Por José Nuno Matos

Em 1986, aquando da adesão à então Comunidade Económica Europeia, Portugal era um país de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de uma sociedade de consumo se faziam acompanhar por situações de extrema pobreza. À semelhança do que se verificou com os grupos de oposição esquerdistas, o Anarquismo neste período – mergulhado numa realidade complexa que não correspondia de todo aos paradigmas que defendia – debateu-se pela sobrevivência. O objectivo do nosso artigo prende-se com uma análise do caminho percorrido pelas ideias anarquistas durante o período histórico que vai desde a segunda metade da década de 70 até aos inícios dos anos 90, numa tentativa de compreender até que ponto é que o Anarquismo em Portugal se repetiu a si próprio, afundando-se num pântano em que já se encontrava afundado.

«Em qualquer das latitudes interpretativas e explicativas que nos possamos situar, de facto toda a década de 80 do século XX demonstrou, de uma forma inequívoca, que o Anarquismo ortodoxo, nas suas vertentes anarco-comunista, comunista libertária e anarco-sindicalista, estava desactualizado e em termos teóricos e práticos revela-se mais uma crença e uma “religião” de que uma utopia consequente» [1].

Em finais da década de setenta, Portugal atravessava uma profunda crise económico-social. A via iniciada com o golpe de Novembro de 75, simbolizada pela mítica expressão de Mário Soares “colocar o socialismo na gaveta”, culminou com o estabelecimento de um acordo entre o governo e o Fundo Monetário Internacional (FMI), celebrizado pela igualmente mítica expressão “apertar o cinto”.

De 1977 a 1986, os vários governos [2] adoptaram uma política de contenção salarial, num primeiro momento através da fixação de tectos salariais e mais tarde indirectamente, via indexação dos aumentos salariais à taxa de inflação. Esta iniciativa, consubstanciada pela desvalorização do escudo e por outras medidas de austeridade social, originou a diminuição dos rendimentos reais dos trabalhadores, o aumento do desemprego, dos salários em atraso e a progressiva precarização laboral (em 1985, eram já 500 000 os contratados a prazo). Como refere Marinús Pires de Lima

«A crise agrava o dualismo, a segmentação do mercado de trabalho e as desigualdades económico-sociais. Para ultrapassar a rigidez das normas institucionais que limitam a mobilidade da mão-de-obra, o patronato utiliza políticas de gestão diferenciadas dos trabalhadores: empregos precários, subempreitadas, cedência de mão-de-obra, contratos a prazo, individualização. A economia subterrânea desenvolve-se e atinge 20% do PIB, de acordo com cálculos aproximados» [3].

Portugal era então um país de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de uma sociedade de consumo se faziam acompanhar por situações de extrema pobreza, e mesmo de fome, nomeadamente nos antigos pólos industriais, destronados pela pós-industrialização da economia.

À semelhança do que se verificou com os demais grupos de oposição esquerdistas, o Anarquismo no período pós-25 de Abril debateu-se pela sobrevivência. De acordo com João Freire, desde meados da década de 50 que o Anarquismo havia praticamente desaparecido da cena política em Portugal, restando apenas pequenos grupos de militantes que «dispersaram os seus esforços por várias iniciativas oposicionistas, mas não conseguiram manter a ideia de um movimento ou organização que poderia ressurgir publicamente tão depressa as condições políticas e repressivas o permitissem» [4].

De facto, quando em 1974 os condicionalismos políticos se revelaram mais favoráveis ao renascimento de um movimento social anarquista – à semelhança do que em tempos tinha sido realidade – as interrogações sobre o que fazer sobrepunham-se às respostas:

«Ao contrário dos restantes agrupamentos de esquerda, eles [os anarquistas] não só não tinham um programa minimamente definido de actuação em tais circunstâncias, como – dado de base para quem queira compreender o meio militante libertário – tinham ideias bastante diferenciadas sobre o que seria possível e desejável fazer» [5].

Nos anos de 1975-76, após o logro que se revelou ser o Movimento Libertário Português, surgem duas organizações: a Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP) e Aliança Libertária e Anarquista-Sindicalista (ALAS).

