O problema da moradia é real. Contudo o “Minha Casa, Minha Vida” o formula falsamente, não a partir das características intrínsecas ao problema, mas sim das necessidades impostas pelas estratégias de poder, dos negócios e das ideologias dominantes. Por Pedro Arantes e Mariana Fix
11) Por que o sistema bancário não financia a produção habitacional e são utilizados recursos públicos e dos trabalhadores (FGTS)?
A proporção entre a oferta de crédito e o PIB no Brasil era de pouco mais de 30% em 2005, baixa se comparada à norte-americana, correspondente a mais de 190%, ou à espanhola, 146%, no mesmo período. A participação do total de financiamentos imobiliários é ainda mais baixa, comparativamente: representa 2% do PIB no Brasil, 46% na Espanha e 65% nos Estados Unidos. O capital bancário no Brasil, apesar de seu porte significativo, não financia a longo prazo. Nossos bancos de investimento, pensados pelo PAEG dos militares justamente para financiamentos de longo prazo, nunca fizeram isso. Sempre foram, e continuam sendo, meros gestores de carteiras (portfólio) privadas, individuais (de grandes fortunas) ou coletivas (como as de fundos mútuos e fundos de pensão). O longo prazo sempre foi financiado com dinheiro público desde a era Vargas, passando por Juscelino e pelos militares, sem falar das privatizações de FHC.
Quadro 4 – Porcentagem do crédito habitacional em relação ao PIB
A escassez do crédito habitacional revela a dificuldade do capital bancário emprestar a longo prazo e indica a necessidade dos fundos públicos para viabilizar a reprodução do capital neste setor.
Fonte: BNDES e FGV Projetos. Publicado em Folha de São Paulo, 17 de janeiro de 2007.
O mercado imobiliário no Brasil, de viés predominantemente patrimonialista-rentista, não se completa só no setor privado e precisa do setor público para a realização de capital. Deste modo ele não é ortodoxamente capitalista e tem características próprias que o diferenciam dos países centrais. O circuito de financiamento imobiliário privado é curto (ou um “curto-circuito”), o que faz com que procure estruturalmente recursos em fundos públicos e semi-públicos. Além disso, o principal agente financiador é um banco 100% estatal, a Caixa Econômica Federal, que detém cerca de 70% da oferta de crédito no setor habitacional. Segundo um diretor do Santander, apenas um banco estatal pode correr o risco da operação dentro das regras de jogo atuais, pois é capaz de socializar os prejuízos sem sofrer a pressão de acionistas. Um banco privado, diferentemente, enfrenta problemas operacionais, de spreads, e deve justificativas aos acionistas, que não permitem alcançar as taxas de juros da Caixa.
O governo federal tem feito reiteradas chamadas para que os bancos privados ampliem o crédito habitacional, participem do “Minha Casa, Minha Vida”, ou que ao menos financiem a faixa acima de 10 salários mínimos, que não contaria com subsídios públicos. Os bancos privados, por sua vez, esperam a regulamentação favorável do “fundo garantidor” do pacote e a montagem do cadastro positivo de pessoas físicas para definir se participarão do programa.
A concessão de crédito é uma questão técnica e também de poder. Define quem está dentro e quem está fora do sistema de mercado: os primes, os subprimes e os infinanciáveis. Na verdade, estabelece uma hierarquia em relação às possibilidades de acesso ao crédito e ao consumo em função da capacidade de pagamento de cada indivíduo, numa esfera muito distante da isonomia do campo dos direitos da cidadania. Mesmo assim, recorrem ao Estado e aos fundos dos trabalhadores (em especial ao FGTS) para poder alimentar seus circuitos de créditos segmentados.
O uso do FGTS, desde o regime militar, é uma recorrência na captura privada de um fundo dos trabalhadores que alimenta a produção habitacional. A composição do Conselho curador do FGTS dá ao governo 50% dos votos, aos empresários, 25%, e aos trabalhadores, divididos em centrais sindicais fragmentadas e concorrentes, outros 25%. De modo que estamos longe de um controle dos trabalhadores na destinação deste fundo. Por sua vez, o expediente continuado de recorrer ao FGTS permite que os sucessivos governos evitem o uso de recursos orçamentários para o desenvolvimento de políticas subsidiadas.
