A condição para que o empregado realize o seu trabalho envolve quase sempre a transgressão das prescrições e das instruções recebidas dos superiores hierárquicos. Mas o sofrimento experimentado na hora de preencher a distância entre o trabalho prescrito e o real leva as pessoas a mergulharem num ativismo tanto mais intenso quanto mais este permite deixar de pensar, de refletir sobre a realidade e de fazer passar desapercebido o próprio sofrimento. Por Emilio Gennari

3. O trabalho entre prazer e sofrimento

Aproveitando do instante em que Nádia permanece silenciosamente pensativa, o secretário levanta e dá uma gostosa espreguiçada. Entre o incômodo da tendinite, a tensão provocada pelas descrições do relato e a curiosidade em relação a seu possível desfecho, o corpo parece se recusar a continuar o trabalho. Para quem já estava acostumado com a escuridão do não-saber, qualquer raio de sol ganha as feições de uma arma que, ao ferir a cegueira antiga, provoca a desagradável sensação de que tudo o que parecia sólido começa a derreter sob os próprios pés.

Ao perceber a tentação do seu ajudante, a coruja limpa a garganta para atrair a atenção e, ao dirigir para si os olhares titubeantes do homem corpulento que está diante dela, aponta a asa para os papéis e, com voz firme, ordena:

– “Já pra mesa!”.

Intimidadas, as mãos puxam a cadeira e as pernas se dobram para que o corpo possa se apoiar no desconfortável assento de madeira, cujo único mérito é o de evitar qualquer cochilo do seu usuário.

Em seguida, a ave faz um sinal de aprovação com a cabeça e, ao piscar os olhos, diz:

– “Por incrível que pareça, é no trabalho que os seres humanos passam os melhores anos de suas vidas envolvidos por sentimentos contrastantes que misturam angústia, felicidade, medo, sofrimento, esperanças e ilusões. É neste turbilhão de sensações que cada pessoa pensa a sua relação com o trabalho, interpreta as condições de sobrevivência que esta lhe proporciona, socializa sua leitura da realidade, reage ao que percebe como ameaça, organiza-se mental e fisicamente para dar conta do que lhe é exigido e intervém no processo de produção com formas de comportamento que retratam o sentido dado aos vínculos que estabelece com os colegas.

Este sentido é fortemente influenciado pela forma na qual a rotina do trabalho se encaixa e entra em sintonia com as experiências passadas, com as expectativas atuais ou, ao contrário, representa algo tão novo e inédito que questiona suas percepções anteriores e projeta para o futuro novos sonhos e anseios de afirmação pessoal. Lidando, ou não, com tarefas que proporcionam um sentimento de auto-realização, o sujeito tem no trabalho um elemento essencial na construção de sua personalidade e da identidade social na qual se insere pelas condições de vida possibilitadas pelo salário recebido.

A exploração da inteligência e da criatividade, individual e coletiva

Além da resposta à luta pela sobrevivência, do medo de vir a integrar as estatísticas do desemprego, da pressão da chefia, da convivência com os colegas e da realização dos próprios sonhos, trabalhar implica sempre em assumir responsabilidades não-previstas, em tomar decisões que, independentemente do cargo, são fonte de sofrimento pelas incertezas que projetam em cada empregado. Isso se deve ao fato de que há sempre certa distância entre o trabalho prescrito e o real. Ou seja, uma coisa são as seqüências, as tarefas e as normas ditadas pela empresa e outra, bem diferente, é a forma pela qual são praticadas, moldadas, adaptadas ou negadas no cotidiano dos processos produtivos para que os funcionários possam dar conta das metas exigidas.

aliendepre1A condição para que o empregado realize o seu trabalho envolve quase sempre a transgressão das prescrições e das instruções recebidas dos superiores hierárquicos. Prova disso é que, em praticamente todas as categorias profissionais, uma das formas de manifestar o próprio descontentamento é cumprindo à risca o que foi ordenado pela empresa. Em várias cidades do Brasil, por exemplo, já conhecemos protestos de motoristas de ônibus que foram realizados tendo como base apenas a não-violação do Código de Trânsito e até mesmo manifestações de descontentamento da própria polícia federal através da ‘operação padrão’ aplicada aos procedimentos de averiguação de passageiros no desembarque dos aeroportos. A paralisação das atividades, os atrasos e as situações de caos que resultaram do estrito respeito às normas prescritas são mais que suficientes para comprovar que ou o trabalhador coletivo usa as artimanhas, truques, macetes e quebra-galhos acumulados no exercício das tarefas e na lida diária com problemas inesperados ou o serviço pára, entra em pane, se torna inviável”.

– “Se é assim, quer dizer que a inteligência e a criatividade individuais e coletivas são mobilizadas a cada instante e isso pode até proporcionar um sentimento de satisfação e realização pessoal. Enfim, não vejo o que há de tão ruim nisso a ponto de causar sofrimento!”, afirma categórico o secretário ao fixar o olhar no rosto da coruja.

Ouvida a questão, Nádia se aproxima vagarosamente do seu ajudante, aponta a asa direita para os óculos e assumindo feições que mesclam provocação e reprovação retruca em tom irônico:

– “Se os cinco graus das lentes que cobrem seus olhos não servissem apenas para disfarçar sua feiúra, você já teria conseguido enxergar além do umbigo. De fato, é inegável que, sob a influência do medo da demissão e das demais pressões que tomam conta do local de trabalho, a maior parte das pessoas se revela capaz de mobilizar um verdadeiro arsenal de inventividade ora para cumprir as metas, ora para ficar em posição mais vantajosa em relação aos colegas.

O problema, porém, é que, ao agir desta forma, o indivíduo não só pode criar situações constrangedoras para os demais, como se coloca à margem dos procedimentos oficiais e infringe os regulamentos e as ordens da empresa. Em outras palavras, usar a própria inteligência para lidar com o imprevisto, com o inusitado, com o que ainda não foi assimilado oficialmente como método leva o sujeito a uma ação semiclandestina pela qual a norma desrespeitada o coloca na incômoda posição de transgressor da lei. Até que nada acontece, a chefia faz vista grossa, pois tem plena consciência de que sem isso o trabalho não anda. Mas quando a apuração de falhas, erros, incidentes e acidentes são atribuídos a procedimentos espúrios e indesejados, os superiores hierárquicos não hesitam em denunciar o trabalhador envolvido como incompetente, desleixado, nada sério e incapaz.