A primeira era uma federação de diversos grupos libertários portugueses, de cariz local, tendo chegado a agrupar cerca de uma centena de pessoas. O seu principal objectivo era a criação de ligações entre as várias tendências anarquistas, numa tentativa de quebrar o isolamento e fomentar o apoio mútuo entre as várias associações e entre os diversos Anarquismos. Entre as suas actividades várias, podemos referir a edição de textos, o debate e conversa em torno de assuntos outros que não apenas os clássicos temas do Estado e do Capital – como a ecologia, a luta antinuclear ou o feminismo –, ou as datas históricas do Anarquismo (1 de Maio, Julho de 1936, 18 de Janeiro de 1934). Organizava ainda alguns actos públicos, como o comício realizado no salão da “Voz do Operário” em Janeiro de 1977. De destacar, a importância concedida aos contactos com grupos e associações anarquistas de outros países, nomeadamente França e Espanha, por razões geográficas, históricas e políticas [6].

A ALAS, formada em 1976, partia de uma abordagem anarco-sindicalista centrada sobretudo na questão do trabalho e não em outros fenómenos sociais cada vez mais centrais.

O que aparentava ser o ressurgimento do movimento anarquista em Portugal foi igualmente expresso na publicação de vários jornais e revistas, como a A Batalha (ressuscitada após décadas de censura), A Ideia, A Voz Anarquista, a Acção Directa ou A Merda [7], bem como, mais tarde, no surgimento de espaços, como os Ateneus Libertários de Leiria (1978), do Porto e de Coimbra (1979).

Estas organizações pautaram-se, contudo, por uma vida breve. A FARP – politicamente mais relevante devido ao seu número de aficionados e ao cariz das suas propostas – perdeu o seu dinamismo inicial, verificando-se, até à sua extinção em 1979, a saída de vários grupos.

Reflectir sobre as causas desta crise assume-se como uma tarefa um pouco difícil, uma vez que a bibliografia existente não só é escassa, como é da autoria de ex-militantes que protagonizaram estes acontecimentos e que, como tal, estão longe de ter uma visão minimamente imparcial sobre o assunto; ainda assim, analisando os vários artigos e relatos, parece ser possível tirar algumas conclusões.

Constatamos, em primeiro lugar, que a tentativa de fazer renascer o movimento anarquista em Portugal partiu de paradigmas obsoletos, tanto em termos organizacionais como doutrinários. Invocar as experiências fantásticas de Julho de 1936 em Aragão e na Catalunha – por mais inspiradoras que estas possam ser –, num contexto de intensa mudança social, em que o processo de alienação e exploração se tornou cada vez mais complexo, revelou-se inadequado. Como afirmam Carvalho Ferreira e Rui Pinto, os colectivos anarquistas «esqueceram-se que estavam inseridos numa realidade contemporânea que não correspondia mais a um passado repleto de heróis e experiências revolucionárias mecanicamente idolatradas e mitificadas» [8].

Em segundo lugar, podemos mencionar a diversidade de tendências [9] que, ao invés de se concentrarem nos pontos em comum, optaram pela evocação de incompatibilidades, acusações e “bodes expiatórios” [10]. É de referir que a fragmentação do Anarquismo esteve igualmente associada a um conflito geracional. Analisemos, como exemplo, o seguinte excerto de João Freire, retirado do seu livro de memórias:

«Ao lado desta prudência e atentismo dos militantes da velha geração (rapazes e raparigas [moças] entre os 15 e os 25 anos de idade) que haviam afluído ao movimento e à sede da Rua Angelina Vidal tinham comportamentos e orientações bem diversas. Geralmente, eram pessoas revoltadas contra o autoritarismo da educação paterna, ávidos de experiências sexuais e de experimentações afectivas e emocionais, para quem o Anarquismo era sobretudo a violação de todas as normas e a vertigem de uma liberdade existencial, em busca de objectos perante os quais ela se pudesse afirmar, contestando-os» [11].

O antagonismo entre velhos e novos militantes, mais do que conflituoso, caracterizava-se por uma atitude de indiferença, incomunicabilidade e mútua ignorância em relação às tácticas utilizadas: os velhos discursos anarco-sindicalistas de um lado, e a ideia de abolição do trabalho, de outro; a necessidade de um corpo organizado, com funções delimitadas e quotas a pagar, em contraste com a organização baseada na espontaneidade; os chavões anarquistas, por um lado, e as frases non sense pintadas nas paredes, por outro.