A novidade do pacote atual é a mobilização substancial de recursos orçamentários da União, associados aos do FGTS, o que pode mudar qualitativamente e quantitativamente o sistema de crédito habitacional. Contudo, é preciso verificar se o mesmo padrão de investimento público se manterá após a crise, pois a justificativa anti-cíclica pode não ser mais suficiente diante da retomada de porcentagens maiores de superávits primários.
12) O pacote colabora para o fortalecimento das organizações dos trabalhadores da construção civil e da melhoria de suas condições de trabalho?
O pacote habitacional não faz nenhuma exigência em relação às condições de trabalho nos canteiros de obra. Seria possível que o pacote fosse acompanhado de uma revisão da legislação trabalhista e de segurança no trabalho específicas da construção civil, que os diversos órgãos de fiscalização fossem fortalecidos, para que houvesse um equilíbrio mínimo na correlação de forças entre capital e trabalho. Mas não há ações nesse sentido.
Como se sabe, a construção civil é um dos setores da produção em que as condições a que são submetidos os trabalhadores são das mais violentas e precárias: acidentes e intoxicações são comuns, incluindo mortes; exposição às intempéries; alta rotatividade dos trabalhadores; remuneração por produtividade; cadeias de subcontratação; precarização das relações trabalhistas e uso sistemático da informalidade; baixos salários (estão entre os menores na indústria, junto com o setor de confecções); abuso de horas-extras; baixos índices de sindicalização; sindicatos apadrinhados pelos patronais etc. A massificação da produção nessas condições tende à barbarização na extração da mais-valia absoluta e à esfola da força de trabalho.
Os sindicatos de trabalhadores não têm se pronunciado contrariamente ao pacote ou exigido algumas salvaguardas. A injeção de recursos no setor tende a ser bem vista por todos, como expectativa de mais empregos. Como explicou Florestan Fernandes, parte das debilidades da classe trabalhadora no Brasil é decorrente do entendimento do emprego como forma principal de inclusão social. Dada a instabilidade do capitalismo no Brasil e a precariedade dos sistemas de proteção social, a classe operária foi constrangida a ter uma visão positiva do assalariamento, o que dificulta a crítica à alienação do trabalho e mesmo à sua mais severa exploração.
Do ponto de vista dos empregadores, evidentemente, isso não é um problema. Uma missão de representantes do Sinduscon, o sindicato patronal da construção civil, voltou de Dubai encantada com seu modelo de (des)proteção trabalhista. Mike Davis, em mais de uma ocasião denunciou as condições de trabalho nestas cidades dos Emirados Árabes, com imigrantes sem direitos, submetidos a condições das mais precárias de trabalho, alimentação e alojamento. Dubai é um “paraíso” do capitalismo financeiro (hoje, com a crise, transformado em “cidade fantasma”) construído por uma gigantesca máquina de sugar trabalho vivo, alimentada pelo rentismo do petróleo. Na verdade, trata-se de um Paraíso do Mal, na expressão-título de uma coletânea organizada por Mike Davis e Daniel Monk sobre esses processos de “urbanização” tão acelerados quanto inumanos.
13) O pacote fortalece os movimentos populares?
Os movimentos sociais urbanos e seus apoiadores lutam há décadas por subsídios massivos para a habitação popular. O mesmo fazem as empresas de construção, sobretudo através do seu sindicato patronal, o Sinduscon. A inusitada “aliança” entre ambos deu-se na proposta de uma emenda constitucional (PEC-285, de 2008) que tramita no Congresso para vincular porcentagens fixas dos orçamentos federal, estaduais e municipais à política habitacional. A luta por mais recursos, por si só, não é garantia do perfil social da política, como vemos no pacote. A conquista do subsídio em grande escala para baixa renda pode ser capitaneada pelo capital da construção ao invés de fortalecer as organizações populares. Da perspectiva dos trabalhadores, a luta por quantidades (de recursos, de unidades habitacionais, de famílias atendidas) não pode estar desvinculada das qualidades – isto é, das relações de produção, da concepção dos projetos, das condições de trabalho nos canteiros, do valor de uso das edificações, da forma urbana resultante, enfim, das qualidades de todo o processo social envolvido.
