Por João Valente Aguiar

Não costumo pegar em comentários para articular respostas em artigos. Mas por vezes os comentários são significativos e, consciente ou inconscientemente, dizem mais do que muitos textos. Pelo que dizem e pelo que não dizem. No caso em apreço, pelo que dizem.

A propósito da defesa da luta à escala europeia, o Miguel Serras Pereira e eu fomos interpelados por um comentador anónimo, assinando “RG”, que colocou a seguinte tese contrária na caixa de comentários do blog 5 dias (veja aqui).

«Isto seria assim, se a realidade não fosse, por exemplo, os trabalhadores do norte, pela acção da sua oligarquia dominante, serem beneficiários do empobrecimento dos trabalhadores dos países do sul. Só isto faz toda a diferença e por essa razão a luta dos trabalhadores é também a defesa no seu quadrado».

Da geometria aljubarroteira [1] da «defesa no seu quadrado» aos novos mecanismos económicos inventados sobre o facto de «os trabalhadores do norte, pela acção da sua oligarquia dominante, serem beneficiários do empobrecimento dos trabalhadores dos países do sul», RG presenteia-nos com um banquete de sabedoria. De acordo com RG, ficamos a saber que:

1) os trabalhadores do norte da Europa beneficiariam do empobrecimento ocorrido junto dos trabalhadores do sul «pela acção da sua oligarquia dominante». Portanto, de acordo com RG, os trabalhadores do norte não teriam propriamente uma clivagem de classe com as classes dominantes. Temos aqui a concepção de uma unidade nacional de trabalhadores e de patrões que, em conjunto, iriam oprimir outros povos. E assim se passa da luta de classes para a luta entre nações como foco político principal;

2) ainda sobre o facto de os trabalhadores do norte da Europa beneficiarem com o empobrecimento dos trabalhadores do sul. Se isso fosse verdade, então os trabalhadores portugueses de Lisboa beneficiariam com o empobrecimento dos trabalhadores portugueses do Alentejo ou de Trás-os-Montes. Se assim fosse, lá se ia ao ar a grande tese da unidade nacional dos portugueses honrados… Mas esta tese não é só absurda como é inexplicável do ponto de vista económico. Como seria possível trabalhadores explorarem outros trabalhadores? Como indivíduos com a mesma função social (a de produzir e de fazer circular mercadorias portadoras de mais-valia) poderiam explorar outros na mesma situação económica? Como é possível alguém de esquerda achar que há mais em comum entre um trabalhador e um patrão do mesmo país? Para a tese nacionalista, muitíssimo bem descrita por RG, isso está colocado no plano das nações exploradoras sobre as nações exploradas. E a linhagem fascista das nações proletárias contra as nações plutocráticas volta ao de cima pela mão da esquerda.

Por outro lado, se a justificação é a desigualdade/disparidade de rendimentos, basta recordar que isso é inerente não só dentro de cada plano nacional como à escala mundial. E se se continuar a desfiar, pode-se facilmente chegar às discrepâncias de rendimentos entre famílias de trabalhadores ou entre trabalhadores da mesma empresa com idênticas funções. Se esse é o critério, então a unidade dos trabalhadores seria praticamente impossível. A partilha da mesma função económica do trabalho é aqui atirada borda fora.

Em segundo lugar, essa tese do benefício dos trabalhadores do Norte à custa do empobrecimento dos do Sul é, mesmo dentro dessa lógica da disparidade de rendimentos, falsa. E é-o porque, se os salários nominais dos trabalhadores que vivem na Alemanha são superiores aos praticados em Portugal, a verdade é que, em resultado de uma produtividade muito superior na Alemanha, os trabalhadores aí residentes produzem muito mais mercadorias e muito mais valor económico (a mais-valia) do que ocorre em Portugal. Assim, se se fizer um rácio entre a massa salarial e o volume de excedente económico produzido (ou, se se preferir, a taxa de mais-valia), chega-se facilmente à conclusão de que os trabalhadores na Alemanha são mais explorados do que em Portugal. A não ser, claro está, que as pessoas que defendem as teses nacionalistas prefiram ver a exploração no plano moral ou do consumo. Mas aí já estamos a falar de outras coisas, porque do ponto de vista económico é mais explorado quem mais valor económico produz. Ou, para ser mais preciso, quando a taxa de crescimento da produção de mais-valia ultrapassa a taxa de crescimento dos salários.

E se as bases de funcionamento da economia capitalista descritas por Marx não são mais audíveis pela própria esquerda que se reivindica do marxismo, então ao menos que atente no facto de a evolução dos salários dos trabalhadores na Alemanha, em termos de custos unitários de trabalho, ter sido inferior à registada em Portugal. Partindo de uma base de 100 em 2005, verifica-se que os custos unitários na Alemanha em 2011 estavam em 105,3 e que nos anos de 2006, 2007 e 2008 chegaram mesmo a diminuir até aos 98,0, aos 97,2 e aos 99,4. Inversamente, em Portugal, para uma mesma base de 100 em 2005 verificou-se sempre uma subida até 2011. Neste último ano o nível atingido cifrou-se nos 106,6 e chegou mesmo aos 109,0 em 2009 (veja aqui).

Vivendo na santíssima trindade da gritaria sul versus norte, Portugal versus Alemanha e nação versus Europa, para a esquerda nacionalista os processos objectivos pouco parecem dizer.

I. Crítica da economia nacionalista

A minha abordagem introdutória serviu o propósito de tentar demonstrar como o discurso da maioria da esquerda portuguesa se tem dirigido para um plano nacionalista. De facto, o comentário que aqui critiquei é extremamente valioso acerca dos perigos de um nacionalismo que tem cavado fundo na esquerda, começando já a deixar de existir meias-tintas para os seus alvos políticos: de um lado, os trabalhadores alemães e a esquerda antinacionalista e, de outro lado, Merkel, a Alemanha, a União Europeia. Em suma, colocando no mesmo plano todos os que num imenso saco de gatos sejam vistos como contrários a um projecto nacionalista. Nesse sentido, a amálgama funciona como a arma política dos que não têm argumentos para discutir racionalmente o que se está a passar na actual conjuntura histórica. Têm sido vários os que me acusam de ser favorável ao euro, chegando um especialista na arte da tresleitura e do insulto a chamar-me de «fanático defensor do euro» (veja aqui). Tudo isto sem nunca provarem o que eu teria afirmado e sem nunca apresentarem um argumento económico que seja. Nada de novo, portanto. Registe-se apenas a forma como estes mestres da desconversa e da ofensa lidam com os seus opositores políticos.

