A pretexto da crise, esta filial da Volkswagen em Portugal propôs aos trabalhadores um acordo que estes, em votação “secreta”, recusaram. Enquadrada num breve historial da fábrica e da situação actual, publicamos a primeira de algumas entrevistas que fizemos a trabalhadores da empresa. Por Passa Palavra
1. A AutoEuropa
Localizada no concelho de Palmela, distrito de Setúbal, a AutoEuropa resultou de um empreendimento conjunto entre a Ford e a Volkswagen (VW), beneficiando de vantagens propiciadas pelo Estado português. Com uma área total de cerca de 2 milhões de metros quadrados, representa o principal investimento estrangeiro em Portugal, no valor de 1.970 milhões de euros. Foi inaugurada em 1995 e a VW passou a controlar todo o projecto em 1999. A capacidade produtiva (180 000 veículos por ano), catalisadora do aparecimento de uma série de empresas, representa 9.218 postos de trabalho, só na zona de Palmela: 3.028 directos e 6.190, indirectos, entre os fornecedores presentes no Parque Industrial da fábrica (13) e serviços distribuídos na região. Do total de fornecedores (712), a maior parte é oriunda da Europa (638), sendo 12 no resto do mundo e 62 empresas nacionais dispersas pelo país, cujo número de trabalhadores não é possível quantificar.
2. O grupo VW
Em 2008 o grupo VW registou um aumento de 4,5% no volume de negócios (113,8 mil milhões de euros) em relação a 2007 e um crescimento de 15% no lucro líquido (4,75 mil milhões), tendo o lucro operacional aumentado de 6,2 mil milhões para 6,3 mil milhões. Os 5 principais administradores aumentaram, em 2008, as remunerações anuais de 16,5 milhões de euros para 45,4 milhões, o que representa um aumento de 175% em relação a 2007. Na recente reunião anual de accionistas, foi decidido distribuir dividendos referentes a 2008 superiores em 700 milhões de euros aos de 2007.
3. 2009
As exportações nacionais recuaram 20,8% nos primeiros três meses de 2009, face ao período homólogo de 2008. A Autoeuropa produziu menos 4327 veículos e já suspendeu a produção por diversas vezes. Actualmente, está a produzir em dois turnos, para 80 mil unidades (contra as 93 mil produzidas em 2008). Desde o princípio do ano a empresa, que tem 2750 trabalhadores efectivos, colocou cerca de 250 trabalhadores temporários em formação. À semelhança do que aconteceu em outras alturas, paira a ameaça de deslocalização, não devendo o Estado português receber qualquer indemnização.
4. O pré-acordo laboral
Assinado entre a administração e a Comissão de Trabalhadores (CT), para vigorar de 1 de Setembro de 2009 a 31 de Dezembro de 2011, o pré-acordo garante todos postos de trabalho nos próximos dois anos, incluindo trabalhadores contratados a prazo que terão renovação de contrato com a passagem de alguns a efectivos. Esse pré-acordo mantém os dois turnos com mais dias de paragem ao longo do ano a serem recuperados em trabalho ao sábado pago como trabalho normal, sem remuneração extraordinária. Os funcionários recebem oito horas por cada sábado em dinheiro e acumulam ou abatem seis horas aos down days (dias em que a empresa suspende a produção e o trabalhador tem direito a receber à mesma e que não constituem período de férias). O saldo positivo é pago com o salário de Dezembro. Assim, quem tiver 26 horas de saldo negativo – ultrapassados os 22 down days anuais – trabalha um sábado e passa a ter 20 horas de saldo negativo. Os restantes sábados são pagos a dobrar (16 horas). Mas, em 2005, a administração da empresa conseguiu que os sábados e feriados passassem a ser pagos apenas a 100% durante lançamentos de novos produtos e em cinco sábado/ano em picos de produção.
No plenário de trabalhadores, a 17 de Junho, em 3.040 inscritos, votaram 2.668. Em votação secreta (veja-se os limites deste “secretismo” na quarta resposta da entrevista que se segue), o “não” ganhou com 1381 votos, contra 1252 do “sim”. Houve 28 votos em branco e sete nulos. Menos de 48 horas depois, um grupo de trabalhadores anónimo, pôs a circular uma petição para que as negociações fossem retomadas.
5. Entrevista com um trabalhador da AutoEuropa contratado a termo há três anos
Por que é que este pré-acordo foi recusado pelos trabalhadores?
