faz sentido, afinal existem dezenas de tipos de entorpecentes a serem comercializados que não a maconha e milhares de indivíduos dispostos a comprá-los. Pode-se então objetar: “então legalizemos tudo, acabamos com o tráfico de vez”. A meu ver, esse argumento é do tipo: “suprimamos o direito a propriedade e aí acabaremos com o problema dos roubos” ou “extirpemos o direito a integridade física e acabaremos com o problema da violência doméstica”, que obviamente não fazem sentido; facilitar o trabalho via uma legalização generalizada não é uma opção sequer discutível.
Alguns dirão que o argumento “se legalizarmos, acabamos com o tráfico”, está mais próximo de um argumento do tipo: “se regularizarmos o casamento, acabaremos com os problemas conjugais” do que do argumento “se legalizarmos o homicídio, acabaremos com os problemas de assassinatos”, visto que não se estaria regulamentando algo socialmente nocivo, mas sim uma situação importunamente marginalizada. Ora, quanto a isso, peço unicamente que imaginem uma sociedade composta só por viciados e a comparem com uma sociedade composta só por homens casados e vejamos a diferença em termos de sociabilidade entre as duas; em qual você ia querer viver? Pelo mesmo motivo que não quereríamos viver numa sociedade formada somente por homicidas, creio que você tenha escolhido a sociedade dos casados. Ainda que alguns dos casados sejam viciados, não é o caso de todos o serem; assim como admitimos viver numa sociedade com alguns homicidas, mas não admitiríamos viver numa sociedade onde todos o fossem.
Não estou comparando o viciado ao homicida em termos morais; como disse no começo do texto, trata-se de uma questão puramente pragmática.
Acho que outro grande problema, agora em termos morais, é a admissão de que o uso de drogas é algo normal e não tem porque acharmos que é ruim usar drogas. Ora, não obstante todo o exposto, ainda creio ser necessário justificar moralmente a minha opção pela ilegalidade das drogas.
O uso das drogas se justifica pela fuga à realidade que ela proporciona, aliada a sensação de marginalidade e subversão que atrai muitos jovens. Mas essencialmente, a droga identifica-se com fuga da realidade, e é nesses termos que tratarei aqui.
Fugir da realidade é desde já uma covardia, mas talvez seja uma covardia aceitável. Nenhum de nós é pleno e rígido a ponto de admitir a realidade sempre em sua totalidade sem nunca se prestar a esquecer dos problemas ou coisa do tipo. É bom que vez ou outra nos afastemos do que nos preocupa; é motivados por isso que vez ou outra saímos com os amigos, fazemos uma caminhada, jantamos fora, ou coisas do tipo ao gosto de cada um. Mas as drogas caracterizam-se por sua essência alucinógena; sair plenamente da realidade é diferente de esquecer os problemas, é esquecer de esquecer os problemas, é uma meta alucinação, uma meta fuga, uma meta covardia que talvez não se justifique diante de nossa humanidade. È comum se dizer ao amigo usuário de drogas ou mesmo ao alcoólatra que ele não precisa da droga para viver, e de fato nenhum de nós precisa, temos elementos e subsídios necessários para nos desvencilhar dos problemas vez ou outra fora do campo da alucinação.
Pode-se objetar aqui que ninguém tem direito de se opor a covardia do próximo, exigindo intervenção do Estado. Ora, cada um teria o direito de ser o que quiser. Também não é bem assim; talvez cada um de fato tenha o direito de ser o que quiser, contudo, desde que não prejudique terceiros ou a ordem pública. Se eu quero fazer parte de uma religião que promove o sacrifício de crianças, o estado legitimamente pode proibir-me de exercer minha liberdade religiosa. É um princípio básico do liberalismo político. Claro que não faz o mínimo sentido a meu ver criminalizar e submeter a sanções penais severas o usuário de entorpecentes – o exemplo do sacrifício de crianças também foi só para efeito comparativo – contudo, a tolerância para com o usuário, preso financeira e espiritualmente á droga, não deve se estender á toda a sociedade pela via da legalização de tal prática.