A prática ausência de argumentos económicos que justifiquem minimamente uma saída do euro não deixa de ser intrigante para as forças políticas que defendem esta via. Quando não estão ausentes, resumem-se a pequenos textos que abordam muito parcialmente a questão. Por isso deixo aqui um apelo sincero aos leitores que se consideram indecisos sobre este problema: sendo unanimemente reconhecido que uma saída do euro terá grandes custos económicos, humanos e sociais, porque os defensores desta via quase nunca apresentam argumentos substantivos que justifiquem as suas posições? E quando apresentam argumentos, porque só o fazem esparsamente ou porque abordam apenas algumas das variáveis em jogo? Para um assunto sobremaneira importante, porque será que os defensores de uma saída nacional do euro raramente abordam o tema para além dos argumentos estritamente propagandísticos da soberania nacional?

Mas às organizações de esquerda defensoras de um capitalismo de Estado não lhes basta contar com uma legião de panfletários dedicados à estetização da política. Necessitam igualmente de quadros políticos tecnicamente preparados. É com estes últimos que me preocuparei fundamentalmente neste texto. Nesse sentido, vale a pena abordar um texto do economista Octávio Teixeira (OT), publicado no jornal Avante!, órgão oficial do Partido Comunista Português (PCP). Defensor inequívoco de uma saída do euro, OT defende que «uma desvalorização de 30% geraria uma inflação da ordem dos 8/9% (reflectindo o efeito do peso das importações na produção e no consumo), o que significaria, embora não necessariamente, idêntica quebra nos salários reais. Mas a redução real dos salários este ano e no próximo é já superior a esse custo» (veja aqui).

Ora, a verdade é que, segundo dados da Comissão Europeia citados pelo jornal Público, (veja aqui) a queda do salário médio em Portugal foi, entre 2010 e 2012, em torno dos 8,3% para o conjunto deste período (queda de 0,4% para 2010, de 3,6% para 2011 e de 4,5% para 2012). Portanto, querer comparar uma diminuição média real que andará actualmente em torno dos 8% para um período de três anos com uma diminuição que o próprio autor assume ser muito provável rondar os 30% (num único ano) só pode ser justificável com uma ocultação da actual situação, como a que o autor faz na última frase do trecho supracitado.

Por outro lado, OT aborda no mesmo trecho a existência de «uma inflação da ordem dos 8/9%». Seria interessante que OT e os defensores da saída do euro dissessem a todos os trabalhadores, que têm sofrido fortes rombos no seu poder de compra com as actuais políticas de austeridade, como iriam viver com uma redução salarial de 30% e com uma inflação de 8 a 9%. Portanto, à já de si enorme redução salarial por via da transição do euro para uma moeda nacional, somar-se-ia uma inflação entre 3 a 4 vezes superior à actual.

Estes dados apresentados por OT teriam «já descontado o efeito do aumento do preço dos inputs importados incorporados na produção nacional. E é evidente que o aumento da competitividade por esta via, quer a nível das exportações como da substituição de importações, é praticamente imediato com rápidos efeitos positivos no emprego. E é a partir daí que se pode avançar para a reindustrialização e para o aumento da produção. (Para que não haja dúvidas, todos estes cálculos se suportam nas matrizes input-output divulgadas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], não são meros palpites ou ilusões)». Por conseguinte, a aposta numa saída do euro permitiria um aumento da «competitividade pelos preços da produção nacional» em «cerca de 24%» (veja aqui). Por outras palavras, a saída do euro permitiria uma redução dos custos com os factores produtivos o que, por sua vez, permitiria um aumento da competitividade das exportações portuguesas.

Sobre este assunto já escrevi aqui contra este tipo de argumentos. Mas, mesmo assim, vale a pena abordar as teses de OT em torno de dois grandes parâmetros.

Em primeiro lugar, o modelo defendido por OT apostaria fortemente no incremento da mais-valia absoluta (queda dos salários e, portanto, um prolongamento da austeridade) e não da mais-valia relativa. Explicitando, para OT a saída de Portugal do euro utilizaria o embaratecimento dos factores produtivos para aumentar a competitividade da economia portuguesa. Neste ponto OT vê a questão por intermédio da ampliação do mercado interno substituindo importações e de um paralelo aumento das exportações. Isto seria conseguido, como se viu acima, através da desvalorização cambial. Acerca desta tese gostaria de lançar uma primeira interrogação: como se financiaria a economia e a reconversão/reconstrução do aparelho produtivo? Como seria possível financiar uma economia extraordinariamente frágil, mais ainda nas condições de baixíssima produtividade em que se encontra?

Sejamos claros, esta desvalorização cambial assentaria sobre a redução dos salários. Digo isto porque considero sintomática a ausência de qualquer referência no texto de OT a incrementos de produtividade. Não basta falar numa vaga política de avançar para a «reindustrialização e para o aumento da produção», sem escrever uma linha sobre as condições de produtividade em Portugal e na União Europeia, mola real de uma economia dinâmica moderna.

Vejamos este assunto mais de perto. Recorrendo a dados do Eurostat relativos à produtividade por hora de trabalho calculada em volume de euros, construí a tabela 1.

