Sem ter conseguido ser plenamente corporativista, o peronismo acabou por parecer um sindicalismo. Por João Bernardo

Salvo duas ou três semiexcepções, tenho-me mantido afastado da publicação e dedicado apenas a ampliar e aprofundar o meu livro sobre o fascismo (Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003). Ora, na versão que agora existe em computador esse livro tem um capítulo inédito sobre o peronismo, que me pareceu interessante divulgar porque ajuda a compreender a influência exercida pelo fascismo de Perón sobre o regime instaurado na Venezuela por Hugo Chávez. Procedi a alterações mínimas, necessárias para que o capítulo seja compreensível fora do contexto em que se insere. De resto, corresponde ao original inédito.

Para os historiadores o peronismo é um assunto escorregadio, por isso evitam defini-lo de maneira límpida, e mesmo naquela época havia quem colocasse um adjectivo antes do substantivo, para lhe esfumar os contornos. O principal chefe comunista, Codovilla, chamou-lhe em 1955 um «Estado corporativo de tipo fascista» [1] e para o sindicalista anarquista José Grunfeld tratou-se de «uma variante crioula do fascismo» [2]. O peronismo constituiu um caso limite no modelo que tenho vindo a testar, porque os quatro pólos indispensáveis à caracterização de qualquer regime fascista — 1) o partido e as milícias, 2) as milícias e os sindicatos, 3) o exército e 4) a Igreja — não se articularam simultaneamente, mas sucederam-se, e por isto, embora fosse um fascismo «a partir de cima», para empregar a classificação de um dos melhores estudiosos do tema [3], o peronismo depressa reuniu as características de um fascismo «a partir de baixo». «Ainda que o justicialismo esteja muito longe de ser um movimento de classe», recordou Perón num opúsculo redigido em 1963, «a reacção oligárquica, com os seus preconceitos, as suas vinganças e os seus ardis, acabou por transformar o “caso argentino” numa luta de classes» [4].

José Uriburu

Na origem do peronismo esteve o pólo do exército. O golpe militar de 1930, levado a cabo por uma minoria de um corpo de oficiais que se mantinha ainda predominantemente favorável ao presidente Yrigoyen e à sua Unión Cívica Radical [5], colocou na presidência o general José Uriburu, partidário de um fascismo conservador, apoiado pela oligarquia agrária e por alguns dos maiores bancos [6], embora os interesses industrialistas não lhe fossem alheios também [7]. Mas, apesar de conservador, tratava-se de um fascismo truculento, mobilizando as diversas organizações e milícias do nacionalismo integralista, que assim adquiriram pela primeira vez uma audiência em todo o país [8]. O golpe militar ocorreu num momento em que o governo radical mostrara a intenção de adoptar uma política de concessões aos trabalhadores [9], e Uriburu, além de se pronunciar contra a lei do salário mínimo e outras leis laborais que haviam sido promulgadas por Yrigoyen [10], criou a Legión Cívica Argentina ou apoiou a sua criação, seguindo o modelo das milícias mussolinianas, e promulgou um decreto facultando-lhe a instrução militar em quartéis [11]. Um historiador escreveu acerca do general Uriburu que «a sua ignorância a respeito do mundo operário era total» [12] e, ao revelar-se favorável apenas à oligarquia, o corporativismo que ele pretendia implantar [13] era congenitamente manco.

Agustín Justo

Minoritário no corpo de oficiais e com escasso apoio civil, Uriburu esteve menos de dois anos à frente do governo e o general Agustín Justo, que lhe sucedeu na presidência, instaurou progressivamente as bases de uma democracia civil tutelada pelos militares, inaugurando um modelo que a Argentina experimentaria repetidamente. Mas entretanto o nacionalismo integralista difundiu-se entre os oficiais, especialmente nas patentes inferiores [14], e, perante o que muitos deles consideraram uma traição aos ideais de Uriburu, o golpe de 1930 foi reencenado treze anos depois, um golpe militar dentro do velho golpe militar. Tal como nas bonecas russas, existia ainda outro golpe em gestação no interior daquele, porque o Grupo de Oficiales Unidos, GOU, que se apresentava como eixo do novo regime e vigilante da sua pureza, continuava a conspirar e constituía uma ameaça permanente. Quando ocorreu o golpe de 4 de Junho de 1943 o GOU contava com cerca de 60% dos oficiais do exército no activo e em Novembro daquele ano um dos seus quatro chefes, o coronel Juan Domingo Perón, gabou-se a um jornalista de que ele controlava 3.300 dos 3.600 oficiais do exército no activo [15]. Em Abril de 1944 Perón, que havia sido nomeado subsecretário da Guerra em Junho do ano anterior, assinou uma medida promovendo a brigadeiros-generais dezassete coronéis do GOU, que ficou assim com a maioria dos generais [16]. É certo que o Grupo se dissolvera formalmente em Fevereiro de 1944 [17], mas isto não significa que desaparecessem na prática as redes de contactos que ele proporcionara.