As razões pragmáticas expostas anteriormente, por si só, já justificariam a característica de indesejáveis das drogas, mas fiz questão de somar a elas objeções morais que poderiam ser somadas a muitas outra, que não expus para não me alongar mais ainda.
Enfim, fica a minha contribuição a esse debate, volto outro dia para conferir;
Parabéns novamente ao passapalavra e ao autor do texto por trazerem de forma séria este tema tão importante e que remete a questões tão essencias, politicas e juridicas, da estrutura de nosso país.
Parabéns pelo texto! Inspirador, crítico, histórico… assim como devem ser revoluções culturais.
Um abraço e continue com a boa palavra, para que assim ampliemos as consciências e as boas ações!
Carlos, acho que o que você expõe no seu texto é um ponto de vista que não é de forma alguma consensual e não podemos perder isso durante qualquer análise.
Uma coisa é o que nós assumimos como verdade pessoal, baseado em nossa própria experiência subjetiva e reforçada por nosso contexto social, familiar, cultural, etc.. outra coisa é uma Verdade objetiva, que é consensual, independente de interpretações subjetivas, como por exemplo ‘drogas alteram a percepção’.
Quando você argumenta que:
“Acho que outro grande problema, agora em termos morais, é a admissão de que o uso de drogas é algo normal e não tem porque acharmos que é ruim usar drogas. Ora, não obstante todo o exposto, ainda creio ser necessário justificar moralmente a minha opção pela ilegalidade das drogas.
O uso das drogas se justifica pela fuga à realidade que ela proporciona, aliada a sensação de marginalidade e subversão que atrai muitos jovens. Mas essencialmente, a droga identifica-se com fuga da realidade, e é nesses termos que tratarei aqui.”
Talvez pra você o uso de drogas não seja normal (assumindo que você não tome remédios de qualquer espécie, não tome café, não coma chocolate, não tome suco de maracujá, não tome nada alcóolico e nem seja fumante de tabaco, dentre outros), mas pro restante das pessoas do mundo é sim uma coisa normal.
Mas assumindo que você não foi cuidadoso com as palavras, usando a palavra ‘droga’ pra denotar ‘substancias psicoativas arbitráriamente proibidas por leis em um determinado momento histórico pelo poder dominante’, ok.
E partindo desse ponto, mesmo assim creio que existem diversos motivos ao uso dessas substancias psicoativas, e a “fuga da realidade” é apenas uma delas, assim como passar horas na frente da TV, do computador, seitas religiosas, dentre outros.. e essa fuga é completamente compreensível visto que a realidade da maioria da humanidade não é de fato satisfatória, especialmente em tempos de exploração e consumismo como o que vivemos atualmente, passando 10 horas de nossas vidas dentro de uma empresa como escravos em troca de biscoitinhos no final do mês.
Bem, saí um pouco do tema, mas acho que é por aí. Não podemos deixar que nossos valores balizem os valores alheios.. e se você me perguntasse, eu preferiria sim conviver em uma sociedade onde o consumo de maconha fosse uma coisa tranquila, onde a liberdade fosse um valor maior, onde a família fosse uma opção, e não houvesse tanto consumo de álcool, tanto vício em crack, tanta TV, tanta banalidade, tanta violência, e por aí vai..
Abraço!
Caro Carlos, outro ponto problemático de sua argumentação é quando afirma:”Fugir da realidade é desde já uma covardia, mas talvez seja uma covardia aceitável. Nenhum de nós é pleno e rígido a ponto de admitir a realidade sempre em sua totalidade sem nunca se prestar a esquecer dos problemas ou coisa do tipo.”
