Testemunho sobre a forma como as polícias interpretam as “leis” quando se trata de evitar qualquer contestação ao sistema. Do espaço público ao espaço policial.
28 de Fevereiro de 2009. Estavam à nossa espera. O blog anunciava o início da festa às 11h00, mas passava do meio-dia quando começamos a montar bancas, mesas, cadeiras, bancos, cavaletes, xadrez, livros, pincéis e papéis na praça do marquês. Apareceram de imediato. PSP, dois agentes, um dos quais graduado. O mesmo que comunicou ao primeiro que abordou que ali não podíamos estar, por se tratar de um evento anunciado, o blog que haviam consultado assim o confirmava e tal carece de licença, coisa de que não dispúnhamos.
“Evento” … o termo, e respectiva definição, desenrolou uma conversa de mais de uma hora. Sobre este e outros conceitos não se chegou a consenso algum. Ficou o aviso: “sujeitam-se a que apareça a polícia municipal e apreenda todo o material que aqui se encontra”. Pretendíamos, apenas, provocar um encontro numa praça da cidade, um encontro para distribuir informação, conversar, jogar xadrez ou jogar à petanca, pintar, fotografar, ler, estar. Regado com alegria de palhaços e almoço popular. Tudo isso aconteceu.
Pelas 16h30, quando a também anunciada polícia municipal surgiu, recolhíamos já à CasaViva, um espaço de propriedade privada mas porventura dos mais públicos na verdadeira acepção da palavra. A fachada exibia então um Aviso Público: A censura é sempre mais violenta do que qualquer faixa. Ao contrário da autoridade, a CasaViva não censura, não criminaliza, não mata.
Como a realidade lá fora é outra e porque o desconhecimento da lei não é desculpa para poder prevaricar no que à mesma diz respeito, com a colaboração do referido simpático agente no seu esclarecimento, elaborou-se o possível Manual de Frequência do Espaço Público:
1 – Não se pode montar bancas de informação, com ou sem rodas, mesmo que não existam transacções comerciais. Pode distribuir-se propaganda desde que autoportante e, em caso de cansaço físico, só se pode sentar e/ou pousar essa informação em mobiliário municipal por poucos segundos, talvez um minuto, a lei parece não ser muito precisa.
2 – Não se pode trazer um sofá para a praça e confortavelmente sentar-se ao sol a ler um livro, mas pode-se trazer uma cadeirinha, cuja dimensão parece que a lei também não refere com precisão, nem o tempo em que essa cadeirinha poderá estar a incomodar no espaço público. Segundo o agente graduado, a grande diferença entre um sofá e uma cadeirinha, numa praça, é o facto de o sofá provocar os transeuntes a questionarem-se do porquê de tal mobiliário “anormal”. Está a dizer-me, então, que a lei existe para defender as pessoas de se interrogarem sobre o que as rodeia? “Sim.” E que, portanto, a lei existe para normalizar as pessoas impedindo-as de exercerem o seu espírito crítico? “Sim.”
3 – Pode-se ter um cavalete para qualquer cidadão pintar, mas se for mesa, nem que seja para crianças, já não pode ser.
4 – Pode-se ter e estar a jogar xadrez num tabuleiro desde que não incorpore uma mesa.
5 – Para se realizar um encontro com mais de três pessoas, este não pode ser anunciado na Internet, pois será considerado organizado e portanto carece de autorização do Governo Civil. Mas se esse ajuntamento já tem história, é tradição, já pode livre e espontaneamente acontecer, conforme comprova o ajuntamento dos senhores do jogo da sueca, diariamente na praça do marquês. E para ser considerado tradição não chega ter como antecedentes só dois outros encontros, não se sabe se os nossos recentes três já serão suficientes.
5.1 – Se o encontro for numa praça, por mais que seja um local de estar, é preciso ter cuidado quanto ao fim a que se destina, para não pôr em risco o que ela por definição não é, corredor de circulação pedonal. Ficai os interessados também a saber que, se corredor fosse, teria de se chamar Stª. Catarina e ser ocupada na altura em que está vedada ao trânsito automóvel. Se assim for, já isto e muito mais poderá acontecer e mesmo que bloqueie a passagem de um transeunte desinteressado não carece de autorização do Governo Civil.