Sem medo de errar, podemos afirmar que, de um lado, o quebra-galho é tolerado por qualquer patrão na medida em que contribui para atingir as metas estabelecidas, mas, de outro, a sua prática é uma ameaça que pende sobre a cabeça de cada empregado e pode cortá-la como uma guilhotina sempre e quando sua descoberta ‘oficial’ permite eximir a empresa de suas responsabilidades concretas em relação às condições reais nas quais o trabalho é realizado.

Resumindo, podemos dizer que a prática do quebra-galho e do macete levam o sujeito a correr dois riscos. O primeiro é o de ser apontado como único culpado quando de conseqüências nocivas para a segurança das instalações e dos demais funcionários. E, o segundo, é de assumir a incômoda condição de fora-da-lei, o que gera um estado de angústia permanente até mesmo quando o processo de trabalho flui sem problemas aparentes.

A situação que acabamos de descrever coloca o indivíduo num beco sem saída: se ele quebra as normas, corre o risco de ser punido; mas se não o faz, é acusado de falta de iniciativa, de fazer corpo mole, de ser incapaz de atingir metas que os demais costumam cumprir. Preso nesta engrenagem, o sujeito vivencia momentos de ansiedade, abre espaço a mal-entendidos, sonega informações, fecha-se sobre si mesmo e escancara a porta da desconfiança em relação à eficiência real de sua criatividade e à dos colegas. Esta postura acaba alimentando antagonismos e conflitos com outros profissionais ou equipes que desempenham tarefas parecidas e leva a vivenciar um sentimento de injustiça que nasce do não-reconhecimento aberto do próprio esforço e dos méritos pessoais por parte dos demais funcionários e da empresa.

A adoção de programas participativos de qualidade total ou das chamadas novas formas de gestão do capital humano não altera significativamente esta realidade. Em grau maior ou menor, há sempre certo período de tempo entre a descoberta do quebra-galho ou do macete e sua aprovação pela empresa. Isso se deve ao fato de que a aceitação das idéias apresentadas depende da comprovação de sua viabilidade e eficiência e, portanto, precisa de resultados concretos vindos da experimentação empírica que antecede a sua apresentação e na qual o funcionário acaba assumindo a responsabilidade de testar se o fruto de sua criatividade pode dar certo ou não.

Relação doença-trabalho: a individualização do sofrimento e a assepsia do contexto

A esta realidade corriqueira soma-se outra que costuma ser silenciada tanto pelos patrões como pelos sindicatos, mas que, nem por isso, deixa de ter um impacto profundo na carga de tensão que acompanha as horas despendidas na empresa. Ainda que haja uma percepção e um reconhecimento oficial dos riscos e dos fatores estressantes relacionados ao ambiente de trabalho, o discurso empresarial e sindical costuma não mencionar o perigo. A omissão dos efeitos que os riscos podem produzir no corpo do trabalhador é justificada pela suposta necessidade de não atemorizar desnecessariamente as pessoas ou é desprezada como algo distante, insólito e improvável de acontecer. Se, de um lado, isso reduz o estado de alerta do coletivo, de outro, esta opção é um dos elementos pelos quais a empresa escolhe que aspectos e que percepção do perigo pode ser descrita ou silenciada e que tipo de apresentação asséptica dos problemas relativos à saúde do trabalhador contribui para esconder ou minimizar a relação entre o risco e o perigo.

O fato de a hierarquia dificultar a reconstrução da relação doença-trabalho pela omissão de informações essenciais sobre os processos produtivos ou pelo menosprezo de seus perigos não implica na incapacidade do empregado perceber na saúde dos demais e na própria as marcas da dor deixada pelo desempenho diário de suas tarefas. Apesar de não saber expressar em palavras o que está acontecendo ou de não ter uma visão de conjunto unitária e coerente, a quase totalidade dos empregados deixa a entender que há algo errado ao reconhecer, por exemplo, que ‘aqui o sistema é bruto’, ‘naquele setor é jogo duro’ ou, ainda, ‘trabalhar nesta máquina é bicho feio’. O que parece normal, superficial e simplório encerra uma carga de angústia que, dia-após-dia, torna-se mais pesada e esmagadora na medida em que o aumento das exigências empresariais não é acompanhado pela melhora das condições em que estas vão se tornar realidade”.

– “Então, estamos diante de um sofrimento perante o qual trabalhadores e trabalhadoras devem se defender para continuar dando conta das tarefas exigidas e das metas impostas…”, balbuciam os lábios ao temer um desfecho inesperado.

– “Exatamente! Entre as formas de defesa mais comuns estão os comportamentos que levam o sujeito a se desvencilhar das responsabilidades, a se recusar a tomar qualquer iniciativa, a remeter toda decisão a uma posição oficial da chefia ou a se ater às normas que constam do regulamento. Neste caso, o funcionário viabiliza uma espécie de operação padrão solitária e intermitente na medida em que o fantasma da demissão ganha corpo diante das acusações de implicância e falta de compromisso com a empresa, o que desgasta sistematicamente a proteção com a qual procurava se cercar em caso de dificuldade.