Não concordo de forma alguma que seja uma covardia. Acredito que poderiamos tutelar essa afirmação se nos valesse-mos de um psicologismo do fim do dezenove aplicado aos problemas contemporaneos. Não devemos esquecer que as substancias são também um instrumneto valoroso de trabalho de exercicio intelectual. se a mente se aliena para algumas coisas, se abre para outras. Não acredito quel iberdade pessoal seja covardia, alias, esse termo tão largamente utilizado pelas ortodoxias tanto de direita como de esquerda não corresponde com a análise da realidade. Já visitou uma boca de pó no horario de almoço, nas proximidades da paulista. O movimento dos engravatados que vão e voltam, na busca de energia para aguentar o segundo turno de trabalho e aproveitar o fim da tarde tomando umas cervejas. O que seria Kerouac sem as bezedrinas ingeridas durante 13 dias quando essa substancia permitiu-lhe trabalhar 14 horas diarias em ON the road. Outros exemplos são ricos, como o de Benjamin em suas incursoes pelos suburbios, becos ou cais com suas ferramentas analiticas aguçadas pelo haxixe. Acredito que as substancias se relacionam de acordo com o corpo que as absorve, com a mente que estabelece um funcionamento outro em poder dessa substancia. é comprovado que os estimuantes aumentam a concentração e a produção. NãAssim como a maconha favorece o processo criativo. As substancias não vão enfiar uma biblioteca na cabeça das pessoas e nem mesmo fazer escorre o que la dentro existe. cada mente se relaciona de uma forma com a trip. Quem nunca segurou o cérebro na ponta dos dedos, não pode saber do que estou a dizer. a mente nunca cai no vazio, apenas explora outras cercanias. abraços
Antes de continuar a conversa, queria só esclarecer um ponto que acredito ter ficado confuso.
Quando escrevi: “Ora, quanto a isso, peço unicamente que imaginem uma sociedade composta só por viciados e a comparem com uma sociedade composta só por homens casados e vejamos a diferença em termos de sociabilidade entre as duas; em qual você ia querer viver? Pelo mesmo motivo que não quereríamos viver numa sociedade formada somente por homicidas, creio que você tenha escolhido a sociedade dos casados. Ainda que alguns dos casados sejam viciados, não é o caso de todos o serem; assim como admitimos viver numa sociedade com alguns homicidas, mas não admitiríamos viver numa sociedade onde todos o fossem.”, o que busquei ressaltar foi a relação entre droga e ordem pública, para justificar a intervenção do Estado nesse ponto; para isso usei o exemplo extremo do homicídio. É um argumento comum dizer que as drogas são importunamente marginalizadas e que não seria justificada a sua ilegalidade, contudo, se tais substâncias têm o potencial de lesar uma estrutura social são certamente substâncias de legitimidade duvidosa em termos de aceitabilidade jurídica. Assim como o homicídio, que, se legalizado, poderia destruir toda uma ordem social, a droga também tem este potencial; esse é o ponto.
O casamento, por exemplo, é uma instituição que não tem esse poder lesivo à ordem, visto que uma sociedade de casados seria sustentável, diferentemente de uma sociedade de usuários de droga. Para isso basta imaginarmos uma casa – a menor projeção possível de comunidade – onde todos sejam viciados e dependam de suas próprias rendas para sobreviver e comparar com uma casa de casados, nas mesmas condições.
Mostrar a diferença da droga para o casamento é importante para mostrar a diferença entre uma instituição socialmente lesiva e outra socialmente inofensiva; por esse critério, a droga e o homicídio estão num mesmo lado da balança.
Posto isso, quero ressaltar também que não acho que seja possível eu provar que as drogas devem ser ilegais, mas acho que no mínimo é um debate irresolvível, que se decidirá politicamente por critérios bem menos elaborados do que os que norteiam o nosso debate aqui no passapalavra.
Agora, respondendo as objeções;
Sérgio.
Olá.
Primeiramente, talvez eu tenha sido descuidado ao não especificar qual o tipo de drogas a que me referia, mas movimentando-nos dentro da questão da legalização das drogas, creio ter sido suficientemente claro. Ainda que não tenha o sido, agora você foi feliz em esclarecer essa problemática conceitual.
