O que a teoria do poder pode nos ajudar na análise do desempregado em nossa sociedade contemporânea? Por Fábio López López

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fotografia Ron Summers

Antes de começarmos a falar sobre o desemprego propriamente dito, este texto ficará mais didático se o iniciarmos falando do marco teórico que o sustenta, a saber, a teoria do poder. A teoria do poder foi desenvolvida no seio do movimento anarquista, sendo libertária por excelência. Esta teoria está delimitada ao campo das ciências sociais, logo se restringe às relações de poder que vemos entre os seres humanos – estando excluídas relações com a natureza ou metafísicas. Está fundamentada por princípios simples como: todo homem detém força social, a qual pode ser empenhada na busca de seus objetivos. Quando o objetivo de um agente encontra na força social de outro agente um empecilho para seu êxito, temos um conflito. Os conflitos são entendidos como normais e inevitáveis em qualquer sociedade. Na teoria do poder, quando um agente se vê em um conflito ele coloca sua força social em embate com a força do outro agente. Aquele que tiver mais força aplicada ao embate subjugará seu oponente e conseguirá atingir seu objetivo. Ao subjugar seu oponente, sendo este o meio para atingir o objetivo, o agente mais forte terá estabelecido uma relação de poder com relação ao agente derrotado.

Do ponto de vista desta teoria, o poder não é ruim, nem é bom, é uma relação social que se estabelece necessariamente no equacionamento de um conflito – e quanto mais complexa uma sociedade, mais conflitos são gerados. Sendo assim, temos relações de poder estabelecidas por movimentos populares, como uma associação de moradores que não permite a edificação de um shopping em determinado terreno, para construir uma praça pública. Neste caso, o subjugado será o empresário que teve seu plano frustrado pela ação popular.

Mas o que a teoria do poder pode nos ajudar na análise do desempregado em nossa sociedade contemporânea? A princípio parece distante, mas os desdobramentos da teoria são preciosos para esta questão. Para isso teremos que falar um pouco do instrumento de ampliação de força social mais eficaz que existe: a dominação. Então a pergunta: o que são instrumentos de ampliação da força social? Simples, são todos os instrumentos que podemos utilizar para ampliar nossa força social para o momento de um conflito. Então vejamos, um homem tem determinada força social natural para empregar em qualquer conflito que se envolver, já um homem que sabe uma luta marcial terá uma força social ampliada pelo domínio da técnica, se este homem tiver um bom preparo físico, mais força conseguirá aplicar em um conflito, se tiver uma faca (outro instrumento), mais força terá, se dispor de um revólver… Mas nenhum destes instrumentos consegue multiplicar as forças de um único agente, pois apenas a dominação consegue fazer isso. Por que? Todos os instrumentos de ampliação da força social ampliam a força do agente na medida em que este faz uso do instrumento no conflito, como estamos falando de um único agente, não faz diferença se este tem 10 armas de fogo disponíveis se ele consegue manejar apenas duas de cada vez. Já a dominação não, através dela o agente consegue multiplicar sua força social através de comandos que dá para os agentes dominados. Sendo possível, normalmente, dominar milhares de pessoas através da organização hierárquica como um exército, por exemplo. Neste exemplo fica fácil de vermos efetivada a vontade, desejo, ou simplesmente comandos de um único homem, que desta forma terá sua força social multiplicada geometricamente.

Dominação não é um conceito simples, talvez seja uma das relações mais complexas de toda a ciência social, mas podemos definí-la em poucas palavras:

“Domínio (ou dominação) é dispor da força social de outrem (do dominado), e, conseqüentemente, de seu tempo, para realizar seus objetivos (do dominador) – que não são os objetivos do agente subjugado.” [1]

Exatamente pelo dominado estar colocando sua força social a serviço das “vontades” de seu dominador é que o dominado não percebe as próprias ações como suas. Desta maneira, a relação de dominação é inseparável da alienação.

“Alienação, complexo simultaneamente de causalidades e resultantes histórico-sociais, desenvolve- se quando os agentes sociais particulares não conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção; assim, aquelas formas e, no limite, a sua própria motivação à ação aparecem-lhes como alheias e estranhas…” [2]

A alienação é um fenômeno social com conseqüências individuais terríveis:

“Primeiro, o dominado se vê alienado de sua força social (força-trabalho), sendo isto, seu tempo de vida fora de seu comando e que, portanto, não está à sua disposição. Segundo, o resultado da aplicação de sua força não lhe pertence. Por isso, o domínio/alienação traz o duplo empobrecimento ao mundo do dominado/alienado: 1- a vida do dominado fica mais pobre à medida que dedica seu tempo (patrimônio irrecuperável) à realização das vontades alheias. 2 – quanto mais coisas forem criadas através da força social do dominado, e que serão apropriadas ao comando do dominador, mais fraco e pobre relativamente fica o dominado.” [3]

A alienação associada à dominação é uma forma terrível de consumo de vidas, onde um homem dedica seu tempo para realizar uma atividade que não lhe interessa e que não lhe diz respeito. Enquanto executa seus comandos o dominado não passa de um morto-vivo, um zumbi sem alma, mera engrenagem de uma organização.