José Figuerola

O coronel Perón sabia — ele próprio o disse — que «nas revoluções os homens impõem-se a partir da segunda fila e não a partir da primeira» [18] e, acumulando novas funções, passou a ocupar-se em Outubro de 1943 do Departamento Nacional do Trabalho. No ano anterior 90% dos operários implicados em greves tinham visto os seus conflitos serem resolvidos graças à intervenção daquele Departamento [19], mas apesar disto ele permanecera com um âmbito de acção reduzido, pois grande parte da legislação laboral não fora regulamentada nem era aplicada [20]. À frente dos serviços de estatística do Departamento sobressaía José Figuerola, um imigrado espanhol, doutrinador e prático do corporativismo, que fizera a aprendizagem no seu país natal durante o regime do general Primo de Rivera [21]. A estreita ligação que desde então até 1949 Perón estabeleceu com Figuerola representou no plano pessoal a articulação do pólo do exército com o pólo dos sindicatos, que levaria Perón à presidência da República. Rapidamente Perón dotou o Departamento Nacional do Trabalho de poderes efectivos e transformou-o logo em Novembro numa Secretaria do Trabalho e Previdência e depois num Ministério. Além de pôr em vigor leis laborais já existentes, ele acrescentou outras medidas, como férias pagas, regulamentação dos salários e do horário de trabalho, regulamentação do trabalho feminino e infantil, e projectos habitacionais e programas educacionais destinados aos trabalhadores [22]. Ainda não passara um ano e já tinham sido promulgadas quase três dezenas de novas leis relativas a questões de trabalho, assim como a Secretaria já se envolvera em mais de trezentos conflitos laborais, proporcionando a efectivação de cento e setenta e quatro acordos [23]. E como, a partir de Novembro de 1944, foi estabelecido um sistema de tribunais de trabalho munidos de poderes de arbitragem e conciliação nos conflitos laborais [24], sem que o nome surgisse era, na verdade, de um corporativismo que se tratava. Numa alocução proferida no começo de Dezembro de 1943, inspirando-se em «um dos imperativos categóricos da nossa época: o imperativo da organização», Perón delineou um quadro das relações entre patrões, operários e Estado que em nada diferia do corporativismo [25]. «[…] procuramos suprimir a luta de classes, superando-a por um acordo justo entre operários e patrões, sob a protecção da justiça que emana do Estado», foi assim que ele discursou no Primeiro de Maio de 1944 [26]. E menos de quatro meses depois explicou aos patrões, reunidos na Bolsa do Comércio, que o sindicalismo «é a forma de evitar que o patrão tenha de lutar com os seus operários; […] é o meio de chegarem a um acordo, não a uma luta» [27]. Perón esforçava-se por convencer o patronato a dotar-se de organizações correspondentes aos sindicatos operários, embora fracassasse neste intuito [28], assim como mais tarde, já presidente, e apesar de ter recorrido a uma série de siglas, nunca chegou a reunir os empresários industriais numa verdadeira organização de interesses [29]. Foi por não ter conseguido ser plenamente corporativista que o peronismo acabou por parecer um sindicalismo.

17 de Outubro de 1945

Quando uma discórdia entre oficiais levou ao afastamento de Perón e à sua prisão, em 9 de Outubro de 1945, ele beneficiava já de uma enorme base de apoio na classe operária. A jornada de 17 de Outubro de 1945, organizada pelos sindicatos, mas mobilizando também massas de trabalhadores sem filiação sindical, representou o plebiscito das ruas, que se encheram de duzentas mil pessoas e levaram o presidente da República a ceder e a libertar Perón [30]. A determinação popular teve efeitos igualmente sensíveis sobre a esquerda, pois correspondeu a um fracasso do Partido Socialista, que se havia pronunciado contra a manifestação de 17 de Outubro [31], e do Partido Comunista que, tentando afastar definitivamente Perón, se juntara à direita conservadora e radical [32]. Perón triunfou em ambos os lados do espectro político. Seria dele o poder.

Perón chegara ao Departamento Nacional do Trabalho numa época em que o movimento sindical argentino havia já atingido um elevado grau de burocratização. O sindicalismo revolucionário evoluíra da exclusão para a integração ao mesmo tempo que os trabalhadores passavam do estatuto de imigrantes estrangeiros para o de cidadãos. Em 1914 mais de 30% da população tinha nascido fora do país, mas apenas 15% em 1947 [33]. Por si só, no entanto, uma correlação não é uma explicação. O sindicalismo revolucionário mantivera a autonomia originária perante os partidos, nomeadamente os de esquerda, mas a necessidade de requerer o apoio informal de organismos estatais ou até de firmar acordos com o Estado fizera-o perder a independência por este lado. Foi como se a inspiração proudhoniana inicial retomasse a hegemonia na fase senil. A tradição sindicalista revolucionária constituiu um obstáculo à expansão sindical dos socialistas e dos comunistas, enquanto facilitou o enquadramento dos trabalhadores pelos governantes, acabando por degenerar num reformismo corporativo [34]. As relações já estabelecidas pelo Departamento Nacional do Trabalho com os sindicalistas revolucionários foram o campo onde se gerou o peronismo [35], mas se as bases da nova política estavam criadas, Perón soube reconhecê-las e potenciá-las. Quando ele tomou conta da Confederación General del Trabajo, o sindicalismo argentino estava minado pelo processo de burocratização interna, que levara ao flagrante caudilhismo dos dirigentes, e estava debilitado pelas cisões devidas apenas a motivos de política partidária e feitas nas costas dos filiados de base. As assembleias eram cada vez menos frequentadas e, se adoptarmos o índice 100 para 1935, vemos que a participação nas assembleias caíra para um índice 27 em 1942 e 11 em 1943 [36]. Perón não precisou de fundar instituições sindicais novas nem de inventar dirigentes operários, bastou-lhe facilitar a evolução que se vinha a verificar. A Confederación General del Trabajo peronista foi chefiada em boa medida por homens que tinham dado provas no velho sindicalismo, e o expurgo não atingiu toda a antiga geração de dirigentes, mas apenas os comunistas e alguns poucos socialistas, que se recusaram a colaborar com o novo regime [37]. A depuração fez-se tanto mais simplesmente quanto o Partido Comunista e o Partido Socialista estavam ao lado dos conservadores numa política de unidade nacional. Afinal, resumiu um historiador, «a maior parte do movimento sindical existente em 1943 acabou por prestar o seu apoio a Perón» [38].