Essa distinção entre verdades objetivas e verdades subjetivas, eu discordo. Não acho que existam verdades objetivas; quando você fala de liberdade, é um conceito indeterminado e também pode ser invocado como verdade e valor subjetivo; tudo pode ser tido como subjetivo, até a própria noção de verdade objetiva, afinal uns podem aceitar e outros não. Creio que existam verdades ou valores subjetivamente compartilhados, o que é diferente de verdades e valores objetivos, afinal são aceitos por um grupo em comum e não como aprioristicos universais.
A droga como fuga da realidade, preste atenção quando eu distingo entre fuga da realidade e metafuga, ou superfuga, se se quiser. Uma coisa é fugir da realidade saindo com os amigos, ou indo jantar fora, outra coisa é fugir da própria condição de consciência, é algo além de uma fuga, algo que eu chamei de metafuga, mas que deve ter um nome apropriado em psicologia, o qual eu desconheço.
Rafael Zanatto.
Entendo o que você quer dizer, a idéia da abertura de um novo campo de consciência, da expansão dos limites, etc.
Quando falei na covardia, basicamente todos os homens seriam covardes nesse sentido, pois todos nos afastamos da realidade vez ou outra; apenas concluí daí que a saída da consciência seria um nível desnecessário de fuga, aliada à questão da dependência que nem sequer tratei aqui. Você objetaria com o argumento dos novos horizontes de consciência, tudo bem, é possível dizer isso, mas acho que a consciência humana já contém limites indescritíveis e inexplorados de modo que a busca por tais incursões em substâncias externas ao corpo e ainda causadoras de dependência seria desnecessário e prejudicial fisiologicamente, além de socialmente nocivo.
Sempre existirão pessoas que usam drogas, e contra isso não há o que se dizer ou argumentar, e você pode continuar a defender que a busca da superação dos limites em substâncias externas é agradável e que não está disposto a se privar disto. Enfim, não se chega a uma conclusão.
Satisfaço-me em concluir que essa questão é no mínimo disputada e que não pode se ter como pacífica a opção pela legalização, diante de tantas complexidades.
Dito isso, só tenho a endossar a atual política legislativa do governo.
Caro Carlos, como este é um debate coletivo que está se tomando forma, vou me ater apenas aos pontos que a mim foram dirigidos. A começar pelo que você define como realidade. Não acredito em uma realidade monólita tal como apresenta em sua argumentação. Isso é bem complexo, porque as noçoes de realidade o são a partir da mente que as cria, recepciona, interage, etc. Se minha realidade é ficar embriagado de maconha, essa então é a realidade que decidi pra minha vida. Ou seja, permanecer nesse estado é uma opção individual. Como afirmei e reafirmo, o que é desnecessario a partir do que você escolheu pra sua vida. Não é de certo modo autoritario impor a todos essa estandartização da consciencia que está a defender? Acredito na liberdade de escolha, e enquadrar o uso de substancias como fuga da realidade é negar a especificidade da realidade estabelecida a partir do uso de drogas. E se isso é desnecessário ou não, porque as pessoas se drogam? Não é interessante que a afirmação de disciplinas como a psicologia, o uso de drogas na sociedade do consumo, as depressões, não estejam a aumentar historicamente, atrelados ao desenvolvimento da sociedade capitalista. Porque essa necessidade da tal fuga que tanto fala. Me parece que isso é um movimento historicamente constituido, e impulsionado pela transformação do mundo social, das relações sociais de produção. Como a busca do conhecimento, o uso das drogas não é agradavel. saber a merda do mundo que vive, a exploração diária que é submetido, não é agradavel pra ninguem. Não se esqueça que as tremedeiras após dias ingerido