5.2 – Se clandestinamente organizar qualquer coisa, evite chamar-lhe evento, escamoteie o facto de ser organizado, mesmo que o não seja e verifique se está numa praça e se na sua fronteira existe algum edifício do qual possa sair gente considerável que necessite atravessá-la, como, por exemplo, uma igreja. Pois é, parece que o espaço público, apesar de assim se manter nomeado e além de cada vez mais parco nas nossas cidades, está cada vez mais parecido, nas suas limitações, com o espaço privado.
6 – Embora o que dizem que a lei diz, não diz se o que no dicionário quer dizer é o que a lei diz. Para quem necessite ou deseje frequentar o espaço público, fique a saber que um dicionário de 2009 diz o seguinte:
“Evento”, do latim eventu, acontecimento.
“Organização”, acto ou efeito de organizar, preparação, planeamento, disposição que permite o uso e funcionamento eficiente, relação de coordenação e coerência dos diversos elementos que formam um todo.
“Praça”, do latim platêa, praça pública, lugar amplo, zona de estar, geralmente rodeado de edifícios [o que quer dizer que as ruas que a ladeiam são a área de circulação desse espaço].
“Rua”, do latim ruga, sulco, caminho, via ladeada de edifícios, zona que privilegia a circulação.
7 – Mesmo assim se a sua acção levar os transeuntes a saírem das suas vidas pacatas, questionando-se na sua realidade e na do mundo que os rodeia, já corre sérios riscos de apreensão de todo o material por parte da polícia municipal e, no mínimo, são necessárias identificações dos provocadores dessa acção. Corre ainda um outro risco, o dessa acção ser considerada crime contra a paz pública, isto se subjectivamente tornar viável a hipótese de um cidadão, e basta um, com “um nível cultural baixo”, mais uma definição em que a lei peca por falta de precisão, interpretar mal a acção e desta forma sentir-se impelido à violência; pode vir a ser acusado de terrorismo, o que não será forçosamente mau se desejar alguma projecção nos média, desde que arranje um bom advogado para não acabar a gozar a sua glória aos quadradinhos.
Querem melhor e mais genuína, vindo de quem vem, explicação da lógica das leis? São estes os nossos sete pecados mortais a acrescentar às razões que contribuem para esvaziar o espaço público, torná-lo mais inseguro e, portanto, necessariamente mais policiado, violento e repressivo, em cidades cada vez mais elitistas de gente que se auto-enclausura em condomínios fechados que proliferam como cogumelos. Esta chama-se Porto Vivo, até podia ser vip mas é zip (zona de intervenção prioritária): um somatório de casas devolutas a recuperar para uma população influente, endinheirada, a bem de uma cidade chique, cuja alma é empurrada para os subúrbios. Porque a alma é a gente que lá nasceu, cresceu e viveu, com conta na mercearia, que pode contar a história daquela esquina, que conhece o vizinho que lá viveu antes, o barbeiro que já fechou e as vendedeiras do Bolhão de geração em geração. É a morte da cidade Aniki Bobó(1).
Tudo isto obriga a uma actualização de conceitos, pois praça, rua, casa, espaço público e privado já não são o que eram e nem um gajo que queira ser “um cidadão exemplar” sabe como agir. Portanto, já sabem, quando saírem de casa deixem o espírito crítico na gaveta da mesinha de cabeceira senão sujeitam-se a que, em Portugal, hoje e amanhã… a autoridade vos tente amordaçar.
Colectivo CasaViva (www.casa-viva.blogspot.com)
Acrescento:
Segunda-feira, 5 de Janeiro, pelas 15h00, os Bombeiros Sapadores do Porto retiraram a faixa da fachada da CasaViva, a mando da Polícia de Segurança Pública. Foi levantado um Auto de Apreensão, destinado ao Ministério Público, cujo motivo de apreensão mais não é do que alegado incentivo à violência e, portanto, crime contra a paz pública, não sabendo nós se por paz pública se entende o direito do polícia disparar ou o dever do alegado prevaricador de colocar a cabeça à frente da bala.
A faixa foi colocada no início da tarde de sábado 20 de Dezembro de 2008. Dia de Solidariedade Internacional com a luta do povo grego.
(1) Aniki Bobó, filme de Manoel de Oliveira de 1942, por muitos considerado a obra fundadora do neo-realismo no cinema, que retrata o Porto popular da época através de episódios da vida das crianças dos bairros pobres.