Esta continuidade no plano sindical reflectia a elevada continuidade que se verificava no próprio tecido da classe operária. É certo que tinham ocorrido mutações. A imigração oriunda da Europa diminuíra consideravelmente e aumentara a migração da província para a capital [39]. Entre 1914 e 1943 a população de Buenos Aires e arredores duplicou, passando de dois para quatro milhões [40]. Ora, na Argentina a migração interna tinha conotações culturais mais acentuadas do que noutros países, porque a divisão entre os provincianos e os habitantes de Buenos Aires, os porteños, era vincada e resultava de tradições muito diferentes, a tal ponto que boa parte da história do país não se pode compreender se não tivermos presente este contraste [41]. Apesar disto, os sindicatos continuaram a recrutar a maior parte dos filiados na classe trabalhadora tradicional [42] e o operariado de novo tipo assinalou-se sobretudo em acções de massa como o 17 de Outubro de 1945, que mobilizaram além dos limites habituais dos sindicatos [43]. Sem estarem enquadrados pelo aparelho sindical, os novos habitantes da grande cidade encontraram em Perón um representante e defensor, e só depois de ele se instalar no poder é que este operariado recente afluiu aos sindicatos [44].

A face de Perón voltada para os trabalhadores tinha um nome — Evita. «[…] iria ser precisamente a plenitude do poder o que impediria o Líder de se manter em contacto directo com o povo», escreveu ela. «Resolvi ser “Evita” para que, por meu intermédio, tivesse o povo, e especialmente os trabalhadores, desimpedido o caminho que levava ao Líder» [45]. O historiador não deve ter aqui medo de cair na petite histoire, porque Eva Perón pertence à verdadeira história. Não foi apenas uma mulher bonita. A tenacidade que demonstrara para subsistir como actriz de terceira ordem sem resvalar para outra profissão manifestou-a também para construir um aparelho político próprio [46], assente em dois pilares: a Fundação de Ajuda Social, criada em 1948, e o Partido Peronista Feminino, fundado no ano seguinte. Este partido assinalou a entrada oficial da mulher na política organizada, mas era um estranho feminismo, que desejava manter a mulher nas funções tradicionais, e para fixá-la ao lar Eva Perón concebeu o projecto, jamais realizado, de o Estado pagar a todas as mães de família um salário pelas lides domésticas [47]. «O feminismo não é incongénere com a natureza da mulher», escreveu Eva Perón, mas que «natureza» seria essa? Considerando que «o natural na mulher é a entrega de si mesma, a entrega por amor», ela concluiu que «o melhor movimento feminista do mundo […] seria […] aquele que se entregasse por amor à causa e à doutrina de um homem», e que outro senão o general Perón? Para ser ainda mais clara, ela insistiu que «nenhum movimento feminista alcançará no mundo glória e eternidade se não se devotar à causa de um homem» [48]. Era a política transposta para o nível sentimental dos folhetins radiofónicos em que Eva fizera carreira. Parece que a população confundia o Partido e a Ajuda Social, porque Eva Perón observou que «os “descamisados” não distinguem ainda a diferença que vai entre a organização política a que presido e a minha Fundação» [49]. As obras de benemerência estatal foram multiplicadas pela propaganda que as difundia, e a importância política da relação entre Perón e Evita apenas se explica pela utilização das novas técnicas radiofónicas [50]. Evita foi um Goebbels muito mais eficaz. Ela foi uma voz que mobilizou os sem voz, as mulheres e os trabalhadores, os mais humildes de todos, os descamisados. Na figura de Evita projectaram-se anseios sociais não formalizados pela consciência política, tal como em qualquer vedeta de nascimento modesto se corporalizam as aspirações de muita gente.