cocaina não são agradaveis à ninguem, mas é uma escolha do usuario se submeter a essa dialética intrinseca ao exercicio da liberdade. Mauricio Tragtenberg em busca de definir o homem em um de seus textos ressaltou, amparado em Dostoiévski, que o sofrimento também é condição vital para o desenvolvimento da personalidade, da consciencia, é tambem humano. Trabalhar de sol a sol também é nocivo pra pra fisiologia. Por duas vezes, voce emprega o termo agradável. Tambem não acho agradavel ficar desentorpecido, e tambem os usuarios de antidepressivos e calmantes também não o acham, então, novamente é necessário constatar que essa terminologia monolitica que emprega em sua análise para abordar os problemas fisiológicos esta profundmente arquitetada em argumentos fundados pela moral, que deve sim ser discutida, mas quando afirmada, permanece a defender a existencia de uma sociedade punitiva. Se o consumo de drogas é prejudicial a sociedade, o que dizer então da politica representativa, das grandes empresas, da policia. Tudo possui efeitos colaterais. Ninguem mais ganha com a criminalização das drogas do que o sistema carcerario e o judiciario. O que dizer dessas grandes construtoras de presidios, dessas faculdades de direito que estão a se espalhar pelas esquinas mais do que carrinho de cachorro quente? As drogas são ´prejudiciais a sociedade ou é o modo como são tratadas que implica em uma ampliação da violencia, totalmente inserida em uma logica de expansão capitalista. Essa politica que endossa é mais criminosa do que os proprios criminosos que ela fabrica. Ao contrario do aprisionamento, não seria mais importante estabelecer uma politica fiscal consistente, cuja verba seria destinada a saude publica. Mas as ongs e as clinicas particulares não estão interessadas, porque toda essa máquina esta montada para que eles obtenham alts faturamentos. Como em todas as épocas, todos governos necessitam de um inimigo a combater para girar a maquina e continuar a expandir seus lucros. o que sobra pra sociedade é a violencia generalizada. Se droga e homicidio estão na mesma balança, é essa politica que voce tem o prazer de endossar a mais responsável. Voce é advogado???
Espero que estes vídeos possam contribuir para o debate:
http://www.youtube.com/watch?v=nN_yoP2OedA
http://www.youtube.com/watch?v=lUm1JqyEX7c
Rafael.
Respondendo de baixo pra cima.
Não sou advogado, mas cursei direito.
Agora, voltando ao debate.
Trouxe essa questão moral com a intenção de trazer alguns argumentos alternativos ao argumento de que a droga expande nossa consciência; somente isso. Não são argumentos absolutos e, além disso, as questões políticas não podem ser resolvidas somente por argumentos morais.
Segundo ponto, censurei o uso de drogas pelo seu caráter de lesivo a ordem pública, essa é uma razão não moral, mas sim pragmático-política. Por isso fiz a comparação com o homicídio – obviamente que em graus distintos. Tentei demonstrar a nocividade em termos de ordem pública das drogas através da suposição da sociedade onde todos sejam usuários de drogas.
Agora um ponto crucial. Não é porque uma lei está em vigor que todos a respeitam. Atualmente, temos o uso de drogas como um comportamento indesejável socialmente do ponto de vista das nossas leis, mas muitas pessoas usam tais substâncias e a pena para tal conduta é ínfima – não existe mais prisão pra usuários. Essa é uma situação sustentável, agora, a legalização de tais substâncias, por seu turno, pode ter efeitos indesejáveis. Poderiam dizer que eu estou me conformando com a falta de eficácia das leis, com a situação de que existem leis e não são respeitadas por todos, reafirmo que é isso mesmo, até porque quando chegarmos ao ponto em que haja um controle absoluto de todas as ações de todas as pessoas, aí sim teremos problemas sérios.