Em sentido oposto, encontramos atitudes de fechamento numa autonomia máxima, de segredo, de silêncio diante dos superiores e dos próprios colegas. Apesar do caráter intrinsecamente coletivo do trabalho, nos deparamos aqui com empregados que fazem o impossível para evitar qualquer situação de confronto, de conversa, de discussão, de conflito, de envolvimento, a ponto de se recusar a cumprimentar os colegas. No lugar de almejar o encontro, o sujeito faz o impossível para privilegiar os momentos em que este é materialmente impossível e, no lugar de se confrontar com os demais, prefere se isolar num canto do refeitório, tomar café antes ou depois da turma, entrar e sair do vestiário quando este está mais vazio, se envolver em trabalhos que exigem esforço redobrado e tamanho grau de concentração que pensar em trocar idéias é algo simplesmente fora de lugar. Ao optar pelo ‘cada um por si’ (que não poucas vezes descamba para o ‘deixa correr frouxo para ver no que vai dar’), o indivíduo acaba dando sopa ao azar. Estou me referindo, por exemplo, à ocorrência de tonturas ou desmaios provocados por produtos químicos (e que acometem o empregado em lugares onde ele não pode contar com a ajuda de ninguém), ou ao não apontar o desgaste de ferramentas e de peças do maquinário onde trabalha e cuja ruptura pode se reverter contra ele mesmo já que é praticamente impossível controlar a priori o momento exato em que tais incidentes podem ocorrer. Além disso, esta orientação tende a bloquear a construção de qualquer sentimento de coletividade na medida em que leva a desconfiar seguidamente da postura e das afirmações dos próprios colegas ou a interpretar suas respostas como expressão de hostilidade contra o próprio jeito de trabalhar.

Outra forma de defesa bastante comum consiste em passar por cima do chefe imediato para se dirigir diretamente ao superior deste. O problema é que, ao ser deixado deliberadamente de lado e ao ser colocado, assim, numa posição desconfortável, o primeiro pode reagir de forma a colocar em maus lençóis o trabalhador que menosprezou o seu papel. Ao perceber esta possibilidade, a maior parte dos colegas prefere enfrentar em silêncio o próprio sofrimento ou expressá-lo só no consultório médico, quando ‘já não dá mais para agüentar’ os efeitos desse desgaste. Infelizmente, porém, são bem poucas as chances que os trabalhadores têm de encontrar profissionais que vão às causas remotas dos sintomas físicos que apresentam ou que, ao menos, se dão ao trabalho de perguntar, por exemplo: onde é que você trabalha? O que te deixa mais estressado na rotina das tarefas que você executa? Que produtos você manipula? Ou, ainda, se esta dor tivesse voz, que aspectos do seu trabalho apontaria como responsáveis?

Isso significa que, longe de poder contar com uma ajuda mais abrangente, a individualização do sofrimento e a leitura asséptica que dispensa a compreensão do contexto em que o sofrimento se manifesta, oferecem como resposta a absurda recomendação de se acalmar, não ficar nervoso, procurar dormir oito horas de sono restaurador, comer na hora certa, como se isso dependesse unicamente da vontade do sujeito. No máximo, para mostrar que a consulta valeu a pena, o consolo vem através de uma receita cujo conteúdo, na melhor das hipóteses visa reduzir a dor física e estabilizar a capacidade de segurar o tranco. E aqui quando não há despreparo dos médicos há, pelo menos, certa dose de conivência com uma realidade que se prefere desconhecer ou que, ao ser revelada nas consultas, não passa do segredo entre médico e paciente sem ter assim a menor chance de virar base para um diagnóstico mais completo até mesmo nos casos que teimam em se repetir com freqüência assustadora.

Outra reação igualmente comum entre os empregados consiste em se desfazer de trabalhos particularmente penosos repassando-os para os novatos ou para os terceirizados cuja inexperiência ou rotatividade facilitam à empresa a tarefa de apagar os vestígios das doenças profissionais ou dos acidentes mais graves. A esperteza de alguns, passa a ser paga por todos na medida em que o sistema de comunicação empresarial não enfrenta críticas consistentes na hora de falsear os dados sobre as ocorrências e o perigo representado pelo desempenho de determinadas tarefas nas condições próprias do processo de trabalho.

A soma destes elementos aponta a normalidade do aparecimento de atitudes defensivas que ganham formas diferenciadas a depender da personalidade e do histórico profissional de cada funcionário e que, não poucas vezes, resvalam em acusações gratuitas de incompetência ou em expressões de agressividade próprias de inimigos jurados e não de colegas de trabalho.

aliendepre2Em geral, o sofrimento experimentado na hora de preencher a distância entre o trabalho prescrito e o real, quando respondido pelas formas de defesa que apresentamos acima, leva as pessoas a mergulharem num ativismo tanto mais intenso quanto mais este permite deixar de pensar, de refletir sobre a realidade e de fazer passar desapercebido o próprio sofrimento. Trata-se de vencer a ansiedade e a tensão com a fadiga física. Quanto mais horas e mais rápido se trabalha, mais o tempo passa depressa, mais se garante a aproximação dos próprios sonhos, menos se discute, menos se lembra do perigo existente, menor o esforço para esquecer dos desgostos e das situações desgastantes que permeiam o cotidiano”.

Anestesia do sofrimento

– “Mas além de alívio, isso pode vir a ser um tiro no pé”, prorrompe o homem ao perceber a ambigüidade das formas pelas quais trabalhadores e trabalhadoras buscam se proteger do sofrimento.

– “Na mosca!”, confirma Nádia com um gesto que parece unir as peças do quebra-cabeça num conjunto que esboça uma imagem ainda fragmentada e nebulosa. “De fato, ao mesmo tempo em que as estratégias defensivas buscam fortalecer as condições que permitem a um indivíduo ou grupo de resistir aos efeitos prejudiciais do sofrimento sobre o seu equilíbrio mental, ela pode funcionar como uma armadilha na qual as pessoas são anestesiadas e se tornam insensíveis a tudo aquilo que as faz sofrer. Ao proporcionar certo grau de adaptação ás pressões que vêm de todos os lados e estabilizar a relação entre o empregado e a organização do trabalho, as estratégias de defesa acabam alimentando uma resistência à mudança tanto maior quanto mais delicada, difícil e psicologicamente sofrida foi a construção destas mesmas estratégias. Ou seja, quando trabalhadores e trabalhadoras conseguem estruturar e sustentar suas formas de reação ao sofrimento, eles e elas não só hesitam em questioná-las como buscam transformar sua manutenção em objetivo a ser conquistado a qualquer preço e não titubeiam em direcionar seus esforços para afastar quem ameaça desestabilizá-las.

