A telenovela estraga os actores e o público. Com maus actores e mau público não há teatro. Sem teatro, a comunidade vê-se privada de um poderoso instrumento de confronto, reflexão e transformação. Por Manuela de Freitas

Cada sociedade tem o teatro que merece.
Federico Garcia Lorca

O actor é o membro da comunidade que, partilhando as suas inquietações e paixões, tem como profissão contar histórias que interessam a todos, comovendo-os, divertindo-os, inquietando-os e confrontando-os. Para as contar bem, aprende técnicas, como qualquer profissional. Exercita o corpo e a voz, para que se oiça e se perceba o que diz; para que se apreenda todo o sentido do que diz; para incorporar os textos e não os papaguear (etimologicamente, decorar significa “aprender com o coração”); para poder gritar e não ficar rouco, atirar-se pelo ar e não se magoar, correr e não cair do palco abaixo, agredir e ser agredido sem ferir nem se ferir.

À esquerda, Helene Weigel em A Mãe de Bertolt Brecht. À direita, uma actriz talentosa que se iniciou num dos melhores grupos de teatro portugueses e que agora é vedeta de telenovela.
À esquerda, Helene Weigel em A Mãe de Bertolt Brecht. À direita, uma actriz talentosa que se iniciou num dos melhores grupos de teatro portugueses e que agora é vedeta de telenovela.

Para que o público receba com a inteligência, os sentidos e a emoção o que o actor lhe propõe, este vai buscar às outras artes, às ciências, às filosofias, aos rituais religiosos e a todas as formas de cultura, as técnicas que o ajudam a conhecer-se melhor e a melhor utilizar o seu pensamento, os seus sentidos e emoções, fazendo deles matéria de criação. Vivendo e convivendo com o que é, o que recusa, o que teme, o que deseja, é atento como uma antena e nada lhe é estranho ou alheio. Confronta-se com as suas capacidades e incapacidades, vícios e virtudes e torna-se uma espécie de base de dados a que vai buscar tudo o que serve para dar vida a cada nova personagem. Do seu encontro com ela o actor cria uma terceira entidade, única e irrepetível. Procurando o que a personagem tem de essencial, quais os mais significativos e universais vectores de humanidade que nela se manifestam, é sempre também ele e não outro, com o seu corpo, emoções, inteligência, memórias, experiências e opções. Não se esconde nem imita ninguém. Vive até às últimas consequências a parte de si que dá forma à personagem e os conflitos em que ela se inscreve. Não aceitando como a “sua verdadeira personalidade” a imagem estereotipada que a sociedade criou para ele, ou que ele criou, consciente ou inconscientemente, para funcionar na sociedade, passa por toda a espécie de experiências físicas, mentais e emocionais para, em cada dia, poder estar à frente do público, inteiro e em carne viva. Tão humano e ao mesmo tempo tão fora do quotidiano, do “real” estereotipado, que se torna arquetípico representante da humanidade que com ele se identifica e se põe em causa.

Se tudo isto implica uma permanente vigilância e disponibilidade, um estar sempre a começar do princípio, a percorrer caminhos desconhecidos de autoconhecimento, de relacionamento e de expressão, implica também uma ética. Matéria-prima de criação artística, instrumentista virtuoso cujo instrumento é ele próprio, o actor sabe que tem de se enriquecer como ser humano, tem de fazer escolhas e de se exprimir cada vez melhor. Para ter coisas importantes a dizer aos outros e dizê-las bem para que eles as aceitem e as utilizem. Para contar tão verdadeira e profundamente uma história que a torne universal. Para “acontecer” – estar presente inteiramente num espaço e num tempo – e saber levar o público a “acontecer”, não assistindo, passivo, a uma exibição, mas sendo co-criador de um acto de vida único e irrepetível. Vendo, ouvindo, sentindo e pensando o que lhe diz respeito e, assim, aprendendo, tomando partido, transformando-se.

O teatro, como qualquer forma de Arte, não é uma cópia da vida. É uma transposição poética da realidade, condensando-a e permitindo que se veja para além da pequena história que se conta. Mergulhando a fundo na representação do real, desmascara as aparências que o falseiam e faz com que cada um que assiste possa pensar: “Isto tem a ver comigo. Perante isto, a minha posição é esta”. A força do teatro reside no facto de tornar presentes as misérias e as grandezas dos seres humanos e os consequentes conflitos que originam, levando o público a tomar partido.