No “Minha Casa, Minha Vida”, os recursos disponibilizados para a política gerida por entidades sem fins lucrativos, isto é, pelas organizações populares, correspondem a apenas 3% do total do subsídio e é restrita à faixa de 0 a 3 salários mínimos, justamente a que menos interessa às empresas privadas. O recurso limitado também pode promover uma disputa entre os movimentos, que passariam a se digladiar ao invés de questionar a desproporcionalidade de valores em favor das empreiteiras e o modelo geral do pacote.
Do ponto de vista do governo, não há uma disposição explícita em prejudicar ou excluir os movimentos populares, uma vez que são, em sua maioria, ligados ao PT ou tiveram origem no partido. Uma parcela significativa já está envolvida em projetos e obras com recursos do FNHIS e deve continuar recebendo recursos públicos na medida em que permitirem suas capacidades operacionais, de gestão de obras e de organização das demandas. Neste sentido, os movimentos, sobretudo os quatro grandes, que possuem expressão nacional e presença nos conselhos de habitação e cidades, acabam por funcionar como meio de acesso disperso à política pública (pois não concentrado num único ponto do território, como é um município), em substituição às prefeituras e seus infindáveis cadastros. Tornam-se, assim, “entidades organizadoras” de uma parcela da política pública, permitindo o acesso a seus militantes por caminhos diferentes aos da multidão demandatária anônima.
A instrução normativa que regulamenta o “MCMV-Entidades” fornece, em grande medida, regras bastante favoráveis para que os movimentos desenvolvam seus projetos e obras. Resta ver sua aplicabilidade e operacionalização cotidiana pela Caixa. A normativa possibilita, por exemplo, a escolha de diferentes regimes de construção por gestão direta dos beneficiários (por autoconstrução, mutirão, empreitada, cooperativa ou a combinação entre elas), a compra e reforma de imóveis ociosos (como é o caso de áreas urbanas consolidadas), além de disponibilizar valores financeiros similares aos das empreiteiras por unidade habitacional (o desconto de 8% é facilmente revertido em mais área construída, igualando os valores), o que permite um termo de comparação. Isto é, se os movimentos e suas assessorias técnicas estiverem preparados, e cobrarem o apoio de administrações municipais progressistas (algumas delas já definiram que só doarão terrenos para as entidades sem fins lucrativos e não para as construtoras), poderão definir parâmetros de qualidade de projetos e obras em contraponto à produção mercantil privada.
Vale lembrar que, em geral, os projetos realizados pelos movimentos populares, por não serem comandados por uma perspectiva mercantil, obtém áreas construídas em cada habitação significativamente maiores, tipologias diferenciadas, novas qualidades arquitetônicas e construtivas, além de diversos espaços coletivos e equipamentos comunitários – sinais da prevalência do valor de uso em relação ao valor de troca. Em projetos mais recentes, estão sendo propostas novas características espaciais que favorecem a urbanidade, a integração e a permeabilidade na relação com o entorno, de modo que o projeto habitacional se torne um novo trecho da cidade, de uma outra cidade possível, ao invés de um conjunto murado (o que, infelizmente, também foi a regra entre os mutirões). Nessas propostas atuais, a habitação deve estar estruturalmente articulada a equipamentos públicos, praças, espaços culturais, terminais de transporte, áreas para cooperativas e geração de renda, além de adotar critérios de sustentabilidade ambiental. O nome de um desses projetos, “Comuna Urbana”, indica o sentido da nova experiência territorial que alguns dos movimentos estão dispostos a conduzir, inclusive questionando a propriedade privada individual, ao propor a cessão de uso coletiva ou outras formas de propriedade coletiva. Os regimes de construção podem ser igualmente revistos, para que a prática autogestionária e a tecnologia social que foram acumuladas historicamente, sobretudo nos “mutirões” de São Paulo, possam ser transmitidas (e também transformadas) para novas cooperativas e coletivos de construção civil dos movimentos. Talvez seja esse o caminho para que as organizações populares não entreguem o comando do processo às próprias construtoras, o que nos devolveria desastrosamente ao reino da produção mercantil e da predação social e urbana.