Mas isso não é tudo. Ao aplanar o caminho para que o sujeito se acostume aos desafios do trabalho, as reações que descrevemos acima o levam a se adaptar aos riscos, a deixar de perceber a gravidade dos perigos que o cercam e a impedir, ao menos parcialmente, que ele tome consciência da exploração. Neste contexto, as denúncias sindicais produzidas sem o devido conhecimento da realidade e de como esta é apropriada pelos empregados, com uma linguagem agressiva ou incompreensível a quem não integra qualquer organização e com baixíssimo envolvimento da base diretamente interessada, pode produzir o efeito oposto ao desejado ou, quando isso não acontece, um fortalecimento dos próprios mecanismos de defesa.

Esta reação aparentemente contraditória dos empregados torna-se compreensível na medida em que sua postura defensiva leva-os a interpretar o sofrimento não mais como fruto da exploração do trabalho, mas sim como resultado do enfraquecimento das estratégias com as quais pretendem enfrentá-lo. Na medida em que vai se apagando a percepção desta relação com o processo produtivo, cresce, contraditoriamente, a defesa dos mecanismos de proteção contra o sofrimento que passam a ser vistos como promessa de alívio imediato e seguro. Dobrado sobre si mesmo, o empregado experimenta uma gostosa sensação de afastamento da realidade e de relaxamento tão sensivelmente eficaz que o faz se sentir bem consigo mesmo. Em função disso, ele passa a estruturar suas ações, sonhos e desejos em volta de algo que nasceu para defendê-lo de uma realidade que precisa ser eliminada e não para que cessem as ameaças, os desconfortos, as dores e as frustrações que vem dela e lhe proporcionam uma constante sensação de insegurança.

Ao servir-se dos mecanismos de defesa para se adaptarem às pressões do trabalho e ao defendê-los de espada na mão, homens e mulheres desqualificam, afastam e até mesmo agridem aqueles que questionam estes mecanismos ou se mostram reticentes em adotar as posturas assumidas pelos demais. Neutralizados os elementos contrastantes, as estratégias de defesa deixam aberto o caminho para a auto-aceleração do ritmo de trabalho por parte dos indivíduos e das equipes envolvidas (o que favorece as políticas de produtividade das empresas), para a elevação das pressões de cumprimento das metas e, por sua vez, para um ulterior fortalecimento dos mecanismos de defesa como forma de suportar o peso das novas demandas.

Trocado em miúdos, podemos afirmar que esta forma de reação espontânea diante do sofrimento leva pessoas e equipes a levantar uma barreira protetora. Esta cerca, porém, ao proporcionar uma aparente defesa individual ou coletiva conduz a uma adaptação às ameaças e aos desafios do trabalho. Graças aos mecanismos e às relações que se desenvolvem, trabalhadores e trabalhadoras começam a não ver claramente a exploração que pesa em seus ombros e a gravidade das formas pelas quais esta se manifesta. Anestesiados por suas reações espontâneas, chegam a acreditar piamente que o jeito é reforçar a cerca e não lutar contra a realidade em função da qual foi erguida. Esta é a razão pela qual entram em choque com quem questiona e enfraquece a impressão de alívio e segurança que os mecanismos de defesa proporcionam. Empenhados nesta tarefa de exorcizar o retorno da ansiedade e da insegurança, os empregados não percebem que o patamar de adaptação ao trabalho assim atingido torna-se ponto de partida de um novo aperto por parte da empresa cujas relações aprimorarão as possibilidades de explorar em benefício próprio o que os empregados construíram para se proteger do sofrimento vivenciado no cotidiano do trabalho”.

– “O que não consigo entender – diz o ajudante ao coçar a cabeça – é porque as pessoas não conseguem se dar conta disso…”.

– “Pela mesma razão pela qual o burro, após apanhar do dono, olha para a cenoura e apressa o passo toda vez que este faz o chicote assobiar no ar. Para evitar a dor no seu lombo, ele acelera o seu caminhar, ainda que esteja estafado. Isso não quer dizer que ele pode continuar assim indefinidamente. Mas o próprio dono sabe que, esgotado um burro, é sempre possível substituí-lo por outro sem grandes dificuldades”.

– “E a cenoura?!?”.

– “Ora! A cenoura é dada por outro mecanismo tão importante neste processo quanto a presença do chicote:

O reconhecimento

Nas páginas anteriores, vimos como este fator põe em movimento atitudes e formas de comportamento do indivíduo perante a sociedade. Na empresa, porém, as relações que se gestam ao redor deste elemento ganham características diferenciadas e, às vezes, opostas. Em primeiro lugar, podemos dizer que é no reconhecimento da qualidade do seu trabalho que o funcionário não encontra apenas um sentido para seus esforços, suas angústias, dúvidas, sucessos ou decepções, como é através dele que se torna capaz de estabilizar e estruturar sua identidade e personalidade.

Quando isso ocorre, o sujeito não ganha somente momentos de alívio para o seu sofrimento, mas sim uma mola propulsora que leva a transformar este mesmo sofrimento em estímulo para a contínua busca de soluções capazes de responder ao desafio de aproximar o trabalho prescrito do real e em prazer de usar o próprio talento nesta empreitada. O médico que no meio de uma cirurgia se vê obrigado a usar um procedimento não-convencional para salvar o paciente vivencia profundos momentos de angústia e de tensão. Se o doente se salva, o assumir os riscos daquela decisão tende a ganhar o sorriso, a aprovação e a admiração não só do paciente, como de seus familiares e da própria equipe de trabalho. Mas, se o resultado for outro, o cirurgião, provavelmente, será processado, recriminado pelos colegas, julgado incompetente pela direção do hospital, podendo vir a perder o emprego e o registro de médico. Ele fez o impossível para salvar uma vida, mas fracassou. A falta de reconhecimento do seu esforço tende a transformar o seu sofrimento em algo absurdo e alimenta um círculo vicioso de sensações que podem desestruturá-lo.

Do mesmo modo, por exemplo, inúmeros mecânicos de manutenção vivenciam diariamente uma situação parecida. Na falta de peças de reposição, são obrigados pelas pressões da chefia a ‘dar um jeito’, a ajustar o impossível para prolongar a vida útil daquele mecanismo, mas, ao fazer isso, sabem estar se colocando na corda bamba. Como no caso do médico, seu esforço e sua criatividade serão reconhecidos se tudo der certo, mas eles mesmos acabarão execrados e desqualificados perante todos se algum acidente vier a ocorrer em função do mau funcionamento do equipamento em questão.