A legislação social que celebrizara a actuação de Perón enquanto estivera à frente da Secretaria e do Ministério do Trabalho não se interrompeu ao longo do regime. Aliás, durante a campanha para a eleição presidencial de Fevereiro de 1946, o presidente Farrell promulgou uma lei que Perón havia já anunciado alguns meses antes, fixando um salário mínimo, estabelecendo que todas as empresas industriais e comerciais pagassem anualmente aos seus empregados um subsídio equivalente ao montante do salário mensal e decretando outras medidas do mesmo teor [51]. Os sindicatos encontravam-se bem respaldados quando incluíram na plataforma eleitoral do Partido Laborista — que constituía então o principal esteio político de Perón — além da redução do horário de trabalho, a participação dos trabalhadores nos lucros comerciais e industriais [52]. Em resposta ao decreto de Farrell, os patrões organizaram um lock-out que paralisou durante três dias a economia do país [53], e assim a campanha de Perón assinalou-se pela luta entre a elite e os descamisados. E foi tanto mais fácil a Perón aparecer como o único defensor dos humildes quanto socialistas e comunistas se haviam juntado aos partidos burgueses, incluindo os conservadores que representavam os grandes proprietários rurais [54], numa coligação que, entre outras fontes de financiamento, recebera dinheiro da associação do grande patronato [55]. Naquela ocasião o Partido Comunista foi a ponto de declarar que o lock-out patronal, «no seu conjunto e na sua grande maioria, teve e tem um conteúdo de luta contra o fascismo» [56]. Mais tarde, Silvio Frondizi pretendeu que «a política do coronel Perón, de cariz francamente demagógico, consiste em empurrar a oposição, especialmente as forças de esquerda, em direcção à direita. Deste modo o peronismo surge como o único movimento social revolucionário do país […]» [57]. Talvez Silvio Frondizi tivesse razão, mas parece-me mais exacto dizer que as forças de esquerda se moveram para a direita por si próprias. Aliás, já anteriormente, enquanto Perón chefiara a Secretaria do Trabalho e Previdência, o Partido Comunista se esforçara vãmente por convencer os trabalhadores de que os sindicatos deviam abandonar as reivindicações imediatas de aumentos salariais e melhoria das condições de vida para se concentrarem na organização de uma greve geral, não contra os patrões, mas contra o governo [58]. Chegara-se a uma situação em que os patrões eram antifascistas e os trabalhadores eram fascistas. Sem receio de ser desmentida, Eva Perón pôde ironizar à custa dos comunistas e dos socialistas. «Está vívida na memória de todos a obscura ligação desses pretensos próceres trabalhistas com a mais autêntica oligarquia. […] Deixaram com isso patente, aos olhos do povo, ser uma mentira grosseira a aversão que esses falsos dirigentes socialistas e comunistas votavam ao capitalismo» [59]. Perante a indefinição política e social da oposição, parecia clareza a ambiguidade do peronismo.

A jornada de 17 de Outubro permitiu a Perón chegar ao poder, mas não era apenas sobre o apoio operário que ele queria alicerçar a sua presidência. Logo que triunfou nas eleições de Fevereiro de 1946, Perón pretendeu dar estabilidade a uma base social ampla que incluísse, além dos sindicatos, o exército e boa parte dos patrões. Com efeito, o desenvolvimentismo e a industrialização trouxeram-lhe as simpatias de um sector empresarial novo, interessado nas operações do Instituto Argentino de Promoción del Intercambio, IAPI, a quem cabia o controlo do comércio externo. Tal como funcionou até 1949, o IAPI fixava os preços internos de compra dos bens para exportação e negociava os seus preços de venda no mercado externo, assim como determinava quais os artigos a importar [60]. Isto significa que o IAPI, sendo o único comprador da produção agrícola do país e o seu único vendedor ao estrangeiro, estava em posição para desviar capitais da oligarquia agrária para os investimentos industriais [61] e, se contava com a aprovação dos empresários emergentes, sofria também a hostilidade dos latifundiários. Em resposta à política de preços aplicada pelo IAPI, os criadores de gado diminuíram as vendas assim como os grandes proprietários de terras reduziram a superfície cultivada [62]. É certo que não convém exagerar, apesar das declarações azedas de um e outro lado. Perón não levou a oligarquia rural à ruína nem fez a reforma agrária que prometera [63], e a oligarquia soube corresponder, como mostrou a mudança de direcção da Sociedade Rural Argentina, a associação dos grandes donos de terras e gado, que se mostrou disposta a colaborar com o regime [64]. Mas, feitas as contas, não parece haver dúvida de que o peso económico e o prestígio político da oligarquia rural ficaram bastante afectados.

O exército contou-se entre os beneficiários dessa orientação económica, e desde o golpe de 1943 a militarização do regime implicara a militarização da produção industrial. Aliás, já a partir do final da década de 1920 o exército vinha a ampliar os seus interesses fabris [65], e em 1941 havia sido criada a Dirección General de Fabricaciones Militares, combinando capitais estatais e privados para proceder ao desenvolvimento de oitenta fábricas, cuja produção interessava às forças armadas [66]. Entre 1941 e 1946 a despesa pública aumentou 123,7% e as despesas militares, que em 1941 tinham sido responsáveis por 21,2% da despesa pública, subiram para 44,3% em 1946 [67]. A chegada de Perón à presidência ampliou as oportunidades de intervenção económica das forças armadas, que através da Dirección General de Fabricaciones Militares desempenharam um papel de relevo no primeiro Plano Quinquenal [68].