Tabela 1 – Produtividade por hora de trabalho calculada em euros

2000 2009 2010 2011 Δ% 2000-2011 Δ% 2009-2011
UE 27 28,0 30,7 31,4 31,8 13,57% 3,58%
Alemanha 37,3 40,9 41,7 42,3 13,40% 3,42%
Grécia 17,6 21,1 20,4 19,9 11,55% – 5,69%
Espanha 27,3 29,4 30,0 30,4 11,36% 3,40%
Itália 32,0 31,7 32,4 32,5 1,56% 2,52%
Portugal 14,9 16,1 16,4 16,5 10,74% 2,48%

Fonte – Eurostat

Os dados disponíveis permitem verificar que a produtividade portuguesa em 2000 era 39,94% da alemã e em 2011 era 39,01%. Portanto, dito de uma maneira muito simples, mesmo já a economia alemã estando a produzir no ano de 2000, em média, 37,3 euros por hora (algo de que nem em 2011 Portugal chega a metade), esta conseguiu incrementar mais 5 euros por hora na última década. Portanto, a um nível já elevado de produtividade, a economia alemã foi capaz de continuar a fazer crescer em termos absolutos a capacidade de extrair maior quantidade de bens e de serviços por cada hora de trabalho. Inversamente, Portugal, que só produzia 14,9 euros por cada hora de trabalho em 2000, chegou a 2011 com 16,5 euros por hora. Se, percentualmente, o diferencial de aumento da produtividade nem seria muito distinto (10,74% contra os 13,40% na Alemanha), na realidade a economia portuguesa, em 11 anos, incorporou por cada hora de trabalho apenas mais 1,6 euros. Ou seja, a taxa de crescimento unitário da produtividade foi de cerca de um terço da registada na Alemanha. Por conseguinte, e em jeito de resumo, Portugal tem uma produtividade cerca de 39% da alemã e teve, em onze anos, um aumento nos ganhos de produtividade do trabalho na ordem de um terço do registado na Alemanha.

Em vez de se colocar o plano da discussão nos mecanismos da mais-valia relativa, há quem prefira ignorá-los… Falar vagamente em «reindustrialização», sem mencionar como isso poderia ocorrer ao nível de um aumento da produtividade, demonstra claramente que a via de uma saída do euro apresentada pelos seus defensores seria sustentada numa ampliação dos mecanismos da mais-valia absoluta (redução nominal e real de salários, elevada inflação, necessidade de apertar o controlo da força de trabalho, etc.). Por isso, quando os nacionalistas de esquerda apresentam o argumento de que uma saída do euro permitiria aumentar a competitividade da economia, esta só seria possível por intermédio do aprofundamento das actuais e iníquas medidas de austeridade. E isto leva-me para o segundo ponto.

Em segundo lugar, verifica-se que o nacionalismo propugnado por economistas do PCP não se espelha apenas no plano político das soluções apresentadas mas também na própria análise. É inusitado o facto de OT recorrer a matrizes dinâmicas mas nada dizer sobre as novas relações económicas que Portugal estabeleceria numa situação de abandono da zona euro. E, sobretudo, acerca das condições reais de partida da actual estrutura económica de Portugal.

Nesse sentido, sabendo que:

a) Portugal importa anualmente mais de 50% de produtos com alta e média-alta intensidade tecnológica e que as suas exportações se focam fundamentalmente em produtos com baixa e média-baixa intensidade tecnológica (mais de 60%) (veja aqui);

b) as exportações intra-comunitárias estavam nos 74% em 2011, sendo este número ilustrativo da integração profunda da economia portuguesa na zona económica europeia. Se é verdade que, em 2011, estes 74% representavam uma diminuição dos 75,4% do total das exportações em 2009, não parece que tal pequeno recuo seja demonstrativo de uma ruptura com o padrão de integração de Portugal na economia europeia. No mesmo sentido devem ser vistos os aumentos relativos de exportações portuguesas para outros mercados não-europeus e que encheram as parangonas dos jornais. Por exemplo, se o aumento das exportações para a China cresceu 69,7%, importa ter em mente que o seu peso passou entre 2010 e 2011 de 0,6% para 0,9% do total das exportações. A Argélia também aumentou 66,8% num ano, mas o seu peso continua a ser pequeno: de 0,6% para 0,8% do total das exportações. O mesmo padrão foi conseguido relativamente ao Japão, com um aumento de 50% entre 2010 e 2011 e onde o peso no global de exportações passou de 0,3% para 0,5%. Assim, Alemanha, França e Espanha contribuem, respectivamente, com 13,6%, 12,0% e 24,8% do total de exportações portuguesas (em 2009 eram 13,0%, 12,4% e 27,2%). Portanto, só estes três mercados captaram 50,4% de todas as exportações portuguesas em 2011 (veja aqui, p. 173);

c) Portugal tinha um «passivo externo líquido em 2011 correspondente a 195,8 mil milhões [bilhões] de euros (109% do PIB [Produto Interno Bruto)» (veja aqui) e «entre o fim do 1.º trimestre de 1996 e o fim do 4.º trimestre de 2010 […] os défices acumulados da balança de bens» foram «de cerca de – €234 mil milhões e da balança de rendimentos de cerca de – €61 mil milhões», contrabalançados muito parcialmente pelos excedentes acumulados registados na balança de serviços e na balança de transferências correntes de cerca de €57 mil milhões e €43 mil milhões, respectivamente» (veja aqui);

d) a balança corrente [2] registou entre 2005 e 2011 uma perda acumulada de 55,67% do PIB. E estas perdas não decorrem apenas do facto de Portugal ter um défice persistente nos produtos energéticos (défice em todos os anos deste exercício e que oscilaram entre perdas de 2,9% do PIB em 2009 e 4,7% em 2008). De facto, o saldo acumulado de perdas da balança comercial portuguesa (a agregação da balança de bens com a balança de serviços) andou na casa dos 41% do PIB (um valor longe de ser despiciendo), o que só confirma a dependência externa da economia portuguesa. A balança de capital foi sempre positiva mas nunca superior em cada ano a 1,2% do PIB nacional, portanto incapaz de contrabalançar os défices persistentes da balança corrente. O mesmo se passou no caso das remessas de emigrantes/imigrantes, que, apesar de sempre positiva, nunca ultrapassou o 1,1% do PIB. O que significa que a economia portuguesa está a ser financiada por poupança externa.

e) a formação bruta de capital fixo tem vindo a diminuir significativamente ao longo dos últimos anos, acumulando uma queda de 20,56%. Em 2007: 2,6; em 2008: – 0,3; em 2009: – 8,6; em 2010: – 4,1; em 2011: – 11,4 (veja aqui).

Portanto, tomando em consideração os dados apresentados nos itens de a) a e), como seria possível reindustrializar o país numa base moderna a partir destas condições, que seriam ainda mais agravadas numa situação de isolamento económico?