O problema da estandardização da consciência também não é de todo um problema. Era e ainda é em alguns lugares um costume manter relações sexuais com crianças, muitas vezes à força, sem falar em mutilações igualmente forçadas e muitas outras práticas que em nosso país são criminalizadas. Se eu reinvidicar o direito de estuprar crianças, alguém estará disposto a me apoiar? Eu poderei argumentar que está se impondo uma estandardização em termos sexuais também. Esse é um precendente que abrimos com o argumento da estandardização da consciência; por isso que não vejo como aceitar tal argumento.
Não acho que haja relação alguma entre a sociedade capitalista e o uso de drogas, mas sim entre a natureza humana e os seus problemas existenciais que deságuam muitas das vezes nas drogas e em muitas outras coisas, seja qual for o regime político-econômico em voga. Dostoievski certamente concordaria comigo aqui.
Essa visão conspiratória do Estado tenho que lhe dizer, é inadequada; imaginar que secretários de segurança, juizes, ministros, comemoram os altos índices de criminalidade é uma grande bobagem.
Violência e tráfico as vezes estão relacionados, as vezes não. Conheço bairros onde a expansão do crime organizado implicou na diminuição da violência , visto que o “partido” pos ordem na favela. Exatamente isso foi o que aconteceu nos presídios brasileiros; porque será que os presos aderiram em massa ao pcc? Porque não queriam viver no estado de guerra hobbesiano que era a detenção, e preferiam entrar numa organização que pusesse o mínimo de ordem ali e impedisse que um detento esfaqueasse o outro só porque olhou feio pra ele. Isso tudo mostra a falência do Estado, a brecha na qual entra o crime organizado.
Não é o tráfico o responsável pela violência, mas sim as pessoas. A diminuição da violência depende mais de um aspecto educativo do que criminalizante ou descriminalizante. Rousseau defenderia o caráter educativo da política, apesar de que falar em caráter educativo da política no brasil chega a ser engraçado. Talvez devêssemos pensar em núcleos menores de educação e formação, tal como a família que muitos anseiam por desconstruir e destruir de todo modo.
Por último.
Você não acha que seria muito mais lucrativo legalizar todas as drogas possíveis, possibilitando a formação de uma indústria nacional da droga, ganhar rios de dinheiro em tributação e ainda se tornar um atrativo turístico do que resistir a legalização?
Caro Carlos, eu entendi sua argumentação, apenas contra – argumentei, que o caráter lesivo a ordem pública, tal como você define o termo, questionei se “Ao contrario do aprisionamento, não seria mais importante estabelecer uma política fiscal consistente, cuja verba seria destinada a saúde publica”.. Outra coisa, e pela última, que chegamos a um ponto intransponível. Você insiste em comparar a legalização das drogas à legalização do estupro de crianças. Essa comparação é demasiadamente equivocada. Num debate como esses, as generalizações devem ser ponderadas a medida que haja a aproximação com a especificidade do objeto em questão. O “direiro de estuprar crianças”. Você só pode estar de brincadeira. O usuário de drogas não lesa terceiros. É direito do ser humano ingerir o que quiser, não acha que é demasiada autoritária normatizar o que o ser humano ingere? Você não acha que a manutenção da politica proibicionista já é um problema muito sério? Vou citar uma passagem de sua colocação:
“Não acho que haja relação alguma entre a sociedade capitalista e o uso de drogas, mas sim entre a natureza humana e os seus problemas existenciais que deságuam muitas das vezes nas drogas e em muitas outras coisas, seja qual for o regime político-econômico em voga. Dostoievski certamente concordaria comigo aqui”.
São apontamentos muito sérios esses. Não existe mesmo nenhuma relação entre vida e economia? Natureza humana e problemas existências? Mas os problemas existenciais não se dão na própria existência, que se não me engano a vida econômica é fundamento da, digamos mais uma vez, EXISTENCIA. E evocar um defunto é meio exagerado quando tem tanta certeza que Dostoiévski concordaria com você. E seria como essa conversa: “Chamo agora para depor Fiodor Mikhailovich Dostoiévski para dar seu parecer de especialista sobre a questão das drogas no Brasil”? Como pode ter tanta certeza?