Finalmente, importa citar uma quase total ausência anarquista das (poucas) lutas sociais que então se travavam salvo raras excepções a algumas lutas operárias e empresas autogeridas [12], ou a participação de alguns libertários em grupos ecológicos activos na luta contra o nuclear em Portugal [13], um factor essencial na divulgação das ideias anarquistas na sociedade portuguesa dos anos 80.

Assim, ao longo desta década, o Anarquismo em Portugal resumiu-se a uma série de publicações e grémios, frequentemente insulados e mesmo rivais uns dos outros.

Notas

[1] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In Revista Utopia, Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004, pg.16.
[2] Governos do Partido Socialista – PS – (mais tarde em coligação com o Centro Democrático Social – CDS –), de iniciativa presidencial e da Aliança Democrática (Partido Social Democrata – PSD – coligado com o CDS e o Partido Popular Monárquico – PPM –).
[3] Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV, Estruturas Sociais e Desenvolvimento: Actas do II Congresso Português de Sociologia, Vol. I, Lisboa, Edições Fragmentos, 1992, pgs.613,614.
[4] Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica das Ciênciais Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985, pg.163.
[5] Idem, pg.164.
[6] Por parte do movimento anarquista francês, onde se encontravam muitos exilados ibéricos, havia um forte apoio logístico. No que respeita à relação com os anarquistas das várias regiões de Espanha, esta fundava-se não só na solidariedade para com companheiros ainda sujeitos a uma campanha de terror por parte do Estado, mas igualmente pela esperança de que uma alteração radical da situação política espanhola pudesse vir a influenciar directamente o contexto português.
[7] De referir ainda o Pasquim (Cascais), o Satanaz (Almada), a Sabotagem, o Rastilho e a Terra Livre (Amesterdão), a Revolta (Leiria), a Acção (Tomar), a Libertação (Pombal) e, mais tarde, o Apoio Mútuo (Évora), A Sementeira (Lisboa), a Lanterna Negra (Lisboa) e o Anarquista (Leiria), (Tavares, 2004).
[8] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.
[9] João Freire defende que no Anarquismo português de 1974 a 1984, é possível distinguir três grupos, com base em atitudes distintas: os possibilistas ou realistas, que encaravam com realismo as condições sociais (sem contudo descriminar os princípios e valores), mantendo “uma linha de referência aos movimentos sociais que lhe parecem poder escutar o discurso libertário” (Freire, 1985: 167); os populistas ou colectivistas, nos quais a preocupação de militar junto das massas – nas comissões de trabalhadores, nos sindicatos, nas comissões de moradores – originou um esvaziamento ideológico e, ocasionalmente, a adesão a forças estranhas e até antagónicas com os princípios anarquistas; e finalmente, os pessoalistas e inflexíveis, adeptos da mudança rápida e intransigente da realidade social. O negrito é nosso.
[10] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.
[11] Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pg.437. O negrito é nosso.
[12] Como o apoio por parte de alguns militantes, definidos por João Freire como “marxistas libertários”. Freire, João, op.cit., 2007, pg.450.
[13] No dia 15 de Março de 1976, o povo de Ferrel, conjuntamente com grupos e militantes ecologistas, marchou sobre o local onde decorriam trabalhos preparatórios para a então projectada central nuclear. Uma demonstração de recusa que marcou o início da luta contra o nuclear em Portugal.

Bibliografia

AAVV, Okupa, Preokupa !?, Lisboa, s.d.
AAVV, Porquê Okupação?, Queluz, 1999.
Bey, Hakim, Zona Autónoma Temporária, Braga, Edições Discórdia, 2004.
Edições Antipáticas, “Divergência e Afinidades”, Prefácio Da Miséria nos Movimentos Subversivos, Lisboa, Edições Antipáticas, 2006.
Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In Revista Utopia, Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.
Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica das Ciênciais Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985.
Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX, Porto, Edições Afrontamento, 2007.
Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV, Estruturas Sociais e Desenvolvimento: Actas do II Congresso Português de Sociologia, Vol. I, Lisboa, Edições Fragmentos, 1992.
Santos, Boaventura de Sousa, O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1984), Porto, Edições Afrontamento, 1998.
Tavares, José, “Anarquismo em Portugal (1974-1984): Conclusão provisória”, In Revista Utopia, Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.