O fenômeno da dominação/alienação pode ser visto em larga escala em nossa sociedade contemporânea nas casernas, nos hospitais, nos Estados e, principalmente, nas organizações capitalistas (fábricas, bancos, supermercados, no agro-negócio…), em suma, em toda organização hierarquizada. Desta maneira, os agentes dominados/alienados que compõem a força social destas organizações, ajudam a construir (ou perpetuar) o poder social daqueles que os comandam. Estes soldados, enfermeiras, burocratas, operários, bancários, lojistas, agricultores, aceitam a dominação por uma miserável compensação como salários, por exemplo.

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fotografia Vítor Cid

Mas se a sujeição à dominação é algo tão sórdido para a realização do ser humano por distanciá-lo de seus objetivos e interesses, por esgotá-lo, por esvaziá-lo de seu significado subjetivo, em suma, por consumir sua vida, por que é um fenômeno tão generalizado e normal? Em que medida estamos tão adoecidos que não percebemos isso?

A resposta para estas questões vem de nossa história social e de cada um de nós. Nascemos já enredados em relações de poder, não optamos por participar (ou deixar de participar) desta sociedade. Simplesmente não temos opções, mesmo contra esta sociedade, temos que viver nela e retirar dela, em primeiro lugar, nossa subsistência para depois nos realizar subjetivamente. Então as duas principais fontes para o sujeito aceitar sua dominação são a ideologia e a inacessibilidade dos meios de produção. Do ponto de vista ideológico, o aprendizado de que o natural e imutável é nossa sociedade onde temos um mandante e um subordinado, onde temos um dono dos meios de produção para vários proletários, onde não existem interesses de classe, ou melhor, a negação da própria existência de uma sociedade de classes [4], são o suficiente para criarmos pessoas dóceis para dominação em larga escala. Já a inacessibilidade dos meios de produção é a medida que complementa o quadro que sujeita cada um de nós. Mas neste caso não podemos enxergar nada com uma visão individual, apenas a percepção das classes sociais pode nos dar luz. No capitalismo existem duas classes, os que têm o direito de não dar acesso aos meios de produção e os que precisam de autorização para ter esse acesso. De forma mais simples os proprietários dos meios de produção versus os proletários.

Ter exclusividade ao acesso aos meios que possibilitam produzir tudo aquilo que precisamos para sobreviver é a grande arma que os capitalistas têm para manter a classe trabalhadora dominada e dócil [5]. Pois sem terras, ferramentas, conhecimento, meios de distribuir e máquinas, não tem como o ser humano provir o próprio sustento, sendo este obrigado a recorrer ao mercado para adquirir alimentos, roupas, água, remédios… Aqueles que não se submetem à ordem capitalista estão condenados a uma forte coação, pois sem acesso ao mercado o homem contemporâneo está condenado à fome, ao frio, à sede, à doença, enfim.

Mas existe uma parcela da população que deseja estar alienada à classe dominante, por ideologia, por exaustão, ou por não agüentar mais as coações e necessidades que passam todos aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho ao capital, estes, chamados de desempregados, não são rebeldes, apenas querem, a princípio, uma oportunidade de sobreviver dignamente.

Dignamente? Um operário (que é dominado/alienado) não tem uma vida digna! Ele é um morto- vivo, reza todos os dias quando acorda às 5h da manhã para que o apito de sua fábrica soe logo anunciando o fim de sua extenuante jornada de trabalho. Ele não se importa com as 8h, 9h, 10h que perde todos os dias sobre o comando de seu dominador/patrão. Desde que passe rápido para poder descansar novamente. Mas este operário, apesar da carne de segunda, do bife duro, provavelmente não passa fome. São as migalhas do sistema.

