Por Passa Palavra
Em todo o mundo os trabalhadores lutam pelo emprego, que para eles é sinónimo de sobrevivência. Estas lutas tornaram-se mais frequentes desde que a reorganização do capitalismo operada ao longo da década de 1980 liquidou o sistema fordista e generalizou a subcontratação e a terceirização. A partir de então instalou-se uma clivagem na classe trabalhadora entre, por um lado, uma minoria de pessoas qualificadas e com estabilidade de emprego e, por outro lado, uma crescente maioria de precários, que podem até ter habilitações universitárias, mas apesar disso não conseguem deixar de ser assalariados a curto prazo, rodando entre empresas e entre sectores profissionais. A actual crise económica veio tornar este problema ainda mais grave.
Ora, se os sindicatos podem defender a minoria de trabalhadores com emprego estável, não representam nem se preocupam em representar os precários. Não é nosso propósito neste artigo analisar a fundo a questão sindical, mas talvez seja útil recordar que os sindicatos, detentores de colossais somas investidas sobretudo no âmbito financeiro, terceirizaram os funcionários tanto como o fazem as empresas capitalistas. No Brasil, por exemplo, foi o que se passou com a CUT [Central Única dos Trabalhadores, ligada ao PT]. Quando, em 1995, a direcção da CUT despediu [demitiu] 30% dos seus empregados, o então presidente da Central, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, invocou o mesmo argumento que qualquer outro patrão ao declarar aos jornalistas: «Tínhamos mais pessoas do que o necessário». Um caso muitíssimo interessante é o de Israel. Aí a grande central sindical Histadrut era a segunda maior potência económica, a seguir ao Estado. No final da década de 1970 a Histadrut era o segundo maior empregador, com 250.000 assalaridos em 600 empresas que geravam mais de 2/3 da produção industrial e 1/4 do Produto Nacional Bruto, enquanto os estabelecimentos agrícolas detidos pela Histadrut geravam mais de 85% do produto agrícola nacional. No final da década de 1980 esta central sindical era proprietária de 1/4 da indústria israelita e detinha o segundo maior banco do país. Neste contexto, o processo de privatizações ocorrido em todo o mundo na década de 1990 implicou a dissolução não só do sector empresarial do Estado israelita como igualmente do sector empresarial da Histadrut, que se desagregou num único ano, em 1995. Adaptando-se às modas, a central sindical criou então uma companhia destinada a recrutar trabalhadores temporários e a alugá-los às firmas que deles necessitam. Este é um exemplo extremo, mas em vez de constituir uma excepção contribui para revelar uma verdade profunda. A notória falta de vontade dos sindicatos para encetarem qualquer luta em defesa dos trabalhadores precários deve-se em boa medida ao facto de eles funcionarem como empresas.
E assim, perante a indiferença, ou pior ainda, das instituições tradicionais de protecção dos trabalhadores, os precários têm procurado construir as suas próprias organizações e formas de resistência, reivindicando antes de mais a estabilidade do emprego. Talvez valha a pena parar aqui um pouco para reflectir.
O que caracterizava a escravatura? Não era, como frequentemente se julga, a questão da remuneração, porque os escravos recebiam alimentos, um tecto para se abrigarem e muitas vezes tinham direito a um pecúlio. O que caracterizava a escravatura era a ausência de mobilidade da força de trabalho, a impossibilidade de o escravo mudar de senhor por vontade própria. Em contraste com esta situação, os assalariados de há séculos atrás, tanto os das cidades como os dos campos, eram verdadeiros saltimbancos, alugavam os seus préstimos a um patrão num dia e a outro patrão uns dias depois, e no intervalo descansavam até esgotarem o dinheiro e se verem na necessidade de trabalhar de novo. Em França as antigas organizações de resistência dos trabalhadores, as várias facções da Compagnonnage, estavam adaptadas à itinerância dos assalariados e ao carácter esporádico com que eles alugavam os seus serviços. No seu «tour de France», «volta à França», um assalariado era acolhido e protegido pelos outros membros da sua facção que estivessem nos lugares por onde ele passava.