17 COMENTÁRIOS

  1. Texto bom. A situação brasileira é a mesma.

    O anarquismo desapareceu aqui na década de 1930, restaram somente grupos de estudo acadêmicos, alguns grupos culturais e clubes de amigos que não duram muito tempo porque ou deixam de ser amigos (pelas invejas e putarias) ou ficam tão amigos que casam e vão formar uma família. Claro que quem dura mais são os grupos de estudo porque anarquismo financiado e carreirista tem mais estabilidade.

    De resto, a principal referência dos últimos anos foi o Maurício Tragtenberg, que era na verdade um marxista libertário.

    Há oposição entre grupos, as edições são caducas, ficando no século XIX ou início do XX, os temas de estudo são de fazer espirrar o Malatesta, parecem mais grupos de oração tamanho o caráter de seita, há total desconhecimento da realidade brasileira e mundial, há grandes conflitos entre gerações, há conflitos entre universitários e não universitários, há conflitos entre anarquista de classe média e anarquistas pobres, os paradigmas de análise são do tempo da bíblia, o foco maior é no discurso ético sem uma base analítica sólida, há uma produção teórica anoréxica (anarquismo sempre foi mais um conjunto de preceitos éticos que um pensar estruturado), o lado estético é de dar medo tamanha pobreza e desatualização (eles gostam de imitar a estética dos jornais de 1910)…

    Depois tem ainda a confusão:são ecológicos, são feministas, são a favor dos animais, da soja, dos índios sem que haja uma reflexão séria sobre tudo isso, sem olhar as dualidades, as ciladas, as contradições…

    A parte educacional é uma piada: sempre tem 200 pessoas fazendo monografia sobre uma tal pedagogia anarquista que simplesmente não existe (preguiça de estudar a realidade?). Mas, claro, os filhos são matriculados no COC, no Dante, no Objetivo, na boa escola empresarial (?). Eles também organizam rituais comemorativos ao que pensam que foi a revolução espanhola, o movimento operário de 1906, a revolução Russa e etc.

    O anarquismo hoje se limita a ser grupo de formação de professores carreiristas, uma capa de proteção temporária para adolescentes rebeldes, uma defesa da felicidade como putaria eterna (carpie diem), uma mureta psicológica para velhos ex anarquistas, uma pequena religião para jovens conservadores de esquerda.

    Quando conseguem produzir algo de útil se assemelham ao MPL levando panfletos para os trabalhadores revoltados de Francisco Morato: gente do centro contando obviedades para gente da periferia. Quebrar catraca não é crime? É mesmo? Puxa, faz 30 anos que a gente quebra e não sabia. Ainda bem que vieram avisar…

  2. Gostei mto do teu texto Zé.

    Só uma questão: importa perceber porque dois dos mais importantes autores que se reivindicam do anarquismo português produzem análises do trabalho que em pouco se diferenciam de uma análise clássica/técnica/burguesa das relações de trabalho. Estou a pensar no João Freire e no José Carvalho Ferreira que, de tudo o que li deles na área da sociologia do trabalho, não empreendem análises criticas por aí fora da exploração do trabalho. Admito estar equivocado mas a sua obra académica na área da sociologia do trabalho não tem mto que se possa dizer que seja distinto das correntes mainstream. Repito, refiro-me apenas à sua obra académica e na sociologia do trabalho. Não deixa de ser no mínimo curiosa essa ausência (ou pouca presença) de reflexão sobre as relações sociais fundamentais da contemporaneidade.

    Um abraço

  3. João Valente,

    O anarquismo nunca foi uma corrente analítica sistemática, nunca chegou a amadurecer ao nível de criar uma nova metodologia. O anarquismo se direcionou mais para a prática. É muito mais um conjunto de preceitos éticos. Todo anarquista é mais ético que estratégico, mais emotivo que racional, mais formulador de máximas que criador de grandes análises. Quando se tira do anarquismo o idealismo, as regras morais, não sobra absolutamente nada. Trata-se de uma inexistência teórica.