O que é o desemprego? O que o gera? A teoria do poder serve para responder estas questões também. Imaginemos que uma pessoa resolva fazer uma horta comunitária num terreno baldio ao lado de sua casa. Este terreno tem 100 metros quadrados e tem boa terra. Seu objetivo é plantar hortaliça para distribuir em sua comunidade fazendo assim uma integração. A princípio este homem trabalha sozinho, o que é um trabalho árduo, depois passa a receber a colaboração de sua esposa e dois filhos, multiplicando sua força de trabalho. Depois da primeira colheita e distribuição, alguns vizinhos se empolgam com a idéia e passam a ajudar também, então passamos a ter 10 pessoas trabalhando nos 100 m2. Talvez, 10 pessoas fosse o número ideal de trabalhadores para aquela área, mas com o tempo novos vizinhos aderiram à idéia, mas a incorporação de mais 3 trabalhadores não tornou a horta mais produtiva. Em pouco tempo o projeto passou a ser um sucesso total e passamos a ter 50 pessoas trabalhando no terreno de 100m2, nesta situação, na verdade, um vizinho começa a atrapalhar o outro, não havendo espaço para executar o trabalho de cada um. A produtividade começa a cair e provavelmente, alguns desses 50 vizinhos sequer conseguem entrar no terreno, pois o mesmo já estaria abarrotado de gente. Sendo assim, respondemos o seguinte: nem sempre acrescentar mais uma pessoa na organização é sinal de ganho de força social por parte na organização. Algumas vezes acrescentar mais uma pessoa a uma organização é contraproducente. Muitas vezes, em uma batalha, é melhor um exército agir com pequenos destacamentos, ágeis e fáceis de coordenar, do que trabalhar com todos os homens disponíveis de uma vez. Do ponto de vista das organizações capitalistas esta realidade é agravada pelo ganho de produtividade da organização com a incorporação de tecnologias, tendo como limite a quantidade demandada do produto pelo mercado. Simples assim, podemos produzir o necessário (demandado) com menos gente, logo são dispensados os dominados que colocam sua força social a disposição do dominador, mas não estão somando força social para a consecução dos objetivos do mesmo. Colocar esta mão-de-obra excedente em ação significa gerar um produto que não será consumido, logo significa um desperdício para esta organização.

Isso por si só não explica o desemprego, pois poderíamos entender que o dominador gostaria de manter a sua disposição uma força social de reserva, mesmo que ela não pudesse ser utilizada neste momento. Aí entra outra questão importante: toda força social para ser mobilizada tem um custo. Por isso, muitas vezes, vemos agentes sociais poderosíssimo desistirem de algumas de suas metas, pois o custo de mobilização de sua força para vencer o conflito é relativamente alto. Esta é a economia do poder. Todo tempo, um agente poderoso mede se o prêmio de entrar em um conflito compensa o custo que a mobilização de sua força terá que despender – sem falar nos riscos de perder o próprio conflito. Esta é a razão de por um longo período de sua história os EUA desejarem invadir Cuba e não o terem feito. No caso da organização capitalista de produção isso significa pagar salários para agentes cuja mão-de-obra não é necessária, o que afeta o objetivo do capital, a saber: maximizar o excedente apropriável de riqueza socialmente produzida ao próprio capital. Este objetivo do ponto de vista da teoria do poder significa: aumentar a força social relativa da organização que tem poder social [6].

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fotografia Renato Silva

Do ponto de vista econômico o desemprego não passa do excesso de um insumo de produção que, por isso, não é empregado no processo produtivo – neste caso, força de trabalho. Pelos trabalhadores viverem em uma sociedade onde o acesso aos meios de produção é uma exclusividade da classe capitalista ou do Estado, estes proletários ficam disponíveis ao capital na forma de exército de reserva industrial, para serem utilizados assim que for interessante ao capital – que é o poder constituído. Como esta força social fica disponível a custo zero para o capital, não faz sentido o capitalista manter em sua organização uma mão-de-obra que não está utilizando.

Se do ponto de vista econômico o chamando desemprego não passa da não utilização do excedente de um insumo de produção, do ponto de vista social este mesmo desemprego é um grande problema para a sociedade capitalista. Por não estar empregado, o agente social não tem, a princípio, como se sustentar do ponto de vista material. Logo, o desempregado estaria condenado à morte pelo capital, mas o Estado trabalha como elemento mitigador dessas conseqüências e consegue, de forma geral, sustentar um quantitativo de proletários desempregados com alguma dignidade – digamos que o quantitativo suficiente para os interesses do capital – no entanto, quando o desemprego chega a determinado nível, a manutenção destes passa a ser custosa e o capital não quer “sacrificar” mais seus ganhos [7] para manter aqueles que certamente nunca serão aproveitados no sistema econômico oficial. Desta forma, o capital e seu capataz (o Estado) estão condenando à morte um lupem que se forma e que é coagido à informalidade, ou pior, à marginalidade.