Pelo contrário, a telenovela, pretendendo ser uma cópia fiel da vida, na sua forma redutora de a representar utiliza códigos de identificação política, cultural e moral que fazem dela uma eficaz máquina de propaganda de uma determinada visão do mundo. Com o ar inocente de mero entretenimento, instila-a num público que passivamente a digere e inconscientemente a assimila.

Mas não é só essa a sua função perniciosa. E voltamos aos actores.

As telenovelas utilizam modelos e apresentadores que se querem exibir e promover; velhos comediantes medíocres que, em vez de estarem asilados ou a passar fome, assim se divertem e vivem um pouco melhor; pessoas que querem aparecer na televisão para serem conhecidas na rua; jovens que querem sair nas revistas, ganhar dinheiro, sentir-se alguém. E também utilizam crianças, que são mão-de-obra barata. Quando abrem concursos de casting, vão lá pais com crianças de um ano, de seis, de dez, e escrevem nas fichas “livre a qualquer hora do dia ou da noite”. Porque o filho pode render algum dinheiro ou até ser artista, ter alguma hipótese de futuro e sair da cepa-torta. Muitos destes miúdos deixam a escola ou não conseguem estudar porque as filmagens começam de manhã e acabam à noite. Há muitos a recorrer a psiquiatras e já houve casos de suicídio porque não se conseguiram reintegrar na escola ou porque concorreram e não foram aceites.

E claro que também utilizam actores profissionais. Hoje, a profissão de actor já não existe fora da televisão. Quer como carreira, quer como meio de subsistência. Na televisão, um actor ganha, em média, 6.000 euros mensais (a mim ofereceram-me 10.000 há oito anos), com a garantia de trabalho pelo menos durante 6 a 8 meses. No teatro, quando é pago, o actor recebe em média entre 1.000 e 1.500 euros mensais, durante um máximo de 3 meses. Vai fazer a primeira novela pensando: “Vou só lá fazer isto porque preciso agora de algum dinheiro”. Ganha muito bem durante 6 a 8 meses, tem de largar o emprego que tinha porque tem filmagens todo o dia, paga a entrada e as primeiras prestações de uma casa, compra carro, muda os filhos de escola e, quando acaba a novela, fica sem nada, com a casa e o carro para pagar, a escola dos filhos mais cara. Agora está nas mãos da televisão. Faz a segunda novela, a terceira, aceita tudo o que lhe oferecem, por qualquer preço e em quaisquer condições, das novelas às dobragens, dos sketches à publicidade.

E assim, ao longo dos anos, vamos assistindo à destruição dos actores, alguns de grande qualidade e talento. Porque, se o actor é o instrumento de si próprio, tem de ter os cuidados que um violinista tem com o seu violino. Com um instrumento em más condições, desafinado, nem o melhor executante consegue tocar boa música. A repetição daqueles clichés, o primarismo daquelas personagens e a industrialização da produção destroem-nos a pouco e pouco. Representam muitas vezes a olhar para os diálogos escritos pelas paredes porque não tiveram tempo para os decorar. Porque aquelas histórias são muito fracas, tudo muito pobre e muito parecido, vão-se transformando nos estereótipos que criam para funcionar naquelas situações. Defendem-se do vazio gesticulando, sentando-se e levantando-se, cruzando e descruzando os braços, passando as mãos pelos móveis ou pelos cabelos – para parecerem “muito expressivos”. E já não sabem fazer-se ouvir numa sala de teatro sem microfones, porque se habituaram ao linguajar naturalista e sussurrante da novela em que o que se diz não tem qualquer sentido nem importância, a não ser causar a impressão de que é igual à vida quotidiana. Ao contrário do teatro – em que as palavras têm todas um peso e um significado, são matéria com carne, emoção e pensamento –, na novela o texto é apenas pretexto e as palavras tanto podem ser aquelas como outras. E os actores vão perdendo a noção do sentido das palavras por causa da “naturalidade” e da vulgaridade com que se habituam a falar sem dizer nada. Apanhados nas armadilhas do cliché, procuram ser “verdadeiros” e desaprendem (e os mais jovens nem chegam a aprender, porque os cursos de formação de actores já só visam essa única saída profissional: a televisão) o que qualquer artista sabe: a força da obra de arte é a capacidade de dizer, condensando num gesto, num traço, num som, numa palavra, o que nem todas as cópias da realidade conseguem dizer. Nem juntando todas as fotografias saídas nos jornais e todas as reportagens televisivas conseguiríamos apreender tanto sobre a guerra civil de Espanha como vendo a Guernica de Picasso que, para além disso, nos confronta ainda com as consequências de todas as guerras acontecidas e por acontecer.