A tese de que o aumento da competitividade por via da desvalorização cambial resultaria num aporte de excedente passível de ser aplicado numa reindustrialização do país é muito contraditória nos seus fundamentos. Neste ponto gostaria de pedir o máximo de atenção ao leitor. Por um lado, OT parece esquecer o ponto de partida de algumas das características da economia portuguesa, tal como enunciei nos itens a) a e). Ou seja, não basta dizer que Portugal iria tornar-se numa economia competitiva, como faz OT. É preciso tomar em linha de conta os débeis pontos de partida ao nível da produtividade, do investimento e do financiamento externo, que tornam a saída nacionalista uma via suicidária. Por outro lado, e é aqui que se reflecte o outro aspecto da contradição do argumento de OT, a referência que o autor faz às matrizes de input-output e os resultados a que chega partem do pressuposto de uma economia estática; ou seja, considera que as actuais necessidades do país continuariam a ser as mesmas nesse processo de reindustrialização. Temos assim um fenómeno contraditório, onde o débil ponto de partida da economia portuguesa não é equacionado (nem é sequer viável) para um futuro de industrialização nacional e onde, por outro lado, essa industrialização futura é tomada como uma decorrência das necessidades de financiamento da actualidade.

Entretanto, tomemos como hipótese teórica que seria possível industrializar a economia portuguesa fora do euro. Aliás, é essa a hipótese colocada por OT. Neste capítulo, parece-me que OT não toma em linha de conta que as necessidades de financiamento de uma política nacional(ista) de reindustrialização são muito superiores às já actualmente existentes. Ora, se, como OT diz, o país se teria de reindustrializar fora do euro, como isso seria possível aumentando ainda mais as necessidades em outputs provenientes do exterior? Ou seja, se o resultado da saída do euro seria uma subsequente industrialização, como a actual economia portuguesa poderia arrancar para uma onda de reindustrialização, se o ponto de partida se encontra sustentado num passivo externo líquido que ultrapassa os 100% do PIB e numa baixíssima produtividade? Repare-se que não se está aqui a discutir por parte de OT uma via de maior integração económica europeia e de, por exemplo, transferência de fundos para um reinvestimento produtivo na indústria instalada e a instalar em Portugal. Pelo contrário, o cenário equacionado por OT – a saber, uma reindustrialização num país acabado de sair de uma zona económica internacional – necessitaria de um volume de financiamento maciço e muitíssimo superior ao da actual situação.

Uma reindustrialização na base da mais-valia relativa seria impossível nestas condições, por duas grandes ordens de razões:

Por um lado, o financiamento externo em euros ou dólares para a compra de maquinaria de alta intensidade tecnológica, de matérias-primas e mesmo de alimentos e produtos de consumo corrente seria muito mais caro, fruto da desvalorização cambial do escudo. A isto somar-se-iam taxas de juro elevadíssimas nos mercados de dívida. Se a economia portuguesa na actual situação já tem pouca credibilidade internacional junto dos investidores, sem o euro como a segunda moeda de reserva mundial e sem o Banco Central Europeu como entidade de garantia de última instância, a situação seria ainda pior do que já é hoje. No entanto, a via preferida pela esquerda nacionalista não seria esta, mas a da emissão nacional e “soberana” de moeda nacional. Com efeito, a via da emissão de moeda para compensar essa ausência de crédito externo elevaria a já mencionada taxa de inflação de 8-9% a níveis estratosféricos, o que só contribuiria para desacelerar ainda mais a actividade económica. OT fala numa inflação de 8 a 9% no caso de uma saída do euro e tomando como base a emissão de moeda nacional para cobrir os actuais gastos do Estado e actuais necessidades de financiamento da economia. Na realidade, isto não bate certo com a sua proposta de reindustrialização fora do euro. Se o país se reindustrializasse fora do euro e sem acesso aos mercados de dívida pública, a verdade é que, por exemplo, a necessidade de incrementar a compra de maquinaria de alta e de média-alta intensidade tecnológica e a reestruturação do parque industrial português exigiriam somas imensas de emissão de moeda. O que, por seu turno, se reflectiria numa inflação muito superior aos tais 8 a 9% de que fala OT. Portanto, não só o acesso aos mercados financeiros seria inviável como a emissão maciça de moeda nacional não poderia corresponder a uma alternativa economicamente sustentável.

Como esta reindustrialização numa base de incremento da produtividade do trabalho se tornaria impossível, a saída só poderia ser uma: o aprofundamento do actual empobrecimento dos trabalhadores por via da redução da massa salarial e numa escala muito superior, pois só assim se elevaria o excedente económico passível de financiar uma política de reindustrialização. Por isso, a saída do euro não representaria o fim da austeridade mas o seu aprofundamento.

É evidente que não estou aqui a descartar as responsabilidades das políticas económicas seguidas nas últimas décadas (tanto ao nível nacional como europeu) e o seu impacto neste processo. O que me importa é interrogar os senhores que defendem uma saída unilateral do euro sabendo que é com estes dados que se cose a realidade económica portuguesa. Ou seja, se a economia portuguesa já tem dificuldades estruturais profundas ao nível do baixo investimento produtivo com alto valor económico agregado, com um enorme saldo negativo acumulado na balança corrente e na balança comercial, com um passivo externo líquido colossal e com uma concentração de ¾ das suas exportações na União Europeia, tendo tudo isto em conta, como seria possível enxergar um desenvolvimento autónomo e autocentrado?

Não se trata apenas de constatar que a estrutura económica portuguesa está configurada de modo totalmente contrário a uma saída do euro. Trata-se também de reafirmar as interrogações apontadas no início deste artigo e que venho fazendo há mais de meio ano: Por que os defensores de uma saída do euro quase nunca apresentam dados económicos? Por que os defensores de uma saída do euro omitem uma reflexão profunda e detalhada sobre as características da estrutura económica portuguesa? Por que os defensores de uma saída do euro propõem uma via económica totalmente contraproducente para as já de si deterioradas e precárias condições de vida dos trabalhadores portugueses? Por que nunca publicaram até hoje um estudo económico detalhado e sistemático em defesa das suas propostas? Para um assunto desta importância e com os impactos que iria ter, não deixa de ser bizarro o facto de que quem mais tem apresentado elementos para um debate objectivo e sério sobre o assunto sejam os que se opõem a uma deriva nacionalista. Ou, para ser mais exacto, se calhar até nem será bizarro de todo, se tomarmos em consideração que o nacionalismo vive no plano da ideologia e que os propósitos conscientes e inconscientes dos defensores desta via estão longe de se sustentar no plano da realidade.