    Assim, não espanta que não criem nenhuma análise distinta, nenhum novo corpo teórico.

    No final, a bagunça é tanta no Brasil de hoje, tanto o desserviço que o melhor é nem citar anarquismo e marxismo. Se for realmente participar de uma luta,o bom é esquecer esse rolo ideológico e se apegar nas coisas práticas.

  4. João,

    Concordo contigo, em parte. A tese de doutoramento do JMCF sobre o PREC, ainda influenciada pela sua militância no jornal Combate, é bastante interessante. Alguns dos seus artigos (estou a lembrar-me de um que escreveu numa obra sobre globalização, editada pela Celta) são, na minha opinião, bastante críticos.
    Mesmo no caso do João Freire, o seu manual de sociologia de trabalho apresenta escolas de pensamento que, normalmente, não têm lugar em livros semelhantes.
    Porém, é sempre possível ir mais longe…

    Ufólogo, esta frase constitui um bom resumo da situação: “O anarquismo se direcionou mais para a prática. É muito mais um conjunto de preceitos éticos. Todo anarquista é mais ético que estratégico, mais emotivo que racional, mais formulador de máximas que criador de grandes análises”

  5. José Nuno,
    Ora aí está uma novidade que me dás, essa de que o José Maria Carvalho Ferreira colaborou no Combate. Nunca o vi por lá, mas talvez eu estivesse a olhar para cima. Dessa época, o único anarquista propriamente dito que se esforçou sistematicamente por manter uma plataforma de colaboração com o Combate foi o Emídio Santana, cuja estatura política e humana não tinha par entre os seus correligionários. E se as iniciativas do Santana não foram para a frente, não foi por culpa do Combate, nem do Santana. Lembro-me de que o jornal anarquista de Almada — como se chamava ele? A Voz Anarquista?— elogiou a intervenção da GNR no Alentejo contra as UCPs, considerando-a como uma meritória acção anticomunista, logo, antitotalitária. Ouvi também um dos colaboradores desse jornal, um velho tarrafalense, aconselhar o voto no Partido Popular Monárquico por ser federalista e ecológico e influenciado por Proudhon. Como deves saber, o PPM foi fundado pelo Rolão Preto e mal esse anarquista da Outra Banda imaginava que estava a dar novo fôlego às ambiguidades do Cercle Proudhon de Sorel, Berth e Valois. Não basta a ufologia para analisar o anarquismo português, é necessária também a máquina de viajar no tempo… para trás.

  6. Zé Nuno,

    não creio que o manual de sociologia do trabalho seja algo de especial. (Por acaso era essa a obra do João Freire que tinha em mente). Achas que citar algumas outras escolas faz disso um manual propriamente crítico e interessante? Em tenho as minhas dúvidas. Se tomarmos o prisma da linguagem facial é óbvio que esse livro não é apologista do capitalismo como as coisas provenientes da área da gestão dos recursos humanos (GRH), mas o que será pior em termos de análise: simplesmente debitar frases sobre o capital humano e a necessidade de os trabalhadores serem pró-activos, etc. (como surge em grande parte dos manuais de GRH) ou ver o processo de trabalho como um mero conjunto articulado de processos sócio-técnicos e despojado de qualquer marca de classe e, portanto, de extracção da mais-valia? Creio que as descrições desse livro do João Freire são puramente tecnicistas e, no seu cerne, pouco se distinguem de outros autores clássicos do tema.

    Abraço

  7. João,

    Estava certo que sim (obviamente, saberás melhor que eu!). De resto, não me espanta o que relatas: é consultar o catálogo de algumas editoras na altura e constatar a atenção (na minha opinião, excessiva) concedida ao marxismo e à sua crítica.

    João Valente Aguiar,

    Um manual será sempre um manual. Se bem que neste em específico, não me recordo do uso e abuso da terminologia técnico-ideológica dos GRH. O mesmo não posso dizer do Manual de Psicosociologia das Organizações, do JMCF.

  8. Acabei de fazer uma pesquisa na net, através da qual pude verificar que o JMCF participou nos Cadernos de Circunstância (1967-71) e não no Combate. Fica a rectificação.