E assiste-se também à destruição do público. Habituado a ouvir contar histórias que não lhe exigem reflexão nem o confrontam com nada de importante, de uma forma que não lhe reclama concentração, nem tempo, nem atenção, o público não aguenta um teatro que não seja apenas entretenimento superficial e fácil, onde vai para fazer a digestão ou para apreciar ao vivo as vedetas da novela.

Com maus actores e mau público, não pode haver teatro. Nas salas aveludadas, vão-se exibindo espectáculos desfrutados apenas por uma elite intelectual que “deixa a novela para a plebe” e que, sem inquietação, se compraz com formalismos esteticistas decadentes ou com experimentalismos pós-modernos que também não são teatro. Porque o teatro, como qualquer arte, se não se compadece com a vulgaridade, também não se compadece com o efeito por mais bem elaborado que seja, ou com o enfeite por mais bom gosto que exiba. Não é um passatempo nem um luxo para servir a convidados.

Estará então a televisão a acabar com o teatro? Nos seus muitos séculos de história, o teatro tem sido alvo dos mais variados atentados: tirando-o da praça pública e restringindo-o aos salões aristocráticos, ou às salas burguesas “à italiana” que separam o público dos actores e transformam o acto teatral numa exibição pseudo-mágica que leva à passividade do público; confinando-o em contextos que seleccionam a assistência segundo as classes sociais; utilizando-o como instrumento de propaganda populista e imediatista, tanto à direita como à esquerda.

E a estes como a outros atentados o teatro tem sempre sobrevivido. É cíclico. Persistem pequenos focos de resistência marginais que não se deixam subjugar e que ciclicamente emergem, restituindo ao teatro o seu lugar na comunidade. Há sempre quem não aceite a privação, entre outras coisas, deste poderoso instrumento milenar de enriquecimento e de libertação.

7 COMENTÁRIOS

  1. Poucos fazem reflexões assim sobre ser actor/teatro/televisão/sociedade. A resposta resistente é decisiva, mas… Dizer: “É cíclico” é uma verdade que não basta. “Gritar e não ficar rouco” é uma das belas pistas deste texto. E tantas outras apontadas tão clara e lucidamente aqui. Talvez o actor o teatro a sociedade possam mesmo ser transformados a contraciclo, com lutas, experiências e dúvidas. Aqui está um pensamento que exige isso de nós.

  2. Obrigada Manuela, que mel para nós que vivemos e acreditamos no poder único da nossa linguagem teatral.
    As suas palavras são alimento, ruptura, despertador e denúncia para uma arte que não pode morrer porque é movimento , arma, força, luz e há luz clara tudo brilha, e a sua luz salta. Obrigada, Rita

  3. Manuela só hoje me passou pelos olhos este teu texto sobre o teatro e a televisão. Gostava de ter escrito cada palavra do que escreveste tão bem. Um beijo grande para ti. Muito obrigado.

  4. Quero agradecer as palavras da Manuela de Freitas. Sou uma jovem actriz e contadora de histórias do Porto, que trabalha no Centro de Criatividade da Póvoa de Lanhoso. Parece-me imensamente importante esta reflexão, porque acredito no poder do teatro enquanto espaço de verdadeiro encontro, de verdadeiro debate, de verdadeira descoberta, entre gentes que procuram incessantemente despir-se para poderem ver-se realmente. Esta coisa de tentarmos tirar as roupas com que as normas sociais e os vícios nos querem vestir para nos descobrirmos, nos conhecermos e podermos finalmente questionar o nosso papel no mundo é talvez uma ponte para a liberdade. Creio que é por isso que treino a minha voz e o meu corpo, que estudo e tento aprender e reflectir todos os dias, que procuro uma tecnologia que me torne um instrumento capaz de produzir teatro. É para viver realmente que trabalho. Não nasci para entreter o meu tempo. Obrigada, Manuela de Freitas.

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