Por Pedro Branco

 

Fico sempre um pouco aflito quando sou levado a pronunciar-me sobre a classe docente, à qual também pertenço, com muito orgulho.

Em primeiro lugar porque confesso não estar muito por dentro de toda esta teia que andam a montar sobre os professores, sobretudo no que se refere à Avaliação de Desempenho e ao Estatuto da Carreira Docente, o qual, aceitemos, ainda é o nosso garante pedagógico para o que podemos ou não desenvolver dentro das nossas salas de aula. De facto, tenho assumido uma postura algo incrédula e até de algum (possivelmente infundado, infeliz ou injusto) distanciamento em relação a esse espantoso movimento que de repente se levantou e que aparentemente uniu e aproximou estes profissionais. A simpatia natural que me desperta um movimento social como o dos professores, contra a empresarialização da Escola Pública e pela dignidade da nossa profissão, é temperada pelo contínuo autoquestionamento que esta profissão sempre implicou para mim, e acho que deveria implicar para os outros. Afinal, quando se fala dos professores, está-se a falar de quê?

A avaliação, sendo de desempenho, deveria, a meu ver, assumir uma vertente formativa e formadora, através de mecanismos e instrumentos sérios e competentes de promoção de um verdadeiro profissionalismo, esse sim, em defesa da escola pública, que sempre tão necessitada esteve, desde há muito, da força e da energia dos seus professores! Que o digam os alunos… tão cheios de histórias para contar, se pudessem… Acredito que, se fossem ouvidos, mais do que enumerar as atrocidades, humilhações ou crueldades a que muitas vezes são sujeitos por parte de alguns docentes, iriam exigir professores mais empenhados e capazes de assumir com brio a difícil tarefa de ensinar e de se responsabilizar pelos insucessos dos seus alunos, já que são obrigados a frequentar este Sistema Educativo, que teima em não evoluir e em fazer dos primeiros anos de cada um uma espécie de Calvário a que todos têm de estar sujeitos… Não creio ser esse o tom geral dos Conselhos de Docentes espalhados por essas escolas, muito menos agora!

Não falo de cor, nem sequer de barriga cheia – são muitos os relatos de colegas que ilustram esta sensação de um cansaço logo à nascença:

• Pode conceber-se que professores acabadinhos de formar estejam já a pensar na Reforma, quando deveriam era agradecer(-se) pelo facto de terem podido chegar a uma das profissões mais nobres da vida? Pode imaginar-se quem sofre com tudo isso?

• Qual a explicação para o facto de, cada vez mais, vermos docentes a evitarem a utilização da sua ferramenta profissional de trabalhador intelectual (a escrita e a leitura), quer na sua postura diária (ao contrário, aliás, do que exigem aos alunos), quer quando inseridos em acções de formação (onde frequentemente estão contrariados), em que seria suposto utilizarem-na como factor essencial ao seu desenvolvimento?

• Que significado têm as práticas que assentam em repetições atrás de repetições, muitas delas quase exclusivamente livrescas, num ensino mais que ancestralmente desactualizado (que o digam as Psicologias ou as Ciências da Educação) onde os alunos são tratados como, e transformados em, meros consumidores de aulas pré-concebidas muitas vezes sem se saber bem por quem, ao invés de se apostar numa cultura de produção e de efectivo ensino, assente num clima de cooperação, de entrega, de proximidade, de dedicação e de verdade?

Sinceramente, custa-me tudo isto. Entre nós, professores, que nunca saímos da escola (primeiro como alunos e agora como docentes), há provavelmente quem deteste a escola. E quem ande a desperdiçar a sua energia, virando as costas aos alunos, apesar de serem eles a principal justificação para tão forte empenho nesta luta contra uma política que nos está a tentar destruir por dentro em quase todos os domínios da profissão. Está a mexer em demasiadas coisas…

Andam, de facto, a empurrar-nos para uma clausura, dentro de uma lógica completamente diferente daquela que, ao longo de anos e anos, sempre nos foi deixando mais ou menos descomprometidos, ao sabor do empenho e da vocação de cada um. Faz mal exigir aos professores que prestem contas do que fazem para salvar os alunos, de como trabalham, que valores estão por trás das suas práticas, quer para os responsabilizar, quer no sentido de os ajudar a melhorar o que fazem? Na minha opinião, teremos de lutar por um modelo que exija maior rigor e responsabilização no exercício da docência, criando um clima de confiança e de efectivo desenvolvimento profissional onde os professores se possam sentir seguros e acarinhados para colocarem ao serviço da Escola e dos alunos o seu empenho e amor pelo que fazem. Ao invés, parece-me, estamos a abrir caminho a desigualdades, injustiças, compadrios, corporativismos…, e temo que tudo isto não dê em nada e apenas estimule o lado esquivo do ser humano, sempre tão propenso a fugir do que o incomoda, através de mecanismos frequentemente pouco sérios, que inevitavelmente irão tornar mais frágeis ainda tanto os alunos como o Sistema Educativo.