Dentro de sua lógica concentradora de renda (e poder) o capital tenderá sempre a produzir mais para menos gente. No entanto, temos cada vez mais gente chegando ao mercado de trabalho todos os anos. Não há como esta conta fechar [8], chegamos ao ponto (pensando em uma economia global) que não temos apenas um exército de reserva industrial, mas a redundância da mão-de-obra, que simplesmente não será absorvida pela economia formal capitalista, por mais longos e intensos que sejam os ciclos de crescimento econômico.

O interessante desta lógica perversa do capital (de desempregar) é que: ao mesmo tempo em que fortalece o próprio capital, a mesma lógica gera um acúmulo de forças não apropriadas por este, que produzem as condições para superação de sua ordem (capitalista) uma vez que, no limite, o aumento contínuo da taxa de desemprego é insustentável.

Então o que fazer? O desemprego do insumo mão-de-obra não será superado no sistema capitalista. Isso nos deixa como único caminho uma revolução, é verdade, mas o que podem fazer hoje os desempregados para preparar o terreno para esta revolução e ao mesmo tempo tentar subsistir?

A verdadeira luta do enorme contingente de desempregados e subempregados (estando a economia informal incluída) é primeiro: superar os paradigmas ideológicos. Idéias como as de que alguns são detentores legítimos da propriedade privada dos meios de produção, enquanto outros não devem ter nada. Que todos temos que ter um chefe, um líder… sem os quais não conseguimos nos organizar e produzir. Pensar que é vergonhoso não estar empregado na economia formal do capitalismo e que não podemos usar nosso tempo de forma produtiva – se não estivermos empregados daquela forma. Que nossa sociedade é competitiva e que você deve superar seu concorrente para ter seu lugar ao sol. Que é cada um por si e que quem ajuda acaba se ferrando! Que as classes sociais não existem e que nossos governantes administram o Estado em prol de todo o povo. Estas, entre outras mentiras que crescemos acreditando, só servem para manter esta força social latente desagregada sem capacidade de atuar como organização, facilitando assim a imposição do capital.

Segundo, mas não menos importante: mudar o foco da luta. Não adianta lutar pelo emprego. A sociedade capitalista não tem como resolver isso para todos! Exigir políticas públicas por emprego e renda, como tática para mitigar os problemas imediatos não devem ser abandonadas, mas temos que ter clareza de sua limitação. A verdadeira luta desta força social que não está sobre o domínio do capital [9] é usar o tempo de forma produtiva sem cultivar a falsa esperança de que um dia teremos emprego para todos. Usar o tempo de forma produtiva exige em primeiro lugar aprender a se organizar e a produzir, depois ter acesso aos meios de produção. A luta é para ter o meio para produzir e a possibilidade de distribuir esta produção. Não me lembro, sinceramente, de um movimento de desempregados exigir junto ao governo federal máquinas agrícolas ou industriais… Se isso ocorre é abafado pela mídia ou é inexpressivo. O que vemos são passeatas e reuniões com bandeiras vazias (tipo emprego já), que põe até o trabalhador que está empregado no setor formal cético com relação à validade da luta, pois ele sabe que na sociedade capitalista apenas longos ciclos de crescimento econômicos podem “gerar” empregos e que políticas públicas (quando muito) podem ajudar mas nunca irão resolver. Usar seu tempo disponível de forma produtiva também significa militar por uma nova sociedade com outros valores, organizada em função do ser humano, onde os meios para subsistir não sejam exclusividade de poucos.

Notas:

1. LÓPEZ, Fábio López. Poder de Domínio – Uma Visão Anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001, p 83.

2. NETTO, José Paulo. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981, p. 74.

3. LÓPEZ, Fábio López. Poder de Domínio – Uma Visão Anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001, p 93.

4. Vejam como atualmente é difícil distinguir os interesses de uma classe social para outra, tudo parece se resumir a aumento das rendas!

5. A urbanização reforça o movimento de dependência.

6. Neste caso lembremos que para esta organização, mais um dominado não está acrescentando uma força social apropriável, logo não melhora a posição relativa do poder da organização na sociedade.

7. Sacrifício este que é dividido com toda a sociedade.

8. O Estado norte-americano, por exemplo, tenta contornar tal situação através dos gastos maciços com a indústria bélica, que têm consumo instantâneo – o mesmo que destruir capital…

9. Odeio a expressão “desempregado”, pois resume o agente a um posicionamento com relação ao aproveitamento do capital – o que é humilhante.

(Fotografia do Destaque: Pereira Lopes, 2007.)

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