Miguel Miranda

Apresentado em Outubro de 1946, este Plano deveu-se em boa medida à inspiração de Figuerola [69]. Mas a figura central do desenvolvimentismo de 1946 até ao início de 1949 foi o empresário Miguel Miranda, nomeado presidente do Banco Central e depois presidente do Conselho Económico Nacional, ao qual cabia a coordenação da política económica e financeira, além de director do IAPI. Miranda foi a personalidade mais expressiva de uma nova camada de capitalistas devotados a Perón [70], que agrupava num extremo verdadeiros industriais e no outro simples cavalheiros de indústria [71]. Nas palavras de um historiador, coube-lhe organizar e dirigir «o financiamento de um programa destinado a conservar o apoio do exército, dos descamisados e da oligarquia industrial» [72]. Só o crescimento económico, permitindo o acréscimo dos lucros, possibilitaria o aumento dos salários e construiria as bases de uma harmonia social, baseada na convergência de interesses entre os chefes de empresa, os militares e as burocracias sindicais.

Perón ditou pela primeira vez em Setembro de 1945 uma palavra de ordem que haveria de repetir frequentemente, «de casa para o trabalho e do trabalho para casa» [73]. Já não seria necessário reivindicar na rua nem à porta das fábricas porque o governo se encarregaria de realizar os anseios populares, e à legislação anterior somou-se em Maio de 1946 um sistema generalizado de segurança social [74]. De 1943 para 1946 o salário real médio na indústria aumentou cerca de 7% [75]; e calcula-se que o índice do custo de vida, sendo 100 em 1943, situar-se-ia entre 350 e 400 em 1950, mas entretanto o índice salarial dos trabalhadores da indústria, sendo 100 em 1943, teria subido para cerca de 500 em 1950 [76]. Mesmo apesar do declínio económico iniciado em 1949, no final de 1955 os salários dos trabalhadores qualificados e não qualificados tinham aumentado mais do que o custo de vida [77]. Não espanta que se multiplicasse o número de filiados da Condeferación General del Trabajo [78]. É certo que continuava a haver greves e alguns sectores do operariado, junto a quem a influência socialista fora forte, mantinham-se hostis ao regime [79]. Mas pode afirmar-se que, em geral, os trabalhadores se reconheciam no peronismo. Pareciam criadas as condições para a estabilização do regime.