E agora? Em que é que ficamos? Qual o lugar do pensamento pedagógico no meio deste movimento, desta luta? Não aquele de que se fala na Formação Inicial e que tão longe se apresenta dos candidatos, mas aquele que deveria estar na palma da mão de cada professor na sua relação com os alunos, com os colegas ou com o seu ofício… Não me esqueço, a este propósito (de um pensamento que na minha opinião andou e anda demasiadamente longe dos seus agentes…), do comentário de um colega, professor do Ensino Especial, quando questionado sobre esta problemática da Avaliação de Desempenho: “O mais importante para mim é que, por bem ou por mal, em 30 anos de serviço, foi a primeira vez que uma professora veio ter comigo preocupada com os seus alunos!”

Sei que as condições estão ainda mais difíceis para as grandes necessidades da Educação, que passam, como referi, por questões estruturais de fundo (ao nível da carreira, do currículo, da organização das escolas…), mas também por uma outra cultura docente, mais digna e determinada no sucesso dos seus alunos. Por isso é que, agora mais do que nunca, me parece essencial que os professores consigam agarrar esta oportunidade de redireccionarem a sua luta para dentro da sala de aula e não gastarem tantas energias fora dela. Desafio-vos, então, a serem todos EXCELENTES! Mesmo que queiram que só dê para alguns, uni-vos nas vossas escolas, na verdadeira batalha que é aquela que procura as melhores maneiras de dar a volta a um problema de aprendizagem com um aluno, ou a batalha do esforço da inclusão de todos em efectivas comunidades de aprendizagem, onde cada um aprende com cada um, onde cada elemento se torna imprescindível para o crescimento e desenvolvimento do outro. Não faltarão oportunidades para não ficarmos parados…

Já viram a força que não seria 100.000 a pensar numa Educação melhor?

6 COMENTÁRIOS

  1. Não sendo esta a primeira opinião que conheço de um professor céptica (posso rotulá-la assim?) quanto ao actual movimento dos professores, fico feliz por vê-la publicada no Passa Palavra.

    O conhecimento que tenho do Sistema Educativo é na “óptica do utilizador”, enquanto aluno. E a minha experiência diz-me que, de um lado e do outro, poucos se encontrarão preocupados com a qualidade do Sistema Educativo.

    Sem querer parecer reaccionário, mas assumindo o risco, perguntava:

    Porque é que a qualidade do sistema educativo nunca foi tema mobilizador até se tocarem as rotinas do professores?

    Será possível, como sugere (sugere?) o texto, aproveitar um movimento mobilizado por más razões e conduzi-lo em favor das boas razões?

    Zé Pedro

  2. Pedro, gostei do teu relato e raciocínio. No Brasil, vindo dos meios precarizados, estou na situação curiosa de não poder estar mais ao lado dos professores do que estou do governo. A falta de preocupação e responsabilidade social com a educação é tão grande que algumas medidas tomadas pelo Governo de São Paulo têm sido benéficas. O professorado apresenta-se elitista, dado o patamar salarial que os afasta do grosso da população, que vive em condição lastimável. Não se preocupam com a condição de vida dos alunos nem com a condição educacional. Se há estupros ou mortes nas escolas, tanto faz, o que importa são os salários. E com a implantação da bonificação por desempenho em São Paulo vi, pela primeira vez, se difundir um mínimo de preocupação geral com o aprendizado dos alunos.

    Claramente há uma situação de absoluta alienação, em que não existe reflexão sobre a responsabilidade social do professorado e nem um pensar sobre a própria prática educativa. O que torna a perspectiva de surgir um professorado interessado em construir uma educação aliada aos interesses populares mais difícil: trata-se, primeiro, de que os professores se vejam como trabalhadores e, segundo, de resgatá-los do individualismo mercantil em que estão inseridos.

  3. Pegando o gancho [viés] no comentário do Ronan. Acho que se coloca aí uma contradição social própria da proletarização do professorado. Embora públicas, os trabalhadores das instituições de ensino cada vez mais são enquadrados em um esquema de organização de trabalho que segue uma lógica capitalista. Muita exploração, muito trabalho, numa lógica quantitativa. Como na fábrica taylorista, o trabaho perde o sentido e o trabalhador já não se identifica com o produto do seu trabalho.
    Não sou professor, mas quem sabe esse descaso [desprezo] dos professores com a educação propriamente, com o serviço e trabalho que prestam, preocupados só com o salário, não represente uma forma de resistência ao trabalho imposto, no qual não vêem sentido. Trabalha-se o mínimo e tenta-se ganhar o máximo. Seria bom por um lado que eles se preocupassem em fazer um bom serviço. Mas a contradição está posta.
    A educação virou mercadoria e não é culpa dos professores. Se o sapato sair defeituoso da fábrica porque os trabalhadores sabotam ou são relaxados, é parte da contradição da organização capitalista.