Notas

[1] Nota para os leitores brasileiros: a batalha de Aljubarrota, travada em 1385, inseriu-se no contexto de uma guerra dinástica e de uma luta social e assegurou a independência de Portugal relativamente a Castela. Tornou-se depois uma das constantes do imaginário nacionalista português.
[2] A balança corrente agrega a balança de bens (exportações e importações) e de serviços (que inclui o turismo e os transportes), a balança de rendimentos (transacções que correspondem a rendimentos decorrentes de activos que residentes possuem no exterior e estrangeiros no território nacional) e a balança de transferências (incluindo as remessas de migrantes).

Leia a 2ª parte deste artigo.

18 COMENTÁRIOS

  1. Ainda não li o texto até ao fim, mas venho desde já subscrever na íntegra o comentário do RG, que transcrevem no início. Digo desde já que eu vejo a classe trabalhadora desses países a Norte como sendo parte da mesma classe que nós no Sul. A questão é que eles, isto é, a maioria dos eleitores moderados que eu conheci na Alemanha/Holanda, não se revêm nisso, sentem-se ao invés “cidadãos” alemães ou holandeses. E a realidade é esta, se por um lado no Passa Palavra se tem combatido o nacionalismo do PCP (que rondará os 4% dos eleitores portugueses), importa muito mais combater o nacionalismo bem mais radical do centro-direita e centro-esquerda nos países que efectivamente dirigem a União Europeia, onde os partidos que detêm as maiorias absolutas não têm sequer a palavra “classe” inscrita nos programas. É uma constatação que vale a pena reforçar, e não é alvejando o mensageiro português que esta teia de factos nórdicos deixa de ser veradeira.

  2. Claro que existe nacionalismo nos países do norte da Europa. Como é óbvio que cá também existe. Agora a tese do anterior comentador é a seguinte: “se os tipos lá acima são nacionalistas então nós temos de o ser ainda mais”. Este é o ponto que muita gente em Portugal não se tem apercebido: quando eu e vários falamos em nacionalismo à esquerda não nos referimos apenas ao processo de o PCP apontar a soberania nacional como pretensa solução à actual situação. A verdade é que a soberania numa multitude de nações livres, independentes e de boas relações é sumamente utópico e só ajuda a esconder a consequência das apostas nacionalistas: transferir o conflito classista para a luta entre as nações. Assim atrelando os trabalhadores portugueses aos patrões portugueses e os trabalhadores alemães aos patrões alemães.

    Por isso a crítica anti-nacionalista nesta fase ser tão importante de modo a que nos próximos anos não assistamos a reedições fascizantes e a regimes que colocariam as nações do sul contra as do norte (e vice-versa). Sempre que os trabalhadores se atrelam ao nacionalismo são sempre eles que mais perdem. Vidas, direitos sociais e políticos, empregos, salários, condições de vida, etc.

  3. Não é preciso ir repescar o conceito fascista de «nações plutocráticas» vs «nações proletárias». A velha sentença de Lenine sobre a «aristocracia operária» comprada pelo imperialismo serve muito bem. O raciocínio de RG parte da noção de que os trabalhadores do norte beneficiam da exploração dos seus congéneres do sul através do poder de compra acrescido que advém da produção de artigos de consumo nas plataformas de mão-de-obra barata criadas pela globalização, das quais a China é o exemplo mais óbvio.

    O que essa ordem de ideias não compreende é que a existência de mão-de-obra barata, onde quer que seja, torna-se imeditamente numa forma de pressão sobre os trabalhadores que auferem salários mais elevados. Á escala europeia isso significa, por exemplo, que cada vitória ganha pelos administradores da Auto-europa portuguesa terá imediatamente consequências para os trabalhadores da VW alemã. De igual modo, serão os portugueses a serem pressionados de cada vez que os administradores arrancar mais qualquer coisa aos operários do Leste.

    Também não se devem esquecer dois outros factores. Artigos de consumo baratos significam a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário, logo, um aumento da mais-valia relativa e a quebra do peso dos salários no Produto. Também devemos ater ás consequências de longo prazo: a tendencia do norte para a desindustrialização, o aumento do desemprego estrutural e uma tendência bastante nítida para a nivelação por baixo das condições de vida dos trabalhadores um pouco por todo o mundo.

  4. De que parte do meu comentário é que extraiu essa tese? Limitei-me a fazer uma provocação, que em boa verdade esperava ter como resposta “não é só nas nações nórdicas, também em Portugal somos governados por uma maioria mais que absoluta (PSD-CDS-PS) que exclui a *luta de classes* e a *classe trabalhadora* dos seus documentos programáticos que o *eleitorado* subscreve”.

    Eu, como boa parte da Esquerda, temos de começar por admitir que não sabemos que caminho trilhar. Exigir o anulamento da dívida é coisa “nacionalista”, é o início de uma “reedição fascizante” que colocaria a nossa “nação” contra as “nações nórdicas”. Nenhuma acção nos pode conduzir por um qualquer túnel do tempo que nos levaria a um ideal futuro socialismo. O ponto de partida tem coisas que não nos agradam, estados-nações, divisões de classe, classes com um lugar contraditório no futuro socialista, etc..

    O que todos queremos é saber como fazer a omolete, e quais teriam de ser os ovos a quebrar. O que vocês têm trazido a público é porque não fazer a omolete e quais são os ovos quebrados em cada caminho. É necessário mas insuficiente!

    Se já seria grande a tarefa de unir os trabalhadores da União Europeia, imaginem o que seria se estes se aventurassem a lançar-se ao socialismo sem os seus companheiros americanos, asiáticos e africanos! Seria apenas uma reedição do nacional-fascismo agora com uma grande nação europeia? Esta é a única questão que vos deixo. E não é coisa pouca. Cumprimentos.

    FR

  5. «O que todos queremos é saber como fazer a omolete, e quais teriam de ser os ovos a quebrar»

    FR, ninguém tem fórmulas mágicas nem mapas do tesouro. Se a história da humanidade é a história das lutas de classes então são elas que criam os factos novos. Ninguém conseguiu prever as formas de luta, os objectivos e as respostas da classe trabalhadora às formas como o capitalismo se organizava em 1917-23 e 1968-75 e a verdade é que, nos contextos de auto-organização, a classe trabalhadora tem conseguido ser muito criativa e capaz de desenvolver novas modalidades de organização da vida social. O papel da esquerda revolucionária é ajudar a que esse processo se possa acelerar e sobretudo, dado o historial conhecido, reflectir sobre as ambiguidades e os alçapões passados.