Notas

[1] Citado em J. Godio (1973) 89.
[2] Citado em L. Mercier Vega (1975) 94.
[3] M. Maruyama (1963) 165-167. Ver ainda as págs. 27, 32, 33, 65, 67, 72 e 76.
[4] J. Perón (1994) 160.
[5] M. Goldwert (1972) xvi, 31. Num relato escrito em 1931 acerca da sua participação na revolução do ano anterior, Perón reconheceu que os oficiais insurrectos foram uma pequena minoria, embora acrescentasse que poderiam ser maioritários se o golpe tivesse sido mais bem preparado. Ver J. Perón (1994) 54 e 81. Quanto ao facto de os yrigoyenistas predominarem entre os oficiais do exército, ver igualmente R. Puiggrós (1988) 61.
[6] G. I. Blanksten (1953) 37, 309, 370.
[7] P. H. Lewis (1992) 85.
[8] M. Goldwert (1972) 20, 39.
[9] Id., ibid., xvi, 21, 32.
[10] G. I. Blanksten (1953) 36, 37, 223.
[11] Id., ibid., 37, 223; R. H. Dolkart (1993) 68; M. Goldwert (1972) 39; P. H. Lewis (1992) 119.
[12] H. Campo (1983) 59.
[13] G. I. Blanksten (1953) 36; R. H. Dolkart (1993) 67.
[14] R. H. Dolkart (1993) 91; M. Goldwert (1972) 32, 55, 56, 57, 68.
[15] G. I. Blanksten (1953) 52; M. Goldwert (1972) 68, 87; L. Mercier Vega (1975) 32. Parece que a sigla poderia significar também Grupo Obra Unificación ou ¡Gobierno! ¡Orden! ¡Unidad! Ver R. Puiggrós (1988) 125.
[16] G. I. Blanksten (1953) 54-55.
[17] Id., ibid., 313, 330. R. Puiggrós (1988) 135-136 afirmou que o GOU «deixara praticamente de funcionar» no final de 1943.
[18] J. Perón (1994) 89.
[19] H. Campo (1983) 51. Se tomarmos como critério as acções de greve a percentagem é 55%, o que mostra que aquele órgão estatal interveio sobretudo nos conflitos que mobilizavam maior número de operários. Ver igualmente P. H. Lewis (1992) 123 e C. H. Waisman (1987) 135.
[20] G. I. Blanksten (1953) 261; P. H. Lewis (1992) 140.
[21] G. I. Blanksten (1953) 299; H. Campo (1983) 52; P. H. Lewis (1992) 157; L. Mercier Vega (1975) 36, 69.
[22] G. I. Blanksten (1953) 262.
[23] M. Goldwert (1972) 88. Ver também L. Mercier Vega (1975) 41.
[24] G. I. Blanksten (1953) 265.
[25] J. Perón (1994) 99-108. A frase citada encontra-se na pág. 103 (sub. orig.).
[26] Citado em H. Campo (1983) 139.
[27] Citado em L. Mercier Vega (1975) 39. Ver também P. H. Lewis (1992) 145-146 e C. H. Waisman (1987) 170-171.
[28] H. Campo (1983) 152-154, 160-164, 168; P. H. Lewis (1992) 147.
[29] P. H. Lewis (1992) 155, 172-174; C. H. Waisman (1987) 185.
[30] H. Campo (1983) 217-220, 239; M. Goldwert (1972) 91; L. Mercier Vega (1975) 48-49.
[31] G. I. Blanksten (1953) 61; H. Campo (1983) 214.
[32] R. Puiggrós (1988) 52, 55, 134, 138, 140, 142, 144.
[33] L. Mercier Vega (1975) 66.
[34] H. Campo (1983) 11 e segs., 47, 63-64, 92-94, 108 e segs., 119, 182, 192-193.
[35] Id., ibid., 112, 121. «[…] muitos dos traços que haveriam de caracterizar o sindicalismo peronista», resumiu Hugo del Campo em op. cit., 116, «apareciam já no sindicalismo anterior […]».
[36] Id., ibid., 48.
[37] Id., ibid., 119 e segs. passim. Numa perspectiva contrária, G. I. Blanksten (1953) 55-56 e 320-321 pretendeu que os dirigentes sindicais anteriores a 1943 se opuseram ao peronismo, tendo sido afastados dos seus postos, substituídos por fiéis ao novo regime e enviados para campos de concentração. Ver igualmente M. Goldwert (1972) 88 e L. Mercier Vega (1975) 42.
[38] H. Campo (1983) 187. Ver também as págs. 191-192.
[39] Id., ibid., 35; M. Goldwert (1972) 33; L. Mercier Vega (1975) 66, 74.
[40] M. Goldwert (1972) 33.
[41] G. I. Blanksten (1953) 17 e segs.
[42] H. Campo (1983) 171 e segs., 191-192.
[43] Id., ibid., 239.
[44] Id., ibid., 37, 191; M. Goldwert (1972) 78, 96; P. H. Lewis (1992) 119. Todavia, C. H. Waisman (1987) 226-227 pôs em dúvida que os migrantes internos tivessem constituído a base mais significativa do peronismo.
[45] E. Perón [s. d.] 79, 83. Ver também as págs. 98, 139 e 140.
[46] G. I. Blanksten (1953) 323.
[47] E. Perón [s. d.] 283, 287, 289-290, 311-312.
[48] Id., ibid., 59-60 (sub. orig.). Para uma crítica ao feminismo proposto pelas mulheres que querem elas próprias ser homens ver a pág. 276.
[49] Id., ibid., 304.
[50] L. Mercier Vega (1975) 45.
[51] G. I. Blanksten (1953) 69, 263; H. Campo (1983) 234.
[52] G. I. Blanksten (1953) 64. Num discurso proferido diante de uma assembleia de patrões em Agosto de 1944 Perón elogiara certos capitalistas europeus que, para converterem os seus operários em «verdadeiros colaboradores e cooperadores», «no final do ano, em vez de lhes darem um subsídio, dão-lhes uma acção da fábrica». Citado em L. Mercier Vega (1975) 41.
[53] G. I. Blanksten (1953) 69; H. Campo (1983) 235.
[54] A este respeito, H. Campo (1983) 232 comentou que «o evidente conteúdo de classe adquirido pelo confronto desencadeado pelas ambições políticas de Perón levaria ao suicídio histórico das esquerdas argentinas, destinado a perdurar muitas décadas». Acerca da aliança do Partido Comunista com os representantes políticos do grande capital agrário ver também R. Puiggrós (1988) 52-53, 142, 144 e C. H. Waisman (1987) 174.
[55] P. H. Lewis (1992) 154.
[56] Citado em H. Campo (1983) 236.
[57] Transcrito em O. M. Pipino (1979) 201.
[58] R. Puiggrós (1988) 55, 58, 138, 140.
[59] E. Perón [s. d.] 111 (substituí uma palavra que não é usada em Portugal). «[…] aqui, no nosso país, dizer “oposição” vale como dizer “oligarquia”», escreveu Eva Perón, acrescentando que «quando falo em oligarquia abranjo todos os que, em 1946, se opuseram a Perón: conservadores, radicais, socialistas e comunistas». Ver as págs. 307 e 308 (introduzi algumas modificações na tradução brasileira para adaptá-la ao uso corrente em Portugal). Num opúsculo escrito em 1963 Perón vituperou «o demoliberalismo e a oligarquia autóctone, unidos ao comunismo e ao imperialismo capitalista, numa presumida união democrática, organizada e financiada a partir do exterior». Ver J. Perón (1994) 148 (sub. orig.).
[60] G. I. Blanksten (1953) 244-245; M. Goldwert (1972) 107-108; P. H. Lewis (1992) 160; L. Mercier Vega (1975) 72.
[61] H. Gambini (1983) 123, 130; M. Goldwert (1972) 107-108, 152; P. H. Lewis (1992) 160.
[62] P. H. Lewis (1992) 163, 189-190; C. H. Waisman (1987) 63. Numerosos dados em O. M. Pipino (1979) 130-134 e 153-158.
[63] H. Gambini (1983) 115-117, 146; P. H. Lewis (1992) 203; L. Mercier Vega (1975) 125. No entanto, Paul Lewis em op. cit., 291-292 assinalou que as pressões exercidas pelo IAPI sobre o mercado levaram numerosos grandes proprietários a vender as terras aos caseiros.
[64] G. I. Blanksten (1953) 249-251; H. Gambini (1983) 118-121; P. H. Lewis (1992) 155, 163; L. Mercier Vega (1975) 100.
[65] P. H. Lewis (1992) 93.
[66] M. Goldwert (1972) 83; R. Puiggrós (1988) 123.
[67] M. Goldwert (1972) 83-84. Segundo P. H. Lewis (1992) 95, as despesas militares representaram 27,8% do orçamento do governo em 1942 e 50,7% em 1946.
[68] M. Goldwert (1972) 101-102.
[69] G. I. Blanksten (1953) 254, 299; H. Gambini (1983) 74-75; P. H. Lewis (1992) 157-158; L. Mercier Vega (1975) 37.
[70] H. Gambini (1983) 122-123; M. Goldwert (1972) 107; P. H. Lewis (1992) 155-156, 178-179.
[71] H. Gambini (1983) 152; M. Goldwert (1972) 105. C. H. Waisman (1987) 89, 138 e 184 defendeu que, entre os industriais, Perón contara apenas com o apoio de patrões das novas empresas médias e pequenas cuja produção se destinava a substituir as importações e só poderiam subsistir amparados por um regime proteccionista.
[72] M. Goldwert (1972) 107.
[73] H. Campo (1983) 216. Ver também R. Puiggrós (1988) 176.
[74] G. I. Blanksten (1953) 264.
[75] P. H. Lewis (1992) 141.
[76] G. I. Blanksten (1953) 269. No entanto, L. Mercier Vega (1975) 127 pretendeu que o índice do custo de vida passara de 100 em 1943 para 297 em 1950, 406 em 1951 e 563 em 1952, enquanto os salários teriam aumentado 310% no mesmo período. Por seu lado, P. H. Lewis (1992) 182 e 183 afirmou que entre 1946 e 1950 os salários reais na indústria aumentaram cerca de 33% e, se incluirmos os benefícios adicionais, o aumento teria sido de 70%. Mas os preços dos bens de consumo mais do que triplicaram entre 1946 e 1949.
[77] M. Goldwert (1972) 147.
[78] Segundo id., ibid., 33, a Confederación General del Trabajo teria cerca de 250.000 filiados em 1942, mas G. I. Blanksten (1953) 319 indicou que ela anunciara um pouco mais de 330.000 filiados por ocasião do golpe militar de 1943. Por seu lado, R. Puiggrós (1988) 174 pretendeu que no período entre 1943 e 1945 a Confederación passara de 80.000 filiados para 500.000. H. Gambini (1983) 150 escreveu que no final de 1951 estava sindicalizado 70% do operariado argentino, correspondente a cerca de 5 milhões de pessoas, e E. Perón [s. d.] 119 referiu 4 milhões de membros da Confederación General del Trabajo. Todavia, George Blanksten em op. cit., 322 considerou que no início da década de 1950 a central sindical contava com 800.000 filiados, cerca de dois terços do operariado. Segundo C. H. Waisman (1987) 189 e 193, o número de sindicalizados em 1945 era 20% superior ao que fora em 1941 e cresceu cerca de 600% entre 1945 e 1951.
[79] G. I. Blanksten (1953) 326-327.