  4. Meu caro Leo:

    Acho o seu comentário bem pertinente, sobretudo porque, na minha opinião, traduz a lógica natural das coisas. Isto é, os professores, que sempre tiveram o poder de fazer da escola o que quisessem, acabaram por “dar o flanco” e os resultados estão à vista: andam a pegar na Educação por todos os lados, contra tudo e contra todos. Não posso estar mais ao lado da minha classe, apesar de tudo! Como me disseram outro dia, “quando o patrão se porta também mal (e que mal!) temos de estar ao lado dos trabalhadores.” Mas é um facto que nunca quisemos, por variadas razões, aproveitar a nossa força, as nossas condições ou as aprendizagens de outros sectores da sociedade (como o sector empresarial, por exemplo) em benefício da melhoria das condições da Escola, do seu funcionamento, dos alunos ou da carreira dos docentes. Creio que a Escola está a viver um momento histórico e que esse deveria ser motivo para darmos a volta de outra forma a este estado de coisas. Primeiro, não deixando que transformem a Educação num sector com características que não poderá ter (por exemplo, fazendo das escolas empresas…). Depois, credibizando a carreira docente através da implementação de uma verdadeira cultura profissional que prime pelo empenho, pela dedicação, pelo afecto, pelo orgulho no que fazem… Enfim, a Escola aos professores, desde que eles a queiram!

    Um abraço.

  5. Caros,

    Depois de os comentários do Léo Vinicius e do Pedro Branco gostaria de precisar uma coisa.

    O meu comentário anterior destina-se a caracterizar o actual movimento dos professores em Portugal e a questionar o seu futuro. Não se destina a apurar culpas pelo estado do sistema educativo.

    Assim, a primeira questão que coloquei é retórica e com ela só pretendo demonstrar que a mobilização tem raízes circunstanciais e nada profundas; a segunda questão aponta para uma discussão mais geral acerca do aproveitamento da mobilização colectiva, independentemente das suas causas (acerca do qual tenho grandes dúvidas).

    Quanto às culpas pelo estado do sistema educativo, gostaria de dizer que os bons professores que conheci e conheço são heróis. E não se pode exigir a ninguém que seja um herói, nem menosprezar ninguém por não o ser. Obviamente, quem define as políticas e tem capacidade para conformar o sistema é que deve criar as condições para que as pessoas normais também possam ser bons professores.

    Zé Pedro

  6. Gostei que se começa a debater a questão. Léo, entendo sua perspectiva e concordo que se trata de uma forma de luta, de resistência. A atual reforma do ensino paulista tende a taylorizar o trabalho docente, busca-se mais produtividade com menos tempo e o mesmo investimento. Por outro lado, pela internet, utiliza-se o potencial fiscalizador da sociedade e do professorado, assim como, se procura extrair deles opiniões para melhorar o sistema, explorar conhecimento gratuitamente.

    O problema nisso tudo é que o fruto do trabalho dos professores são pessoas e não sapatos. É como o trabalho do carcereiro, que também é explorado e pode sabotar, pode enrolar, mas quem vai sair prejudicado é o preso que vai ter sua visita atrasada em várias horas, que não vai receber o remédio, que não vai ter sua carta encaminhada ao correio, que não vai receber a notícia da morte do pai ou do nascimento do filho. É algo realmente complicado. É a situação dos médicos e tantos outros, e você não vai querer que o médico lhe dê a anestesia errada porque está revoltado não é?

    Você já reparou que quando falam de violência na escola só falam de professores? Mas os mais violentados são os alunos e muitos funcionários. Há milhares de estupros, agressões físicas e morais, terror psicológico contra os alunos e milhares de humilhações contra os funcionários. É uma situação em que se preocupa com 5% de aumento mas não se preocupa se tal aluno está sendo estuprado num beco que, por ventura, a escola tenha.

    Eu não consigo vislumbrar uma perspectiva de posicionamento autônomo do professorado sem que eles tenham o interesse de assumir a educação. O mesmo se processa com os alunos. Há a destruição paulatina, vandalismo, da estrutura física e imaterial da educação e tudo que ocorre quando os alunos estão mobilizados, politizados, é deixarem de quebrar e passarem a manter a escola, lutarem por mais investimentos, só que aí passam a lutar para que a escola seja remodelada. A gente vê isso na prática, eles cuidam melhor do campinho deles num terreno baldio, porque o campinho é deles, do que da escola. Mas quando sentem que a escola é deles, ou que irá trazer benefícios, passam a cuidar dela também.

    Enfim, quando falamos de responsabilidade social dos professores estamos falando do abandono dessa sabotagem, dessa luta passiva, para uma luta coletiva e ativa, que implica mudanças na gestão escolar e em todo o cotidiano.

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