  6. João, parece-me que leste mal uma parte do texto do Octávio Teixeira. Acho que ele fala de 30% de desvalorização monetária e pressupõe que a compressão salarial equivaleria – num cenário de saída do euro – à taxa de inflação (8 a 9%). E é por isso que defende que as consequências para os trabalhadores seriam, a curto prazo, iguais às do actual ajustamento estrutural em termos de quebra no poder de compra.
    Isto em nada belisca o fundamental dos teus argumentos. Aliás, parece-me que o Octávio Teixeira argumenta aqui com bastante ligeireza e partindo de projecções que me parecem muito duvidosas. Esta ideia de que “a competitividade pelos preços da produção nacional aumentaria cerca de 24%” parece-me excluir todos os cenários desagradáveis previsíveis: aumento dos custos de financiamento e de taxas alfandegárias, severa contracção das exportações para o mercado comunitário, etc.
    Mas o que é realmente desconcertante é o facto de um ponto de vista de classe estar completamente excluído deste cenário. Os trabalhadores pagariam os custos do acréscimo de competitividade da «economia nacional» e, presume-se, o movimento sindical ficaria a ver passar a caravana. Mas alguém acredita que o pessoal papava semelhante ideia? A CGTP acabava logo ali.
    Depois sobra o resto, que é muito. Quem emprestaria dinheiro para a reindustrialização portuguesa? A China? A família do Zedu? Vendia-se o ouro? E será tudo isto possível sem nacionalizar sectores fundamentais da economia? A EDP, desde logo. E a banca? Ficava nas mãos de quem a tem?
    Este capitalismo sem capitalistas assemelha-se bastante àquela cidade em Espanha onde se filmavam os Western Spaghetis.

  7. Caríssimo Ricardo,

    eu também pensei inicialmente o que tu dizes mas repara na frase completa: «uma desvalorização de 30% geraria uma inflação da ordem dos 8/9% (reflectindo o efeito do peso das importações na produção e no consumo), o que significaria, embora não necessariamente, idêntica quebra nos salários reais». Eu entendo a ligação da desvalorização com a “idêntica quebra dos salários”. Uma desvalorização cambial resultaria numa desvalorização dos salários na mesma ordem de grandeza no dia em que saíssemos do euro (e isto tomando os dados como certos o que não me parece nada crível pois vários estudos internacionais mostram precisamente o contrário como apresentarei na segunda parte deste artigo). O que depois se pode dizer é que essa desvalorização dos salários (dito de modo muito grosseiro 1000 euros passariam a “valer” 700) reflectir-se-ia numa igual queda de 30% nos bens de consumo, das rendas das casas, etc. Mas isto é o momento de partida porque logo a seguir para continuar a fabricar bens e produtos em Portugal (e a importar outros) a inflação andaria nesses 8 a 9%. Ou seja a desvalorização nos salários (derivada directamente da desvalorização cambial de 30%) seria acompanhada por uma subida dos preços dos produtos de 8 e 9%. Por isso é que ele diz que o valor da inflação a que chegou reflectiria «o efeito do peso das importações na produção e no consumo». Hoje temos uma inflação entre os 2 e 3%. Tu dirias que a queda dos salários é igual a estes valores? Indo mais longe, tu dirias que a queda dos salários deriva (primordial e direccionalmente) da inflação? Ora, a queda do salário médio em Portugal será de 4,5% para este ano quando a inflação andará a pouco mais de metade disto. Não estou de maneira nenhuma a dizer que não há relação entre taxa de inflação e baixa dos salários. Apenas estou a dizer que não creio que o Octávio Teixeira faça essa ligação tão automática entre ambos os factores.

    A questão ali prende-se portanto com uma desvalorização de 30% da moeda que levaria a um embaratecimento das mercadorias (inclusive da força de trabalho) na mesma ordem e que, dada a balança comercial actualmente existente, isso resultaria subsequentemente numa subida dos preços na ordem dos tais 8 a 9%.

    Admito que possa ter interpretado mal a frase mas foi isto que me pareceu.

    De resto concordo contigo. A CGTP e o PCP querem claramente um capitalismo de Estado. A questão que me incomoda mais neste momento é: porque muita gente da extrema-esquerda que criticou (e muito bem) o soberanismo e o nacionalismo do PCP anda agora mais calada e, em casos extremos, chega mesmo a aceitar a saída do euro como horizonte anticapitalista?

  8. Algumas observações a propósito do comentário de JT.
    A noção de aristocracia operária teve os seus desdobramentos nas teorias terceiro-mundistas, que extrapolaram a categoria de exploração das relações entre classes para as relações entre países ou grupos de países. A filiação destas teorias na noção fascista de uma oposição entre nações proletárias e nações plutocráticas pode ser bem compreendida através da leitura da obra do distinto teórico fascista Mihail Manoilescu, um dos mestres do corporativismo. A este respeito é muito interessante a consulta de Joseph L. Love, Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil, Stanford, California: Stanford University Press, 1996.
    Sob o ponto de vista prático, a fragilidade destas teses é hoje patente quando se observa que os operários dos países mais ricos, que alegadamente beneficiariam dos baixos salários pagos nos países pobres, protestam quando vêem parte dos empregos migrar para esses países pobres.
    O grau de exploração de qualquer colectivo de trabalhadores é definido pelas condições de produtividade a que está sujeito, e se alguns países acumularam mais capital e se tornaram mais ricos foi porque submeteram os seus trabalhadores a um grau superior de mais-valia relativa. É isto que explica o aparente paradoxo de os trabalhadores da Suécia serem mais explorados do que os do Haiti. E se numerosos empregos migram para a China e não para o Haiti, é porque os capitalistas chineses, tanto de Estado como particulares, têm elevado muito as qualificações da sua força de trabalho, e portanto a sua produtividade, e não apenas devido aos baixos salários.

  9. A actual contracção salarial é precisamente a alternativa a uma desvalorização da moeda, por isso é que é uma variável independente da inflacção, com o objectivo de adequar o consumo corrente à balança comercial e de pagamentos.
    Acho que o Octávio Teixeira concebe a coisa à moda antiga: desvaloriza-se a moeda e congelam-se os preços dos bens essenciais (nomeadamente a alimentação, a habitação e os transportes públicos). Os salários reais descem por isso a uma taxa inferior à da desvalorização cambial. O problema é que há muitas mais variáveis que ele não está a ter em conta (neste texto pelo menos).