Não é que os trabalhadores não queiram aceitar um acordo. Sabemos que há crise, sabemos essas coisas todas, mas só não aceitámos é o pré-acordo que fizeram. Há crise, querem fazer um acordo com os trabalhadores para ver se resolvem isso da fábrica, das crises todas. Só que propuseram uma cena aos trabalhadores e então os trabalhadores não aceitaram.
Como é que surgiu esse pré acordo?
A Comissão de Trabalhadores (CT) foi fazer um acordo com a administração: então fizeram um pré-acordo que impôs bué de cenas [muitas cenas] e uma das cenas é a que a gente não aceitou. Os trabalhadores têm down days. Sabes o que são os down days? São atribuídos 22 dias no início do ano, para balançar no mercado quando há baixa de produção. Como há crise, há pouca produção, os trabalhadores vão para casa e gastam essas horas, e quem ficar com saldo negativo chega ao final do ano e tem que pagar. Os que têm dias negativos fazem sábados para abater esses dias negativos; os que têm dias positivos fazem sábados na mesma, ficam com mais down days e no fim do ano recebem. Agora eles propuseram os sábados como dias normais de trabalho. Ou seja, vamos trabalhar de segunda a sábado e não há horas extraordinárias. Dantes os sábados eram pagos a 200% e depois, passado um ano, fizemos um acordo e já era a 100%; depois, passado uns meses, novo acordo e ficou em 75%. Agora querem 0%! Além de que não acumulavas aos down days as 8 horas que fazias aos sábados. Só acumulavas 6; e as outras duas horas?… E depois havia muitas contradições: há crise, há pouca produção, como é que vais fazer sábados, horas extraordinárias? Fizeram o plenário e como havia bué de contradições, coisas mesmo sem lógica, os trabalhadores não aceitaram.
Mas disseste que os trabalhadores queriam um acordo?
Saiu um abaixo assinado para reverem o acordo. Os trabalhadores querem uma solução para a crise, só não aceitaram a solução que eles impuseram. O “não” é isso. Fizeram ameaças: disseram que despediam os trabalhadores, entrávamos em lay off ou íamos trabalhar só um turno perdendo o subsídio (15% do salário). Fizeram ameaças se não aceitássemos o acordo. Se a gente aceitasse, não despediam ninguém e a gente fazia sábados a horas normais. Fazíamos 2 sábados este ano e acho que é 10 ou 20 para o próximo ano. Isso começou a contradizer tudo: se há crise, não precisam de sábados, e eles disseram que fazemos sábados quando há produção alta e quando não há vamos para casa… Dissemos ok, mas em Setembro marcaram dois sábados e está previsto uma baixa de produção em Setembro… como é que marcaram dois sábados?! Essas contradições, e outras cenas que já houve dantes com o anterior acordo, fizeram com que o trabalhador dissesse não a este acordo.
Sabes se quem votou contra foi pessoal mais afecto ao sindicato ou à CT?
Nas votações há 6 mesas: a da administração (as chefias, os cabeçudos) votou “sim”; a mesa 2, dos mais velhos, os veteranos que estão lá há muito tempo, também votou “sim”; nas mesas 3, 4 e 5 da maioria, dos que estão há 8 ou 10 anos, ganhou o “não”; na mesa 6, dos que estão há menos tempo, os contratados votaram “sim”. Porque são os mais precarizados, os que estão a ser ameaçados. A maioria é para serem efectivos, e eles não querem passar ninguém a efectivo e estão a ameaçar mandá-los embora.
Como se fazem os acordos?
A administração propõe o acordo. A CT vai negociar. Senta-se à mesa, faz reuniões. Depois faz um plenário, fala com os trabalhadores sobre o que a administração propôs e depois a CT, com base se é justo ou não, se aceita ou não, negoceia com a administração e fazem um pré-acordo. A CT vai propor aquilo aos trabalhadores e os trabalhadores assinam se aceitam ou não.
Vocês vão sendo informados do que se passa?
Vão metendo papéis a informar do que está a ser negociado, daquilo que eles decidem, ou seja, a administração diz “estamos em crise, se calhar vamos ter que entrar em lay off ou despedir trabalhadores ou meter muitos down days que o pessoal vai ficar com muitos negativos”… Dão três opções e a CT informa os trabalhadores e vai negociar com estas três opções, e então fazem o acordo. Do que decidirem informam os trabalhadores: “eles propuseram isto e a gente negociou assim”. Os trabalhadores vão votar se querem ou não.
Portanto são informados?