O processo multi-secular a que Karl Marx chamou «acumulação primitiva do capital» consistiu, no âmbito social, na luta dos patrões e das autoridades políticas para obrigarem os assalariados a trabalhar regularmente. Leis contra a vadiagem, cadastragem obrigatória dos trabalhadores, fábricas-prisão, tudo foi usado para transformar assalariados itinerantes e esporádicos − e que queriam sê-lo − em assalariados fixos e permanentes. E assim, ao mesmo tempo que a escravatura diminuía de importância ou era abolida, aquele aspecto que mais claramente havia diferenciado o assalariado do escravo esbatia-se também. Na segunda metade do século XIX e no começo do século XX, tanto nos centros mineiros europeus como nas grandes plantações da América do Sul, onde os assalariados viviam em aglomerados isolados e as únicas lojas dependiam dos patrões, o sistema de dívidas veio completar e reforçar a fixação e a estabilidade da força-de-trabalho. Mais tardiamente, já no terceiro quartel do século XX, o arcaico sistema colonial português colocava numa situação semelhante a mão-de-obra africana dita «contratada».
É preciso que a condição da classe trabalhadora se tenha degradado muito, quer dizer, é preciso que a acumulação do capital tenha atingido níveis nunca antes alcançados, para que a situação se tivesse invertido e o que fora visto noutros tempos como uma intolerável fixação a um patrão se tivesse agora transformado numa verdadeira regalia. A precariedade do trabalho, que serviu para distinguir o livre do escravo, é hoje considerada como um aviltamento e uma degradação − uma escravização.
E o pior é que a reivindicação da estabilidade de emprego é inteiramente justa e urgente! Isto mostra até que ponto decaímos na luta de classes, depois de três dezenas de anos de acções defensivas, que corresponderam a recuos sucessivos. Nas décadas de 1960 e de 1970 muitos trabalhadores, um pouco por todo o mundo, lutavam para tomar em mãos as empresas e em numerosos casos as greves prolongaram-se através da ocupação dos estabelecimentos e da sua autogestão. Foi assim que se desenvolveu o processo revolucionário português em 1974 e 1975, com a ocupação de fábricas, de empresas comerciais e serviços e de latifúndios agrícolas. E hoje os trabalhadores têm de lutar para que os patrões os explorem todos os dias em vez de ser apenas quando calha.
Todavia, se das lutas dos precários resultar futuramente a criação de relações de solidariedade entre trabalhadores que hoje se encontram isolados e divididos, então será possível a partir daí avançar para algo mais do que o mero direito a não morrer de fome.
No Estado de São Paulo, no ramo escolar, curiosamente, conseguiu-se unir a estabilidade com a liberdade dos precários. A partir de um sistema de pontos, em que os professores mais antigos possuem vantagens para a contratação, os professores conseguem manter trabalho durante toda a vida sem nunca serem efetivos, concursados. Dessa forma, sabem que terão emprego por toda a vida e, ao mesmo tempo, não estão presos a mesma escola, podem se descolar.
A recente avaliação sobre os professores veio acompanhada de mudanças na forma de contratação tendo como objetivo diminuir a mobilidade dos profissionais. A Secretaria pretendia, mantendo os mesmos 50% de professores precários (130 mil cujos contratos têm que ser renovados todo ano), selecionar os melhores e fixá-los numa dada escola. Foi derrotada na justiça pelo sindicato. O seu objetivo é o de conseguir uma maior fixação, prender os professores a uma dada escola, e maior produtividade sem, no entanto, dar estabilidade a esses 130 mil contratados ao ano ou menos. Quer arrancar o máximo possível do trabalho sem sequer atender as prescrições legais que, como Estado, estabelece para os demais.
Se não somos escravos, somos preteridos, somos desprezados, somos negligenciados e não temos voz, ninguém nos ouve, só ouvem ao poder econômico que pode comprar votos. Só a ameaças a sobrevivência de todos é que pode frear a ganância. Nossas vidas já estão sendo dispensadas. O que temos mais a perder?