Em graus e formas que diferem a depender da função e da responsabilidade do cargo, podemos dizer que quem trabalha é chamado a tolerar este sofrimento até que o caminho encontrado para superar os obstáculos tenha sido analisado, aceito e incorporado como prática corrente pelos setores responsáveis. Neste processo, o reconhecimento torna-se peça-chave para que o indivíduo continue tentando, experimentando, mantendo seu talento voltado à busca constante de novas saídas para a plena realização das tarefas exigidas.

Ao vencer este desafio, o sujeito se transforma e, de certa forma, torna-se alguém mais inteligente, mais hábil e mais competente do que era antes. Ou seja, trabalhar não é apenas produzir e ganhar a vida, mas sim entrar de corpo e alma num processo que vai construindo a própria personalidade. Nele, a identidade do indivíduo não se ergue apenas a partir de sua relação com o trabalho, mas da confirmação e da aprovação que vêm do olhar do outro pelo reconhecimento do esforço despendido na solução dos problemas deixados em aberto pela organização dos processos produtivos. Nas empresas, esta aprovação se expressa ora através de prêmios em dinheiro, viagens, elogios públicos à utilidade social, econômica ou técnica do trabalho realizado, exposição da foto do ‘funcionário do mês’, ora através de simples expressões informais tais como ‘você fez um belo trabalho’, ‘o que você conseguiu fazer vai fazer a diferença aqui dentro’ e assim por diante, mas sempre focalizada ao que foi realizado e não ao seu autor para que os colegas de profissão não recebam o julgamento positivo de alguém que conhecem como uma injustiça contra si próprios, sentindo-se menosprezados em seu próprio esforço.

Além de manter elevado o entusiasmo pessoal na cooperação com a empresa, o reconhecimento que vem das chefias estimula o orgulho de pertencer à organização, fortalece a auto-estima, eleva a capacidade de tolerar o sofrimento, reforça os vínculos com uma cultura ou filosofia gerencial que, pouco a pouco, passa a guiar o indivíduo até nos projetos e momentos fora do ambiente de trabalho, alterando substancialmente as convicções e os critérios de análise a partir dos quais realiza sua inserção na sociedade e faz a leitura de tudo o que está em volta dele. Ou seja, apesar de ter sua raiz no âmbito dos processos produtivos, os efeitos do reconhecimento invadem os demais espaços de vivência diária e levam o sujeito a se entregar corpo e alma a quem deu sentido a seu sofrimento, apostou em sua capacidade e reconheceu suas realizações. Quando concretizado com coerência e sutileza, este investimento empresarial tende a moldar um funcionário mais confiável, disposto a dar sua contribuição pessoal não apenas suando a camisa, mas sim lutando ao lado da empresa como um verdadeiro militante do capital”.

– “Mas não há nada que possa azedar isso tudo?”, pergunta incomodado o homem ao mexer nervosamente o corpo na cadeira.

Entre a dignidade e a rebeldia, a cooperação solidária

– “Sim, querido secretário. Esta possibilidade existe, mas para se concretizar precisa de um elemento que anda escasso no seio do trabalhador coletivo: a cooperação. O entendimento do trabalho e de suas relações nunca pode ser limitado ao vínculo que se estabelece entre o indivíduo e as tarefas que lhe são designadas. Mesmo sem sair do perímetro da empresa, trabalha-se sempre para alguém, com alguém ou subordinado a alguém. Por isso, o sofrimento só pode ser rejeitado ou enfrentado coletivamente quando há confiança e cooperação entre as pessoas que passam a desenvolver seus macetes e quebra-galhos numa ótica diferente daquela que, via de regra, é assumida por quem embarcou na lógica da competição individual e vê o outro como concorrente que precisa ser derrotado em nome dos próprios sonhos, necessidades e aspirações.

No passado, o caminho das lutas que se desenvolveram no interior dos locais de trabalho não foi construído apenas aproximando um ladrilho de dignidade a outro de rebeldia, mas cada uma dessas peças só dava liga na medida em que relações de confiança, de amizade e de solidariedade constituíam a base sobre a qual assentar o descontentamento e a revolta coletiva. Neste contexto, o macete, o quebra-galho, enfim, o fruto do saber prático, não serviam apenas para uma eventual promoção, para não ter problemas com as metas ou para ganhar momentos de descanso no ritmo frenético da linha de produção, mas para se tornar a base concreta capaz de dar cor e forma a expressões do tipo ‘esse chefe vai me pagar’ ou ‘nosso patrão não perde por esperar’ que, ao externar a revolta diante do sofrimento diário, revelavam a ebulição da indignação diante da percepção da injustiça.

O problema é que esse tipo de cooperação não cai do céu. Ela é sempre uma construção difícil e precária na medida em que supõe boas doses de compromisso com o coletivo, desprendimento, gratuidade, disponibilidade para atender às necessidades do outro, confiança, cumplicidade e coragem para assumir com os demais os riscos de enfrentar o que gera sofrimento e nega a vida coletiva. Nestas condições, o sofrimento não é negado, mas sim afirmado e denunciado e o silêncio que marca longos períodos de calmaria nada mais é a não ser o tempo de gestação de uma resposta que busca frear o avanço da exploração.