  9. Parece-me um bom texto de introdução, embora, sinto, que seja necessário acrescentar vários pontos para dar maior dimensão à analise. Primeiro, penso que “Anarquismo” foi-se aplicando em Portugal como minimo denominador comum para abarcar tudo e qual coisa que fosse “contra o estado ou autoridade”. Assim, creio que muitos auto-denominados anarquistas acabassem por ter muito pouco disso por se radicarem em eixos de sub-cultura e em contradição com o anarquismo como ideia de transformação social.
    Depois, seria importante talvez referir que para além da auto-guetização dos grupos anarquistas, os egos e personalidades extravagantes de uns poucos foram sucessivamente conseguindo afastar os muitos que se iam interessando pelas ideias, e aos que iam tendo alguma iniciativa “externa” eram alvos de “fábulas engraçadas! No fundo, muito elitismo.

    Mas no essencial penso que foi a falta de acordos e tácticas que desde 1974 ajudou à não-emergência de um movimento minimo. Essa é a grande diferença para com outros casos parecidos como o Chile, onde o movimento quase desapareceu também depois dos anos 50 e de uma ditadura, e onde agora emerge com consistencia graças a esforços como os da FEL ou iniciativas dentro do sindicalismo; ou a Irlanda, onde o anarquismo nunca teve influencia mas se vai mantendo num movimento minimo devido a grupos como o Workers Solidarity Movement.

  10. Apesar de não o referir parece-me que o texto deixa pistas suficientes para se encontrar a origem do problema do anarquismo na região portuguesa, que julgo ser o mesmo que temos na actualidade. Como em tudo, sem gente não se faz nada. E sem qualidade humana nada germina. Muito mais do que insuficiência teórica que em meia dúzia de anos pode ser ultrapassada, muito mais do que a má escolha de uma ideologia do início século XX que pode ser matéria de reconsideração, muito mais do a falta de uma estratégia que pode ser delineada em qualquer altura, falta é gente com qualidade para alterar a situação. Como é que se pode esperar que um colectivo de hipócritas que faz eleições para eleger órgãos de direcção com vista a eliminar a dissidência possa contribuir para a alavancagem do anarquismo? Como é que se pode esperar que quem boicota o trabalho de companheiros por uma questão de demarcação de território possa ter um mínimo de credibilidade política ou inspirar o anti-autoritarismo nas outras pessoas? O que se pode esperar desses supostos “anarquistas”, que por acaso são a grande maioria dos que há, quando eles se calam perante estas coisas ou até continuam a apoiar e a suportar estas situações? Quando aí em cima se fala que o anarquismo é sobretudo uma ética, uma ética aplicada à prática, penso que se está a ver mal o problema. O que falta é precisamente ética libertária, que evidentemente, antes da formação teórica e ideológica, tem a sua fundação na qualidade humana dos militantes.

  11. Demenor,

    pelo amor a estética do site é horrorosa, melhor contrapropaganda não vão conseguir fazer. Parem de ficar imitando estética dos jornais de 1910, que já eram muito feios. Sejam criativos.

    Olho o site e o que vejo:

    – luta por moradia
    – questão do negro
    -questão da terra
    -luta feminista
    -luta estudantil
    -luta contra a violência estatal

    O que tem de anarquismo ai? Quando digo que o anarquismo acabou nos anos 1930 tenho que dizer algo que é mais que evidente. Mesmo aqueles colegas que se empenham em lutas, que não são acadêmicos carreiristas, não conseguem ter nada de singular. Com ou sem quem se diga anarquista há o movimento negro, o movimento feminista, lutas contra a violência estatal, lutas estudantís, lutas por moradia, terra. O anarquismo ai não passa de uma má consciência. Não temos anarquistas na luta feminista, mas um feminismo que cresceu tanto que está de A a Z, da Avon ao anarquismo carioca. O mesmo para todas as demais bandeiras.

    E que colegas participem das lutas de hoje mas as interpretando com textos, conceitos e estética do século passado é somente sinal de atraso e dependência ideológica. Procurem uma clínica de desideologização. Beijos!