Contudo, a construção de um espaço diferenciado, sem o apoio da luta social (e de novas ocupações) e da compreensão política do processo mais amplo, não constitui por si só uma ação anti-sistêmica e contra-hegemônica. Territórios concebidos sob gestão popular precisam corresponder a um projeto político engajado na transformação mais ampla do país – neste sentido, cada experiência pode ser uma pequena lição, mesmo ainda limitada e contraditória, do que pode vir a ser uma sociedade liberada. Mas, se essa correspondência não se estabelecer de modo intrínseco, a existência de grupos organizados de sem-teto dispostos a atender a demanda que menos interessa às construtoras e a enclausurar-se em canteiros de obra ao invés de ir às ruas, só irá colaborar para esterilizar a luta popular e equilibrar a balança de ganhos eleitorais e econômicos das classes dominantes.
14) O pacote garante a isonomia entre campo e cidade no atendimento à moradia?
O pacote prevê 500 milhões de reais para o Programa de Habitação Rural. Os valores são irrisórios: menos de 2% do total de subsídio do programa e com teto de 10,6 mil reais por unidade habitacional. Do ponto de vista quantitativo são propostas 50 mil unidades habitacionais, o que corresponde a apenas 2,5% do déficit rural, estimado em 1,75 milhões de unidades, segundo a Fundação João Pinheiro.
A definição de que a casa popular rural custa apenas 10 mil reais induz a soluções precárias, com materiais de baixa qualidade e com execução exclusiva por autoconstrução. Na verdade, a habitação rural, devido às dificuldades logísticas, distâncias entre lotes e limites para o ganho de escala, não despertou interesse das construtoras. O fato de ter um recurso a ela destinado cerca de 80% inferior ao da moradia urbana não pode ser justificado pelo custo da terra ou da infra-estrutura nas cidades. Há aqui uma clara quebra da isonomia do direito social à moradia expresso na Constituição Federal, em prejuízo dos habitantes das áreas rurais.
Além disso, os recursos para moradia no campo previstos no pacote não podem ser aplicados em assentamentos de reforma agrária complementarmente aos recursos do Incra. Os assentamentos deverão contar exclusivamente com os recursos do Incra, historicamente insuficientes (hoje ampliados de 7 para 10 mil reais por unidade). A precarização das moradias e do processo de sua execução colabora com o fracasso do programa mais amplo de reforma agrária e de construção de cidadania no campo. No caso dos recursos do Incra, 50% dele é oneroso, deve ser devolvido pelo beneficiário. Com isso, o subsídio para a casa de um assentado é de apenas 5 mil reais, enquanto para um morador das regiões metropolitanas pode chegar a 46 mil reais, ou seja, nove vezes mais.
Trata-se também de uma incoerência da política habitacional com a de desenvolvimento regional no país, pois o fortalecimento da política de moradia rural colaboraria para a redução do êxodo campo-cidade e do crescimento das precárias periferias urbanas. A maior quantidade individual de subsídios destinados à habitação urbana em detrimento da rural corrobora a divisão cada vez maior entre os padrões de cidadania no campo e na cidade e, por fim, incentiva a migração e a inviabilidade crescente das próprias cidades. Mais uma irracionalidade flagrante.