Assim como num coral não é fácil harmonizar as vozes e transformá-las num único som, pois isso exige que cada componente controle seu poder vocal, a construção do sentimento de coletividade no interior do local de trabalho demanda uma disponibilidade igualmente complexa. Além da rotatividade dos funcionários que, sem pedir licença, altera a identidade que se estabelece em seu meio, e da complexa relação entre experientes e novatos, quem se dispõe a organizar a base precisa ter paciência e jogo de cintura suficientes para ouvir, para dialogar com as mais diferentes posições, para ajudar a evidenciar até que ponto sonhos e desejos não passam de ilusões e em que medida aquilo que o indivíduo considera um valor não passa de algo que atende interesses de classes bem distantes dos seus.

aliendepre5Para que a relação dê os frutos desejados, não basta ter idéias, a disposição de não julgar como fútil o que, no momento, faz a vida do colega, mas é preciso também ter capacidade e preparo para inserir as demandas individuais num contexto mais amplo, coerência de vida e de princípios, sensibilidade para saber escolher o momento certo de intervir, tato para manter sempre aberto um canal de comunicação com os colegas de trabalho, coragem para mostrar abertamente possibilidades, limites e conseqüências de cada escolha, maturidade para saber apostar no envolvimento do coletivo e uma honestidade de fundo que os demais vão reconhecer não nas palavras, mas sim nas ações. Agora, este conjunto de atitudes, mesmo quando presente nos organizadores, tem cada vez mais dificuldades de penetrar no indivíduo se este, como já vimos, optar por vencer sozinho, se realizar sozinho, enfim, tiver as pupilas grudadas no próprio umbigo, pois sua resistência a se deixar questionar, seus sonhos de consumo e seu espírito de adaptação às exigências da empresa tendem a mantê-lo isolado e a mergulhá-lo numa espiral que o sufoca na exata medida com a qual se entrega a ela em busca do que chama de ‘aproveitar a vida’ou de auto-realização”.

A ativa servidão voluntária

– “Se é assim, quais são os mecanismos que permitem explorar o sofrimento e as defesas individuais para elevar a produtividade e, de conseqüência, os lucros?”.

Satisfeita com o interesse do seu ajudante, Nádia franze as plumas do rosto e, ao balançar o corpo, se prepara a responder com a atitude de quem está disposto a ampliar a visão do ouvinte e a torná-lo atento à manifestação de processos tão simples e corriqueiros quanto carregados de novos desafios. Sem pressa, apóia as costas na pilha de livros e, após alguns instantes de silêncio, diz:

– “Além de todos os aspectos levantados nas páginas anteriores há um que costuma passar desapercebido aos olhos pouco atentos dos humanos, mas que, somado ao medo do desemprego e da frustração dos próprios sonhos, constitui uma forma de coação tão sutil e eficiente que o indivíduo passa a usá-la como parâmetro para medir a si próprio: a inversão de valores pela qual a virilidade é transformada em coragem, a submissão em virtude e a cegueira em capacidade única de enxergar a realidade”.

– “Você poderia ser um pouco mais clara…?”, pede o homem ao empurrar os óculos contra a testa.

– “Então vamos por partes – sugere a coruja ao espetar o ar à sua frente com a ponta da asa esquerda.

Para que pessoas de bem, dotadas de senso moral aceitem fazer algo sujo ou assumam uma ativa servidão voluntária diante das demandas da empresa não é suficiente que haja pressões externas via medo do desemprego ou a simples possibilidade de ver seus sonhos pessoais irem por água abaixo. É necessário, isso sim, que elas acreditem estar fazendo o que é melhor tendo como base alguns valores, pouco importa se próprios ou adquiridos, em função dos quais se dispõem a controlar não só as respostas às solicitações do trabalho, mas também as próprias emoções e reações corporais que passam a ser submetidas a uma disciplina férrea que o sujeito impõe a si mesmo. Um exemplo vai ajudar a entender melhor o funcionamento deste mecanismo.

Imagine uma situação na qual um exército tenha invadido o território de um país vizinho. Em sua marcha rumo à capital, colheitas foram destruídas, pessoas foram massacradas pelos soldados e parte considerável do que antes servia à sobrevivência da população ou foi confiscada pelas tropas de ocupação ou acabou perdida nos bombardeios. A fome reina soberana e, com ela, o desespero de milhares de seres humanos, todos eles civis desarmados.

Ao saber que o sentimento de revolta contra os abusos sofridos está empurrando o povo a reagir contra o vencedor, o general reúne seus homens. Saudados os soldados com discursos patrióticos que enaltecem a coragem e a bravura demonstradas nos combates, ele usa seu prestígio para dizer: ‘Está na hora de prestarmos mais um serviço à pátria, de realizarmos mais um ato de coragem que freie com nossas armas as forças que ameaçam a implantação dos valores que abriram caminho nas linhas inimigas e aqui nos trouxeram para realizar o destino histórico da nossa nação’.

Qualquer soldado que ouve este discurso com dois gramas de cérebro funcionando tem consciência de que o alto graduado do seu exército lhe pede para atirar em homens, mulheres, crianças e anciãos desarmados e inocentes que, por sinal, têm toda razão de se revoltar. Ao saber disso, você, como soldado, pediria para ser dispensado da chacina anunciada ou participaria dela controlando todas suas reações físicas e emocionais para executar de maneira eficiente a missão que lhe foi entregue atribuindo ao general toda responsabilidade pelos seus atos?”

– “Bom, numa situação como esta não é fácil decidir… Mas, com certeza, seria quase impossível dar pra trás diante dos colegas de armas. Deixar as fileiras significaria abandoná-los, confessar-se fraco ou covarde… Enfim, enfrentar a atitude de apoio da maioria com um não, implicaria em desmoralizar-se diante de todos e, com certeza, virar objeto de chacota, gozação e execração pública… Acho que seria difícil não ir com os demais…”.

– “Veja bem. Ainda que cenas como esta se repitam em, praticamente, todas as guerras, o exemplo terrível que apresentei retrata justamente a inversão de valores da qual estava falando. O medo de ser desprezado e de perder a sensação de pertencer àquele coletivo, as preocupações relativas ao sofrimento de uma condenação pública e à aparente perda da própria identidade de soldado a serviço da nação levariam a maioria a participar da chacina, não a se recusar e, menos ainda, a usar a própria arma para atirar num sujeito que apela a valores patrióticos para justificar a participação coletiva num ato ignóbil e desprezível.

O que seria um gesto de coragem (a recusa ou o tiro disparado contra o oficial) é visto como o seu oposto, ou seja, como uma postura covarde, no exato momento em que covardia é empunhar as armas e atirar contra gente indefesa e inocente cheia de razão em suas manifestações de descontentamento. Ao participar do massacre, o soldado comete o mal por motivos estritamente pessoais (não quer parecer frouxo ou covarde), mas, ao cometê-lo em nome do seu trabalho, faz esta atitude passar por desprendimento em relação a si próprio ou, até mesmo, por dedicação á causa, à nação, a um suposto bem-comum.