Você me ataca, dizendo que tenho uma” visão conspiratória do Estado tenho que lhe dizer, é inadequada; imaginar que secretários de segurança, juízes, ministros, comemoram os altos índices de criminalidade é uma grande bobagem”. Mas eu não disse isso, foi você que interpretou. O que eu disse claramente foi “Ninguém mais ganha com a criminalização das drogas do que o sistema carcerário e o judiciário. O que dizer dessas grandes construtoras de presídios, dessas faculdades de direito que estão a se espalhar pelas esquinas mais do que carrinho de cachorro quente?”. Portanto, não falei que alguém comemora, mas que a ampliação da política proibicionista gera investimentos em setores como segurança pública sistema carcerário, etc. A manutenção dessa política colabora para o desenvolvimento desses setores, e não de outros, como a saúde. A manutenção de uma política é realizada com recursos públicos, que tem seu destino de acordo com as políticas do governo. Esses recursos mantêm a expansão de alguns setores, enquanto outros não possuem recursos suficientes, como a saúde pública.
Quanto a seguinte questão que você coloca:
“Você não acha que seria muito mais lucrativo legalizar todas as drogas possíveis, possibilitando a formação de uma indústria nacional da droga, ganhar rios de dinheiro em tributação e ainda se tornar um atrativo turístico do que resistir a legalização?” A resposta está na releitura do texto acima.
Rafael.
Hehehe. Eu não psicografei Dostoievski. Não sou um méduim. Somente deduzi apoiado em minhas leituras que ele jamais atribuiria os males existenciais humanos a um sistema político-econômico X ou Y, mas sim à nossa própria natureza. Esse é certamente um dos motivos pelo qual ele e muitos outros censuravam os entusiastas da revolução.
E eu não disse que não há nenhuma relação entre o capitalismo e as drogas. A partir do momento em que vivemos numa sociedade capitalista o capitalismo tem a ver com tudo, todas as esferas da vida são afetadas e afetam a esfera econômica; penso inclusive numa dissolução dessas esferas, numa reordenação generalizada onde tudo se inter-relaciona e os limites desaparecem. O que quis dizer é que seja numa sociedade capitalista seja em qualquer outra, teremos problemas. Ponto. Eu não quero que Dostoievski deponha sobre o problema das drogas no Brasil, só quis extrair esse ponto dele, aproveitando que você o tenha evocado. Os problemas envolvendo a legalização ou criminalização das drogas são um problema para qualquer regime político, não é um privilégio do capitalismo moderno não saber lidar com isso.
Quando eu falei do estupro de crianças, foi somente para contra argumentar a questão da estandardização da consciência falando da estandardização da vida sexual. Eu insisto em que você preste atenção nos precedentes que certos argumentos podem abrir.
Você insiste em afirmar que o uso de drogas diz respeito só a esfera individual da pessoa. E eu insisto em dizer que um dos princípios do estado liberal é: você é livre para fazer o que quiser, tendo como limite os direitos dos outros e a ordem pública. Eu posso reivindicar o direito de andar a 150 Km/h na 23 de maio, mas isso é entendido como lesivo a ordem pública, além de potencialmente lesivo à direitos de terceiros. Outros países tem legislações de trânsito diferentes, mas aqui, no Brasil, isso é uma infração. Você reivindica o direito de fumar maconha sem ser incomodado, e isso é entendido como lesivo a ordem pública, tendo bons argumentos nesse sentido – vide as razões político-pragmáticas que expus nos outros posts. Essa é uma das chaves para os argumentos pró e contra a legalização.
Conforme sua sugestão, relerei o texto.