  10. Caro Ricardo,

    claro que eles congelariam os salários e até os bens de consumo corrente mas depois ocorreria uma explosão do mercado negro. Não por acaso o mercado negro foi uma constante muito forte na URSS, Cuba, etc. No caso mais recente da Venezuela alguns militantes do PCP rejubilaram com o facto do Chavez ter aumentado os salários em creio que 33% (título da notícia). Mas depois no texto vinha também que a inflação teria rondado os 31%… É deste tipo de inflação que teríamos se saíssemos do euro.

  11. A industrialização da China é um fenómeno matizado e sobre o qual me faltarão decerto conhecimentos mais aprofundados, mas, tipicamente, na «divisão internacional do trabalho» emergente, o que se desloca para aquilo que antigamente se denominava como o “terceiro mundo” (entre o capitalista e o bloco soviético) é a fase final do processo produtivo, nomeadamente a montagem de componentes pré-fabricados, frequentemente atribuida a empresas subcontratadas, com o trabalho «intensivo em tecnologia» a permanecer nas fábricas do ocidente.

    Dado que as empresas subcontratadas em questão dispoem de uma produtividade inferior à do ocidente, são apenas os baixos salários que as tornam atractivas, sendo o crescimento inevitável dos «custos unitários do trabalho», à medida que o movimento operário se estrutura e os salários sobem, um factor de preocupação para as multinacionais que para aí deslocam a produção. Isso, e a instabilidade politica, naturalmente.

  12. JT,
    Não pretendo desviar a atenção dos leitores e sair do âmbito deste artigo. Mas a discussão acerca do efeito concorrencial dos baixos salários e a distinção entre a mera competitividade no mercado e a produtividade nos processos de produção interessa ao caso português, e mais ainda interessará se o país se precipitar para fora da zona euro. Por isso, talvez JT e outros leitores estejam interessados em dois artigos de uma série de oito, que em 2010 escrevi para este site, acerca da crise económica mundial. Um desses dois artigos trata especificamente da China:
    http://passapalavra.info/?p=28162
    E o outro, que importa mais directamente à questão em debate, aborda o aumento da produtividade nos países emergentes, incluindo a China:
    http://passapalavra.info/?p=28241

  13. Caro JVA,

    Eu também acho que não leu bem o texto do Otávio Teixeira, nem aliás, a notícia do Público referida. E, na sua resposta ao comentário de RN, parece-me que há uma grande confusão entre três coisas distintas: o salário NOMINAL medido em euros, o salário NOMINAL medido na nova moeda eventualmente adotada, e o salário REAL, que expressa o poder de compra dos trabalhadores e portanto não faz sentido medi-lo em qualquer moeda, mas sim na quantidade de bens que o salário permite comprar.

    Quando o Otávio Teixeira diz que “uma desvalorização de 30% geraria uma inflação da ordem dos 8/9% (refletindo o efeito do peso das importações na produção e no consumo), o que significaria, embora não necessariamente, idêntica quebra nos salários reais.”, parece-me claro que ele quer dizer que a “quebra dos salários reais” seria “idêntica” à inflação adicional gerada pela desvalorização, os tais 8 ou 9%, e NÃO
    que seria idêntica à desvalorização cambial, o que aliás não faria qualquer sentido.

    Portanto o Otávio Teixeira não diz em lugar algum que haverá uma diminuição de 30% dos salários reais, ele diz que talvez, embora não necessariamente, haverá uma quebra de 8 ou 9% do poder de compra dos salários nominais, medidos na nova moeda, como consequência da desvalorização cambial. Estando implícito no texto que ele pressupõe que não haveria novos cortes nos salários nominais depois da saída do euro, pois esse é precisamente um dos objetivos desta, a quebra do poder de compra destes corresponderia exatamente à inflação. O texto parece-me muito claro e não consigo enxergar outra interpretação possível.

    A desvalorização cambial de 30% corresponde à diminuição dos salários nominais medidos em euros, mas todos os preços medidos em euros baixariam; relativamente pouco no caso de produtos com elevado coeficiente de importação, mas muito (quase os tais 30%) nos produtos com baixo coeficiente de importação, por exemplo, numa grande parte dos chamados “serviços”.
    O relativo desfasamento entre a descida dos salários (expressos em euro) e a descida dos preços (expressos também em euros) reflete-se precisamente na inflação, a subida dos preços expressos na nova moeda.
    Apesar de tudo ainda se produz algum valor em Portugal, malgrada a ignorância e desqualificação dos pequenos patrões, a que o João Bernardo atribui tão decisiva importância…

    Por outro lado, os dados citados na notícia do Público não são os da Comissão Europeia mas sim os do Banco de Portugal. O Público menciona nos dois últimos parágrafos que existem dados da Comissão Europeia, mas não apresenta os valores excepto o da previsão para 2012.

    Quando o Otávio Teixeira diz “Mas a redução real dos salários este ano e no próximo é já superior a esse custo”, ele refere-se aos salários REAIS, enquanto que os dados do BdP que você cita se referem à diminuição dos salários NOMINAIS nos últimos três anos; diminuição essa devida aos cortes explícitos nos
    salários dos servidores públicos, aos aumentos dos impostos diretos, e a outras medidas de “austeridade”.
    Os dados da Comissão Europeia são de facto acerca de salários reais (de acordo com o Público), mas não são esses que o Público apresenta.
    Como ao longo desse período houve uma inflação maior ou igual a 2% ao ano, o que dá MAIS de 6% para todo o período, a diminuição dos salários reais teria sido maior ou igual a 14% nos últimos três anos. Repare que estou fazendo uma estimativa POR BAIXO: com os valores corretos da inflação (de que não disponho) e fazendo as contas com exatidão (que não quero fazer), o valor será certamente superior a 14%.