O ingrediente principal que possibilita esta opção não é a coragem, mas sim algo bem mais simples e nefasto: a virilidade. É ela a fazer com que a pessoa não hesite em infligir dor e sofrimento aos demais em nome do exercício, da demonstração ou do restabelecimento do seu domínio sobre todos os valores éticos. Ao contrário da coragem (que não precisa de demonstrações espalhafatosas e pode ser até mesmo realizada no silêncio, na discrição e tem a própria consciência como único juiz), a virilidade demanda do indivíduo seguidas provas de visibilidade, de seu compromisso com o ambiente circunstante, precisa do reconhecimento alheio e está sempre disposta a chamar de fraco, frouxo, florzinha, bunda mole, mulherzinha, ruim de serviço, boiola, incompetente, covarde, medroso e assim por diante todos aqueles que resistem às suas exigências. E, como você sabe, ninguém gosta de ser visto como incapaz e sem coragem, ou seja, sem aquela que, por sinal, é considerada a virtude por excelência.

Para o senso comum, a virilidade torna-se um valor na medida em que as pessoas a associam erroneamente a uma imagem de solidez, de sucesso, de capacidade de expressar e fazer valer a própria posição de poder, sem perceber que ela está essencialmente associada ao medo e à luta do indivíduo contra o seu medo. É por esta razão que o sujeito não hesita em lançar mão, inclusive, do exercício da força, da agressividade, da violência gratuita, cujas manifestações, ao serem analisadas detalhadamente pelo próprio indivíduo, se apresentam a ele como sinal patente de covardia, de algo repugnante, hediondo, diante do qual dá vontade de se afastar. Mas, ao se dar conta disso, o desejo de responder com a recusa ou a fuga diante do que é assumido coletivamente traz de volta a sensação de covardia, de falta de coragem.

Neste emaranhado de percepções e sentimentos, o sujeito dificilmente percebe o erro grosseiro no qual está caindo: ele pode fugir de uma situação que considera odiosa e insuportável sem sentir nenhum medo pela punição ou pela própria vida. O problema é que a equação recusa-fuga-por-medo igual à falta de virilidade (ou de coragem, de acordo com as expressões corriqueiras do homem-massa) está tão arraigada em nossa cultura que as pessoas chegam a condenar sistemática e serenamente todos aqueles que ‘fogem da raia’. Por isso, não são poucos os que, ao dizer não, e, de conseqüência, se auto-excluírem do grupo ou acabarem marginalizados pelos demais, sentem-se tão humilhados e fracassados a ponto de caminharem em direção a atitudes de autodestruição. A inversão de valores faz com que o aplaudido e homenageado seja aquele que faz o mal sem sentimentos de culpa, sem perder a virilidade e o reconhecimento que esta lhe promete.

No ambiente de trabalho, longe de atacar a causa do sofrimento, este mesmo mecanismo leva o melhor das energias físicas e psíquicas a ser usado, como já vimos, para fortalecer as defesas individuais e coletivas contra o sofrimento e não a lutar pela sua eliminação. Passo a passo, as pessoas se convencem de que, no fundo, trata-se de um trabalho como qualquer outro, que precisam se focar nele, que devem controlar o próprio corpo, silenciar suas emoções, aprender a correr riscos, a serem ousadas, a suportar a dor sem se queixar, a agüentar o tranco, a se superar, enfim, a fazer o que ouvimos todos os dias: a ter, veja só, ‘coragem pra trabalhar’.

Via de regra, elas tendem a fazer estas afirmações mais com orgulho do que com pesar ou com sentimentos explícitos de resignação. De um lado, isso se deve à necessidade de exorcizar toda atitude e pensamento que representem uma crítica ao núcleo de convicções e vivências que construíram para si próprias e uma ameaça a trazer de volta o sentimento de culpa quanto à sua responsabilidade individual na manutenção do sofrimento coletivo. De outro, porém, não são poucos os funcionários para os quais um bom trabalhador é como um combatente destemido, aquele cuja conduta mostra ter assimilado as qualidades e os valores da organização e, portanto, é capaz de mobilizar todo o seu saber e criatividade para alcançar as metas propostas que, não poucas vezes, chega a ver como estímulo ao aperfeiçoamento pessoal e à superação de seus limites.

Em breves palavras, a virilidade é assumida como virtude, no lugar da coragem, em nome das necessidades inerentes ao trabalho. Esta não é fruto de um processo espontâneo ou natural, mas sim da sucessão de elementos que permitem banalizar a injustiça e apresentar como normal e saudável toda justificação dos meios pelos fins proposta pelo capital”.

– “Mas isso é demoníaco!”, explode o secretário num átimo de fúria.

– “Nada disso – rebate a ave ao balançar a cabeça. O que acabo de apresentar não passa de uma abundante colher de queijo na macarronada fumegante que acompanha o frango domingueiro: realça o sabor e estimula o apetite. Mas este mesmo queijo não faz sentido sem o macarrão e o frango que já estão prontos, ou seja, sem as demais condições que empurram o trabalhador coletivo a caminhar em direção ao matadouro justo quando acredita estar sendo convidado a um banquete”.

– “Então…”.

– “Então isso quer dizer que, contraditoriamente, ao buscar sua realização pela adesão ativa à lógica da empresa o sujeito eleva o grau de risco contra si próprio e contra os demais, corrói sua identidade, desgasta os valores coletivos que dão sentido à vida em sociedade e caminha, passo a passo, em direção à sua destruição.

Ainda que haja situações diferenciadas de empresa a empresa, de setor a setor, ou formas e complexidades que variam a depender da categoria, da dificuldade de reposição da força de trabalho, do grau de estudo e da função exercida, este processo percorre etapas quase simultâneas que impedem às pessoas de saírem do círculo vicioso no qual mergulharam.