Somos, de certa forma, mais ou menos informados.
Quando vão negociar já discutiram com os trabalhadores?
Sim, é aceite quando a gente assina.
Antes de votarem este pré-acordo, já tinham discutido convosco primeiro?
Antes de ir a votos há um plenário… Havias de ver este… toda a gente estava contra. A maioria que falou não aceitava o pré-acordo porque só prejudicava os trabalhadores e só beneficiava a administração.
Então, foi bem discutido?
Foi. Tivemos plenário, discutimos, conscientes, fomos a votos e o “não” ganhou. Mas mesmo assim queríamos que houvesse um acordo, mas não aquele.
Como é que os trabalhadores estão organizados para tratar dos assuntos que lhes interessam?
Há a CT e os sindicatos, que são vários. Acho que há três.
Como é a relação entre os sindicatos e a CT?
Eles dizem que a CT vai muito na conversa da administração. Tanto que no último plenário a acusaram muito. Dizem que faz acordos mais a beneficiar a administração. O sindicato não. O sindicato é aquele que de certo modo apoia os trabalhadores, faz manifestações contra aquelas coisas que ao longo dos anos têm sido sempre aprovadas, e a CT estava lá e mesmo assim houve muitas muitas coisas que passaram e que os trabalhadores não queriam. A CT não faz manifestações. Quem faz são os sindicatos. A CT tem aberto as pernas sempre a tudo, tudo. Tanto que neste plenário queria que a gente votasse “sim”… como sempre passou o “sim”… mas os trabalhadores agora abriram os olhos.
Como são as relações entre os trabalhadores mais estáveis e os contratados?
São boas. Os que estão há mais tempo, os mais estáveis, sempre apoiam os contratados. Porque em todos os postos de trabalho estão 3, 4 ou 5 contratados e se os tirarem é sobrecarga para os que estão lá. E depois os contratados sempre se deram bem com os que estão lá há muito tempo. Tanto que para fazerem ameaças, eles ameaçam com os contratados porque sabem que eles os apoiam um bocado.
Mas o “não” ganhou também por estarem fartos da redução dos direitos?
Os trabalhadores querem um acordo, mas este não. Porque não queriam mesmo, porque é um acordo mau e há outras soluções. É por isso que votaram contra. Não é porque já estão fartos das cenas e agora vão passar uma rasteira a administração, não é nada disso. Este “não” é porque há contradições e há outras soluções.
Achas que a CT podia ter feito melhor ou os sindicatos?
Não sei se sindicatos têm muito voto nas negociações, se intervêm… acho que é só mesmo a CT e é a voz só de alguns que vão a reuniões, discutem e decidem um pré-acordo que vão propor aos trabalhadores que votam “sim” ou “não”. Também eles não podem decidir qualquer coisa e então vão aos trabalhadores que votam.
Como é que os trabalhadores controlam os seus representantes e o que se passa nas reuniões com a administração?
A gente não sabe nada. A gente só é informado… há um papel lá fora… a gente tira o papel… lê o que a administração propôs, o que a CT negociou, o que está para negociar… só isso. Agora as reuniões,… a gente não participa, não sabe o que se passa lá dentro.
Estão todos ligados, os trabalhadores da AutoEuropa com os do Parque Industrial?
Estão, estão todos unidos, são solidários.
E os das outras empresas da VW de outros países têm-vos dado apoio?
Não. Não temos recebido.
6. Últimos acontecimentos
24 de Junho – A administração anunciou as medidas que decidiu adoptar: não irá dispensar “para já” os 250 trabalhadores com contrato a prazo; a produção continua a dois turnos; vai reduzir a produção, marcando dez dias de lay off, entre Setembro e Dezembro. Estas medidas poderão ser alteradas em função de oscilações nos volumes de produção. Quer envolver a CT na aplicação do lay off e, numa carta enviada aos trabalhadores, o director-geral lamenta a rejeição pelos trabalhadores do pré-acordo e diz que agora não tem condições para o alterar. A CT disse à comunicação social que os trabalhadores vão contestar, por todos os meios legais, o processo de lay off, considerando que as medidas anunciadas são penalizadoras e significam uma retaliação pelo chumbo [não aprovação] do pré-acordo.
25 de Junho – A administração mostrou disponibilidade para a recuperação do pré-acordo, o que a CT confirmou, admitindo que, se o pré-acordo voltar à mesa de votos e for aprovado, o lay off poderá ser suspenso. Passa Palavra