    Não obstante, continua a ser possível defender a sua tese com estes números, pode-se sempre dizer que uma diminuição salarial real de 8% num ano é pior que uma de 14% ao longo de três anos. E também se podem contestar as previsões bastante otimistas do Otávio Teixeira.
    Por outro lado, poder-se-ia também argumentar que a inflação decorrente da adoção de uma nova moeda (“de pechisbeque”) seria concentrada no primeiro ano, nos seguintes a inflação baixaria, até porque o quadro recessivo certamente se iria manter.
    A tese de que a elevada emissão de moeda teria necessariamente como consequência uma inflação “estratosférica” é um postulado monetarista sem qualquer fundamento empírico. Se isto fosse verdade, todos os países ricos (incluindo a zona do euro), que sem excepção aumentaram consideravelmente o seu volume de emissão monetária, estariam agora mergulhados na inflação, quando na verdade a tendência é a oposta.

    Podemos não concordar com a saída do euro, aliás a maioria da população não a deseja e poucos a defendem explicitamente, precisamente por ser uma posição impopular. Mas se ela porventura ocorrer certamente que não vai ser nenhum apocalipse.

  14. Não sendo eu o autor deste artigo, limito-me a algumas breves observações a propósito do antepenúltimo e do penúltimo parágrafos do comentário de Manuel Pedro Canário.
    Contrariamente ao que se supõe, a inflação não consiste numa simples subida dos preços. A inflação consiste numa subida de preços irregular e heterogénea. É irregular porque a sua taxa varia com o tempo; e é heterogénea porque a sua taxa varia consoante os bens. O carácter pernicioso da inflação decorre dessa irregularidade e dessa heterogeneidade, que impedem o dinheiro de cumprir a sua função sinalizadora.
    Por outro lado, a inflação não resulta apenas da emissão monetária, mas da relação entre a taxa da emissão monetária e taxa da produção de bens. Economias com um elevado volume de produção e uma alta produtividade podem, aliás devem, ter uma taxa de emissão monetária superior a economias débeis e pouco produtivas, enquanto são estas últimas e não as primeiras a ser vítimas da inflação.
    Nestes termos, o «postulado monetarista» a que Manuel Pedro Canário se refere é o que pretende travar a inflação travando a emissão pecuniária, e não o contrário, ou seja, a afirmação incontestada de que o excesso de emissão pecuniária provoca a inflação.
    Na realidade, nas últimas décadas a adopção de políticas monetaristas travou efectivamente a emissão pecuniária, e travou igualmente a inflação, no que diz respeito às relações entre particulares e entre particulares e empresas; mas concomitantemente libertou a emissão pecuniária nas relações das empresas entre si, o que explica o enorme desenvolvimento conhecido nas últimas décadas pelos mecanismos do crédito, bem como o carácter inflacionário destes mecanismos.
    Os exemplos históricos, infelizmente abundantes, mostram que o estabelecimento de capitalismos de Estado em economias débeis (como é o caso da portuguesa) e em situações de crise (como seria o caso se Portugal adoptasse uma moeda altamente depreciada no mercado mundial) implica um mecanismo de fuga que consiste na crescente emissão monetária, sem correspondência na capacidade de produção de bens. Precisamente por isso é que nesse tipo de situações, quanto mais se agrava a recessão mais aumenta a inflação, numa espiral viciosa e destrutiva.

  15. Caro Manuel Pedro Canário,

    desculpe pela demora na resposta.

    acho que o João Bernardo ja tocou nalguns pontos muito importantes. Saliento apenas este: o facto de que numa economia fora do euro a emissão de massa monetária cresceria sempre acima da produtividade, o que resultaria numa inflação galopante. E isto aconteceria precisamente pelos motivos que referi no artigo: com um saldo deficitário na balança corrente portuguesa e dado o padrão de importações (onde há uma necessidade enorme de maquinaria e de materiais tecnologicamente desenvolvidos) a única forma de a economia portuguesa continuar a financiar os seus investimentos seria ou através do financiamento externo nos mercados financeiros (o que seria incomportável dada a ausência de confiança que o escudo instilaria nos investidores) ou através da emissão maciça de moeda. Ora, esta iria ser sempre muito superior aos ganhos de produtividade, na medida em que para cobrir o défice da balança corrente actualmente em torno dos 54% do PIB o volume de financiamento para industrializar o país numa via isolada e nacionalista seria colossal. E não haveria aumento de produtividade que conseguisse acompanhar essa emissão monetária.

  16. João Valente Aguiar em 6 de dezembro de 2012 14:27,

    “Por isso a crítica anti-nacionalista nesta fase ser tão importante de modo a que nos próximos anos não assistamos a reedições fascizantes e a regimes que colocariam as nações do sul contra as do norte (e vice-versa). Sempre que os trabalhadores se atrelam ao nacionalismo são sempre eles que mais perdem. Vidas, direitos sociais e políticos, empregos, salários, condições de vida, etc.”

    – você não percebe que o que você defende é que leva ao nacionalismo. Mas você já escreveu demais sobre isso para ser evidente que não vale a pena explicar-lhe porque razão você está enganado.

  17. O nacionalismo existe sempre no capitalismo. Enquanto houver estados há nacionalismo. A questão é que se existir um conjunto de saídas da zona euro a actual crise económica será multiplicada, as medidas de austeridade ampliadas, a repressão aumentada e, no final, os trabalhadores alemães vão para casa dizer que a culpa dessa sua situação será dos portugueses e dos gregos, e estes dirão o inverso. E em vez de se tentar juntar o que realmente lhes é transversal – a sua condição assalariada – para uma luta anticapitalista, a esquerda anda a fomentar a regeneração nacional. Que num contexto de saída do euro só irá acirrar ainda mais o nacionalismo existente. Se hoje o nacionalismo já é o perigo que é, fora do euro e com ressentimentos nacionais a escalar você verá o que é realmente o nacionalismo…

    É o raciocínio análogo aos que chamam nazi à Merkel. Claro que ela é reaccionária mas se as pessoas soubessem o que é realmente o nazismo não diriam essas barbaridades que só servem para desviar a luta dos trabalhadores da necessidade da federalização europeia, da europeização das lutas e da recusa do nacionalismo.

  18. “Enquanto houver estados há nacionalismo.”

    Um exemplo:

    Os Palestinianos não têm um Estado (e portanto são um Território) e veja lá se eles estão dispostos a abdicar de ter um País e um Estado sem dar luta, porventura até ao último homem? Quanto mais lhes negam a possibilidade de fundar um Estado e um País mais dispostos ao radicalismo eles estão.

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