O sistema de coleta sofreu um profundo processo de organização a partir do momento em que o aumento da demanda e a ampliação do valor desses materiais ampliaram as vantagens de sua coleta, constituindo-se não apenas como atividade despendida pelos tradicionais coletores, mas como alternativa aos trabalhadores desempregados. Por Rafael Zanatto

No atual estágio de desenvolvimento da economia capitalista, o lixo, como são nomeados os restos do consumo humano, adquire valor à medida que é transformado novamente em matéria-prima. A partir da ideologia da responsabilidade ambiental, multiplica seu valor e pessoas “conscientizadas” o adquirem com o intuito de colaborar com a preservação da natureza. Mas o fazem não pela natureza, mas pelo modismo social que se expande entre todas as classes, a partir do bombardeio constante das propagandas publicitárias.

A demanda por um maior volume desses materiais pela indústria, assim como a proibição da coleta em lixões e a necessidade de ampliar a vida útil dos aterros sanitários, foram fatores importantes para o desenvolvimento desse processo. Com a ampliação do valor das sobras, os segmentos do mundo do trabalho implicados na coleta sofreram alterações profundas, que se orientaram do nomadismo à organização. Nos ateremos apenas à alteração das relações de produção pertinentes aos antigos catadores. Mas não nos esquivaremos de considerar a participação dos desempregados nessa atividade, embora aqui não sejam o foco principal da narrativa.

No início de sua prática, a coleta era praticada pelos excluídos do sistema de consumo, ou seja, os trabalhadores que não possuíam a regularidade necessária de renda para serem inseridos no sistema de crédito. Os catadores navegavam pelas ruas a empurrar carrinhos abarrotados com o material recolhido nos trajetos escolhidos mediante a avaliação das áreas a serem percorridas; as rotas mais viáveis para a circulação de seus instrumentos de trabalho, movidos a tração humana, lhes eram conhecidas; os melhores locais para coletar, ou seja, as áreas da cidade que mais produziam lixo, eram por eles freqüentadas e exploradas com exaustão. Os catadores nômades dominavam as decisões, escolhiam seus horários de trabalho e as rotas que provavelmente percorreriam durante o dia. Isolados e à margem, mantinham-se autônomos das relações de produção capitalistas.

O sistema de coleta sofreu um profundo processo de organização a partir do momento em que o aumento da demanda e a ampliação do valor desses materiais ampliaram as vantagens de sua coleta, constituindo-se não apenas como atividade despendida pelos tradicionais coletores, mas como alternativa aos trabalhadores desempregados, fruto das alterações de outros processos produtivos, como a colheita manual da cana-de-açúcar. Com o auxílio dos gestores provenientes das universidades e das organizações não-governamentais, essa mão de obra ociosa, assim como uma parcela significativa dos catadores autônomos, adequaram-se ao sistema de organização cooperativo. A adoção da ideologia administrativa cooperativa pelos associados a esses empreendimentos acabou por produzir relações sociais novas, que necessitam desmantelar a imagem do patrão, do mesmo modo que aprisionaram os antigos “nômades” a relações de produção organizadas coletivamente.

Cabe-nos considerar que o capitalismo em seu estágio atual de desenvolvimento se recupera da resistência às suas relações de produção, à medida que se vale da sutileza do cooperativismo para submeter a uma organização os trabalhadores autônomos. O processo de destruição da cultura nômade se faz diante da competitividade pelo material, alvo de atravessadores que se valem do trabalho dos catadores para ampliar seu lucro. O cooperativismo então surge como uma alternativa à precarização do trabalho. O nomadismo, com o desenrolar desse processo, tende a ser substituído pelos empreendimentos coletivistas.

Noutro eixo, não menos importante, a organização dos trabalhadores desempregados pode ser apreendida como meio de atenuar as lutas sociais, provendo-lhes de sua cota de consumo, adquirida a partir do re-aproveitamento das sobras do consumido. Por outro lado, quem controla as novas relações sociais que desabrocham são os próprios trabalhadores. Cabe a eles acirrar as lutas sociais, acelerar o processo de transformação justamente a partir do embate com os grandes produtores de material, como os supermercados. Serão os trabalhadores organizados sob o cooperativismo e a partir de suas práticas, que viabilizarão ou não a alteração de elementos das relações de produção capitalista, lidando com as disparidades internas entre os elementos de nomadismo, cooperativismo e obediência às regras de gestão capitalista a que foram submetidos outrora. Desses elementos, cabe aos trabalhadores encontrar os caminhos que os levem a suprimir o mando e a produzir espaços de liberdade coletiva que acabe por proporcionar não apenas a sobrevivência, mas condições dignas de trabalho.

3 COMENTÁRIOS

  1. Bom texto Rafael.Mas é interessante notar que, enquanto não há potencial de mercado, não surgem empresas, cooperativas, nada. Ficam somente os mais precarizados a coletar o lixo. Quando há margem possível para lucro aparece quem esteja interessado em ensinar-lhes a cooperar, para tornar mais produtivo o trabalho.

    Por outro lado, a realidade de Assis acabou opondo os catadores da cooperativa contra os independentes que insistiam em continuar coletando sozinhos, com seus carrinhos próprios.Houve coletores que reclamaram estarem sendo impedidos pela prefeitura de fazer coleta porque não se incluíram na cooperativa.

    Lembrando agora do texto sobre os desempregados, me recordei que muitos catadores de Assis também fazem bico de garçon. No entanto, nem a Unesp e nem outras insituições se interessam em financiar tais trabalhadores para que possam montar o seu próprio buffet.

  2. Parabéns Rafael!!!
    Fico muito feliz por ver este seu artigo ser publicado, principalmente com o tempo por ti dedicado à ele. É importante impressões e exemplos de práticas como as suas.

    =D

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