Referências

George I. BLANKSTEN (1953) Perón’s Argentina, Chicago: The University of Chicago Press.
Hugo del CAMPO (1983) Sindicalismo y Peronismo. Los Comienzos de un Vínculo Perdurable, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.
Ronald H. DOLKART (1993) «The Right in the Década Infame, 1930-1943», em Sandra McGee Deutsch e Ronald H. Dolkart (orgs.) The Argentine Right. Its History and Intellectual Origins, 1910 to the Present, Wilmington, Delaware: Scholarly Resources.
Hugo GAMBINI (1983) Las Presidencias Peronistas. La Primera Presidencia de Perón. Testimonios y Documentos, Buenos Aires: Centro Editor de América Latina.
Julio GODIO (1973) La Caída de Perón, de Junio a Setiembre de 1955, Buenos Aires: Granica.
Marvin GOLDWERT (1972) Democracy, Militarism, and Nationalism in Argentina, 1930-1966. An Interpretation, Institute of Latin American Studies, University of Texas, Austin e Londres: The University of Texas Press.
Paul H. LEWIS (1992) The Crisis of Argentine Capitalism, Chapel Hill e Londres: The University of North Carolina Press.
Masao MARUYAMA (1963) Thought and Behaviour in Modern Japanese Politics, Londres: Oxford University Press.
Louis MERCIER VEGA (1975) Autopsia de Perón, Balance del Peronismo, Barcelona: Tusquets.
Eva PERÓN [s. d.] A Razão de Minha Vida, Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
Juan PERÓN (1994) Tres Revoluciones Militares, Buenos Aires: Corrientes.
Ovidio Mauro PIPINO (1979) 1946-1955: La Década Fatal. Origen del Colapso Nacional, Córdoba: ed. do autor.
Rodolfo PUIGGROS (1988) El Peronismo: Sus Causas, Buenos Aires: Puntosur.
Carlos H. WAISMAN (1987) Reversal of Development in Argentina. Postwar Counterrevolutionary Policies and Their Structural Consequences, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.