O envolvimento com as metas traçadas pela organização leva o empregado a se dedicar corpo e alma ao ‘seu’ trabalho. O fato de ele compensar parcialmente o esforço físico e mental despendido com o reconhecimento dos colegas e superiores, ou com a realização de sonhos de consumo, não neutraliza os efeitos do progressivo isolamento em relação aos demais, nem o sofrimento que, com o tempo, o alerta quanto ao seu próprio processo de adoecimento. Ao perceber esta realidade nua e crua, e temendo se tornar um elemento dissonante com o contexto da produção, o sujeito começa a travar uma luta ferrenha contra tudo o que o coloca frente a frente com as marcas que o trabalho deixa no seu corpo. Aceitar que está adoecendo é reconhecer a possibilidade de ser o próximo a ser posto para fora da empresa, ou seja, de vir a integrar o grupo dos ‘sem futuro’ ou de ser forçado a reduzir o nível de vida conseguido até o momento.

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Invisibilizar as causas

Longe de enfrentar a causa, via de regra, as pessoas se concentram no sintoma e em tudo o que teima em fazê-lo aparecer. Se o refletir sobre a própria condição eleva ainda mais a sensação de insegurança, o jeito, então, é anestesiar o pensar e o sentir, pois, de um lado, há um rechaço da realidade e, de outro, em direção oposta, há a percepção do perigo que esta representa. O indivíduo sabe, mas prefere não saber. Por isso, uma das saídas iniciais diante dos primeiros sinais de alerta do corpo e de sua estrutura psíquica é a de não dar bola a eles apelando para a capacidade de ‘segurar o rojão’ comprovada nas situações vivenciadas no passado e fantasiada de maneira excessiva justo na hora em que alarmes evidentes indicam um nível de desgaste preocupante.

O esforço de esconder o próprio sofrimento e a crença do sujeito de que, à diferença dos demais, nada ruim vai acontecer com ele se ele ‘segurar o tranco’ passam a ser sustentados pelo aumento voluntário do ritmo de trabalho. Produzir mais não é apenas uma forma de pensar menos nos sofrimentos já experimentados, mas a pedra angular com a qual o trabalhador procura demonstrar a si próprio que ele não é um fraco, que não vai ficar chorando pelos cantos e que a dor não vai derrubá-lo. Do mesmo modo em que, ao superar o exame de direção, o motorista novato acelera para provar que se sente seguro em relação à sua capacidade de guiar o carro, e depois acaba batendo exatamente por não conseguir controlar sua potência e reações na estrada, a elevação do ritmo agrava as condições de saúde física e mental na exata proporção em que o sujeito se esforça para exorcizar esta possibilidade. Isso ocorre porque, no lugar de pisar no freio após chegar aos 80 por hora, ele bota os dois pés no acelerador. O ronco do motor avisa que ele está prestes a passar dos limites, mas quanto mais o barulho fica estranho, mais o empregado se convence da necessidade de não recuar, de continuar negando que as coisas estão se tornando insustentáveis.

Ao perceber que os novos patamares de produção, tão caros e desejados pelos lucros empresariais, não bastam para vencer o sentimento de insegurança que volta a ameaçar o frágil equilíbrio de corpo e mente, o trabalhador não apenas silencia o que está sentindo, como passa a negar o sofrimento manifestado pelos colegas. Ele não tolera quem rompe a barreira do silêncio para expressar o que sente justamente porque vê em suas palavras e gestos o convite a reconhecer e partilhar uma realidade que aumenta a sensação de ameaça de aniquilamento, de angústia, de desintegração dos próprios sonhos e da sua personalidade. Por isso, não hesita em chamar estes colegas de frouxos, a se isolar, a negar o que está sentindo, a atribuir o sofrimento dos demais a fragilidades estritamente pessoais das quais ele não partilha por ser forte, capaz de se superar e, obviamente, por não lhe ‘faltar coragem pra trabalhar’.

Ao mobilizar nesta direção todos os recursos disponíveis, o empregado torna-se literalmente incapaz de recusar-se a submeter sua vida a um trabalho que o destrói ao mesmo tempo em que continua vendo a empresa como âncora de salvação, como porto seguro diante da tempestade que se aproxima.

A situação precipita quando a doença chega com tamanha força que impossibilita a realização das tarefas que faziam e davam sentido aos melhores anos de sua existência como ser humano. O trabalho que amava e ao qual sacrificava todas as energias na certeza de que lhe daria sempre o reconhecimento almejado, a proteção desejada, a sua realização profissional e humana, além da possibilidade de fazer seus sonhos virarem realidade acaba de decretar que ele já não serve aos seus propósitos. Seus atestados são vistos como algo que prejudica o desempenho financeiro da instituição, seu pouco interesse e baixo ritmo de produção como frescura a ser punida com medidas disciplinares. A carta de demissão ou as pressões para pedir a conta são justificadas perante os demais funcionários como a necessidade de se livrar de um peso, de uma carga inútil que estorva o sucesso dos colegas e impede que a organização atinja seus objetivos. O sofrimento físico e mental que, por semanas, meses e anos, havia garantido à empresa a possibilidade de ampliar as metas, elevar a produtividade e o lucro, acaba de se transformar no seu contrário e, por isso mesmo, a peça estragada precisa ser colocada de lado com a mesma naturalidade com a qual parece justo, lógico, normal e inteligente se livrar de uma mala sem alças.

Posto de lado como um pneu careca, o sujeito percebe que o ‘nós’ pronunciado pelos superiores hierárquicos toda vez que o coletivo precisava assumir as demandas vindas de cima não existe mais. Em seu lugar, para ele, sobra apenas um refugo de ‘eu’ à beira da desintegração. A sensação de morte, de fim de linha, de ponto final para todos os sonhos de afirmação pessoal abre as portas para o que os especialistas chamam de ‘doenças da solidão’ em função da causa que está na sua origem”.

– “Doenças da solidão…?!?”, repete o homem entre a pergunta e a afirmação.

– “Exatamente, querido secretário. Trata-se de um conjunto de distúrbios que, no local de trabalho, ganha corpo e se agrava na medida em que o capital vem implementado as idéias e as práticas que analisamos desde o início deste trabalho. Diante delas, as empresas revelam alguma preocupação somente quando as vítimas fazem elas registrarem perdas financeiras ou prejuízos em termos de imagem pública. Por se tratar de um tema complexo, vou delineá-lo com mais calma no próximo capítulo ao tratar de…

4. Os mortos-vivos do trabalho.”

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