Caro Carlos, sugeri a leitura do texto, porque realmente a resposta para sua pergunta esta no texto de minha autoria. Vou me ater a esse grande escritor, mas de modo breve. Dostoiévski fazia sim a análise da sociedade russa. Um exemplo é crime e castigo, onde ele se atem á reforma juridica de 1863 que foi necessária após a emancipação dos escravos. Quanto á critica aos revlucionarios, Dostoiévski ponderava, segundo sua linha ideológica, o Potchvienitchstvo, que as idéias ocidentais, tal como elas queriam ser empregadas na Rússia pelos radicais, não refletiriam as necessidades do povo. Trata-se de uma experimentação pratica. Ele fica no meio do caminho, entre os radicais e os eslavófilos. A literatura russa era muito politica. Dostoiévski era um profundo defensor da emancipação dos servos, e quanto a isto caberia a crítica da sociedade,da politica e da economia tb, aliado a problematica da moral. Sua obra reflete um mundo em transformação: Tradição X Modernidade. Um exemplo é sua atividade nas revistas Epoca e Tempo, que publicou com seu irmão Mikhail na primeira metade dos anos 1860. A literatura era um dos unicos espaços para a critica da sociedade. Vale a pena ler a biografia que Joseph Frank escreveu, vc não vai se arrepender. É fabulosa, ele investiga o artista em seu processo criativo. Bem, é isso, creio que foi um prazer debater, esperamos as proximas oportunidades. mais uma coisa que me recordei. a solução moral encontrada por dostoiévski é o amor. “A revolução só produzirá catastrofe. O mundo deve ser salvo pelo amor”. Vale lembrar que o cristianismo é fruto de uma sociedade oprimida, tal como compreendeu Spinoza.
Abraço
Rafael
Caro Rafael,
Eu fico muito feliz por ter a possibilidade de ler um texto tão reflexivo como o que você publicou. Notei que em seu texto há um registro de escrita que é bem narrativo, sendo coeso, coerente e maleável. Ele envolve o leitor ao tema o tempo todo e isso é bem agradável para uma boa leitura. Adorei o seu modo de expressão textual, pois ele se distancia do tipo de texto jornalístico que adora polemizar sobre diversos temas, levando, infelizmente, o leitor para um discurso pronto de reprodução de valores já estabelecidos. Durante a leitura observei que o seu texto não faz polêmica, mas, sim, expõe uma reflexão refinada sobre o tema da legalização da maconha/Cultura/Política/Consumo/Estado/Prisões e outras questões presentes no âmbito de nossa vida social. Posso de dizer que, particularmente, gostei do recorte histórico que você realizou, uma vez que a partir dele você teceu um texto com um alto teor de informatividade, trazendo informações que surpreendem o leitor senso comum acostumado com informações que circulam nos grandes meio comunicação.
É claro que o debate sobre a legalização deve ser realizado nos diversos setores na sociedade, desse modo acredito que temos muito ainda para construir, mas já estamos jogando a sementes para refutar algumas normas políticas/jurídicas que são absorvidas na vida social como valor verdade legítima. Acredito que devemos mesmo rever esses valores que marginalizam e excluem as pessoas que tentam se soltar de algumas amarras sociais. Eu li todos os comentários e posso te dizer que seus argumentos estão bem elaborados, mas devemos sempre nos aprimorar para transformamos essa loucura de mundo. E falando em loucura, você sabe considero a loucura uma das formas mais sublimes de conhecimento, nem vou entrar no mérito de se fumar umzinho é fuga da realidade ou não, como questionaram nos comentários acima. Eu somente posso te falar uma coisa, sinceramente, gostaria de viver em uma sociedade em que os loucos também tivessem os seus direitos e não fossem jogados como um lixo social nos Hospícios e Penitenciárias. O Louco não necessita de penitência, ele necessita ter liberdade para se expressar e atuar na sociedade, como já disse um filósofo: “O grito de um LOUCO é conhecimento”.
Quando a gente se encontrar pessoalmente a gente bate mais um papo legal sobre todas as questões que você abordou no texto, gostaria de escrever mais, porém não expresso tão bem na escrita como você,
Com Saudações Cordiais,
Jerônimo