Leia aqui a 2ª parte deste artigo.

8 COMENTÁRIOS

  1. Valeu por trazer essas discussoes ao Brasil. Quem é que entende o peronismo? Acho que nem mesmo os argentinos(as). Gosto bastante da postura e dos textos do John William Cook, “delegado” do Perón, principalmente quando estava em Cuba. Mas essa é outra estória… o que eu queria comentar sao os vínculos peronismo e lulismo, ou seja, que o Lula e o Pt sao mais peronistas que “los K”:)
    Espero as outras partes…

  2. João, me foi recomendado por amigos porteños politólogos (palavra bem argentina) o livro “Estudios sobre los orígenes del peronismo”, de M. Murmis e J.C. Portantiero. Ainda não o li inteiro, mas na introdução se comenta que é uma obra que, ainda que não sustente as hipóteses hoje mais em voga, foi essencial para a formação deste campo de estudos. Você conhece a obra? Tem alguma opinião a respeito?

  3. Lucas,
    Não conheço o livro, mas hei-de conhecer, depois do que você me diz. Muito obrigado pela indicação.

  4. Boa Tarde,
    João Bernardo.

    No texto entre a nota 33 e 34, há a seguinte frase: “Foi como se a inspiração proudhoniana inicial retomasse a hegemonia na fase senil.” Por que fazes este comentário, ja que não tenho conhecimento grande da obra de Proudhon?
    E qual seria uma postura adequada de um anticapitalismo consequente num fascismo como este?

  5. João Ilha,
    A justificação dessa passagem encontra-se na n. 34, toda ela referente ao livro de Hugo del Campo mencionado na bibliografia. Certamente não será difícil encontrar a obra em bibliotecas no Brasil. Especialmente importante é a pág. 94, onde, referindo-se aos sindicalistas anarquistas, Hugo del Campo escreveu: «sus constantes esfuerzos por mantener la independencia del movimiento sindical frente a los partidos políticos — que se había transformado, de hecho, en abierta hostilidad hacia socialistas y comunistas — había contribuído a que la inserción de éstos en el movimiento obrero sólo se lograra de forma tardía y superficial, y ello es uno de los factores que sin duda facilitaría la tarea al peronismo». Ora, o resultado desta recusa da acção política reflecte o que sucedera com o próprio Proudhon, cuja herança é uma das mais ambíguas do movimento operário. Numa espécie de não-artigo que publiquei há seis meses neste site (http://passapalavra.info/?p=63916 ) abordei muito de passagem esta questão, a propósito do nacional-bolchevismo e em geral do socialismo nacionalista. Para compreender melhor o problema será bom recordar que na secção francesa da Associação Internacional dos Trabalhadores a liquidação política dos proudhonianos não se deveu aos discípulos de Marx, que praticamente não estavam então representados em França, mas ao grupo dos socialistas antiautoritários e, portanto, hostis ao marxismo, entre os quais Varlin foi a figura preponderante. Isto ajuda a situar politicamente o proudhonismo.
    Quanto à sua segunda pergunta, como posso responder-lhe? O passado passou, é impossível encená-lo de novo, e a história das lutas sociais serve para analisarmos as nossas derrotas e as contradições que não conseguimos superar. A questão que eu coloco a mim próprio é a de saber qual será a postura adequada de um anticapitalismo consequente nas actuais democracias. Ora, quando vejo a extrema-esquerda, aquela mesma em que eu participo, substituir a perspectiva de classes pelo multiculturalismo, aceitar a ecologia e o misticismo da natureza e confundir exploração com parasitismo e exploradores com banqueiros, quando vejo isto penso que os anticapitalistas estão hoje enleados numa teia não menos complexa e colocados numa posição não menos incómoda do que estavam na Argentina há sessenta ou setenta anos atrás.

  6. Curioso. Evita Perón antecipou em alguns anos a reivindicação feminista de “salários para o trabalho doméstico” pautada por Selma James (http://en.wikipedia.org/wiki/Selma_James), Silvia Federici (http://en.wikipedia.org/wiki/Silvia_Federici) e Mariarosa Dalla Costa (http://libcom.org/tags/mariarosa-dalla-costa).

    Eis alguns artigos sobre esta reivindicação:

    http://nbjournal.org/2007/07/selma-james-and-the-wages-for-housework-campaign/

    http://en.wikipedia.org/wiki/International_Wages_for_Housework_Campaign

    http://caringlabor.files.wordpress.com/2010/11/federici-wages-against-housework.pdf

    Não por acaso uma conhecida feminista anticapitalista, Angela Davis, foi contrária à campanha, optando por avançar a pauta da ampliação dos serviços sociais (creche, escola, etc.) e inclusão nestes serviços de outros tipicamente domésticos (o que chama de “socialização do trabalho doméstico”):

    Woman, race and class (Angela Davis)
    http://www.marxists.org/subject/women/authors/davis-angela/housework.htm

  7. Proletários: “de casa para o trabalho e do trabalho para casa”.
    Proletárias: “sala, quarto, cozinha, cama e mesa – apenas casa”.
    Eis a ‘antecipação’ – aliás, corporativo-populista – da ‘reivindicação feminista’ ofertada por Eva Braun [sorry, Perón]…

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