  12. Este artigo sobre o anarquismo em Portugal no pós-25 de Abril é de uma pobreza total. Não consegue perceber o contexto em que os poucos militantes que existiam, teoricamente melhor formados, tiveram que exercer a sua militância, nem situar a influência real que na altura tiveram as ideias libertárias em muitos locais e frentes de batalha. Nunca houve uma organização – a FARP, foi uma tentativa que nunca teve qualquer resultado (dela ficou apenas o grupo Acção Directa, que no plano das ideias teve uma importância fundamental, embora muitos dos seus elementos tivessem vindo do marxismo) e a ALAS pouco mais reunia do que o pequeno grupo que fazia a Batalha na Angelina Vidal. Nesta altura ainda o Carvalho Ferreira se dizia marxista (alguma vez o deixou de ser?) e o João Freire tombava para um reformismo comunalista – esse sim guetizado e guetizador. Dos vários encontros realizados para formar uma organização pouco resultou, é verdade. Mas sempre houve diversos grupos por todo o país, com práticas diversas, intervenções directas ao nível social e laboral e diversas revistas e jornais com algum sucesso. É estranho que uma análise destas cite abundantemente Carvalho Ferreira e João Freire (que pouco pesaram no movimento anarquista dessa altura) e ignore o Gabriel Mourato ou o Julio Carrapato, por exemplo, que, no Algarve (depois de ter estado em Lisboa na Acção Directa, esteve em Évora no Apoio Mútuo) deu corpo ao Meridional. Para se fazer uma análise é preciso mais do que meia dúzia de ideias feitas, caro José Nuno de Matos. Estude e pesquise melhor. Material não falta por aí.

  13. Caro viva,

    Analisando o título, será fácil constatar que se trata de uma «breve abordagem». A «abundante» citação do João Freire e do Carvalho Ferreira deve-se ao facto de serem os poucos que se debruçaram sobre o assunto. Para além deles, só o José Tavares é que publicou algumas linhas sobre o assunto. Se souber de outros, agradecia que me informasse.
    De resto, é necessário igualmente recordar que o artigo, conforme o título indica, versa apenas sobre o período entre 1974 e 1990. Ora, embora desenvolva actividade já desde os anos 80, a grande parte do catálogo da Sotavento será editado durante a década de 90.´
    Um bem haja pelos comentários,
    José Nuno Matos

  14. Caros José Nuno e João Bernardo,
    Como estão a tentar reconstruir a minha biografia, tenho a escrever o seguinte:
    Na minha trajectória biológica e social, em 1975 perfilhava as ideias e práticas do marxismo libertário, do situacionismo e do anarquismo.
    Por essa razão e porque conhecia o João Crisóstomo e o Júlio Henriques, assim como outros membros que participavam no Jornal Combate frequentava a livraria deste jornal na Rua da Atalaia em Lisboa.
    Todavia, embora não fosse militante do referido jornal escrevi na íntegra um Editorial subordinado ao tema “Que Conselhos Operários”. Para os devidos efeitos aconselho o José Nuno e o João Bernardo a lerem o Jornal Combate, Ano II, Nº 27 – 17/7 a 17/7/75, de 17 de Julho de 1975, pág. 3.
    Um abraço e até breve.
    José Maria Carvalho Ferreira

    Editorial

  15. joão freire e carvalho ferreira são um desgosto. nem um nem outro fizeram algo que se veja. sao dois bons elementos da irmandade dos manga de alpaca.

  16. João Freire e Carvalho Ferreira, de quem há muito estou distante do ponto de vista das suas ideias actuais, foram dois activos militantes anarquistas portugueses da geração pós 25 de Abril de 1974. Ambos exilados em França nos anos 60 durante a ditadura. João Freire teve um activo papel na divulgação do anarquismo através da revista A Ideia, as primeiras séries, e publicou um trabalho académico muito relevante «Anarquistas e Operários 1900-1940″ (Edições Afrontamento, 1992), além de alguns outros livros também interessantes. Quanto a Carvalho Ferreira o seu papel na edição da revista Utopia, foi importante nas década de 90/2000, para lá da participação anterior no jornal A Batalha, e outras publicações, e foi um difusor de ideias libertárias no Brasil e em Portugal. Sobre as suas carreiras académicas nada sei, nem quero saber. Quanto às suas ideias actuais eles falam por si mesmos…
    MRS

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