Quadro 5 – Programas federais ferem a isonomia ao direito habitacional entre moradores do campo e da cidade
O gráfico abaixo demonstra a disparidade de recursos e subsídios para habitação no campo e na cidade e adota, para efeito de comparação, a situação para famílias de rendimento igual ou inferior a 500 reais por mês. Os subsídios para habitação urbana foram divididos no gráfico em duas modalidades: 1) com valor menor, de 41 mil reais por unidade, em municípios de porte médio, com mais de 50 mil habitantes; e 2) com valor maior, de até 52 mil reais por unidade, para o Distrito Federal e regiões metropolitanas do Estado de São Paulo.
Fonte: USINA, a partir dos valores divulgados pelo Governo Federal.
15) Quais as diferenças e similaridades com o BNH?
A construção do Sistema de Financiamento Habitacional (SFH) que deu origem ao Banco Nacional de Habitação (BNH) nos anos imediatamente posteriores ao golpe de 1964 teve conseqüências mais estruturais para a economia brasileira do que o pacote atual, de perfil conjuntural, formulado no calor da crise. Na concepção de Roberto Campos e seus colaboradores, a articulação entre FGTS, BNH e SFH teria um viés virtuoso para sair da recessão daqueles anos e para a dinamização de um setor essencial para o crescimento econômico. Uma das âncoras do “milagre econômico” foi o boom da construção civil, que durou consistentemente por mais de uma década, até o início dos anos 1980. Foi neste período que de fato se constituíram as principais empresas do setor e que se formou um verdadeiro “circuito imobiliário” de acumulação capitalista nas cidades brasileiras. A construção civil também se constituiu na grande porta de entrada dos trabalhadores migrantes nas cidades, pagando os menores salários e oferecendo as piores condições, mas sem exigir qualificação prévia.
Nesse sentido, o BNH e o SFH dos militares estabeleceram um sistema muito mais completo e complexo do que o atual, com a perspectiva de uma política econômica continuada de crescimento econômico baseado na mercantilização progressiva da cidade e da força-de-trabalho migrante. O objetivo então era o de expansão capitalista sem necessariamente a repartição de seus ganhos, que ficaram concentrados sobretudo nas classes médias urbanas e empresas privadas. O sistema habitacional do regime, que chegou a produzir 4 milhões de moradias, atuava como um verdadeiro moinho de expansão da forma-mercadoria, por meio de mecanismos atrasados e modernos articulados, mobilizando terras, capitais, trabalhadores e consumidores numa máquina de produzir riquezas e consensos sociais. Ou seja, ia muito além da questão da moradia.
O pacote atual, apesar do gigantismo propagado nos números, aparece como um arremedo se comparado à iniciativa do regime militar, sendo feito às pressas, sem de fato constituir um sistema consistente e duradouro de financiamento do setor. Contudo, ele apresenta duas novidades: em primeiro lugar, um maior foco para baixa renda, com uma quantidade de subsídios dirigidos aos mais pobres, apesar de tudo, superior ao que ocorreu no BNH; em segundo lugar, a extensão da política ofertista privada (que no BNH restringia-se à classe média) para todas as faixas, dispensando a promoção pública, sobretudo das Cohabs. Isso não quer dizer que se evitará a construção de grandes conjuntos periféricos, como já comentamos, pois a racionalidade mercantil que move a operação é a mesma, bem como a manutenção do padrão de segregação social.
Do ponto de vista ideológico, o mote da “casa própria” e do “emprego”, como vimos, é similar ao do regime, apesar de emitido por agentes antagônicos na política brasileira e em momentos históricos distintos. Essa proximidade discursiva é reveladora, no caso atual, ao obter a adesão das classes populares dirigindo suas atenções para a conquista da propriedade privada num momento em que há um descenso das lutas sociais e a impossibilidade de mudanças mais profundas, como uma reforma urbana de fato. É, nesse sentido, uma fantasia compensatória dentro do próprio campo popular – e não do seu inimigo direto.
Considerações finais
O problema da moradia é real e talvez seja um dos mais importantes no Brasil. Contudo o “Minha Casa, Minha Vida” o formula falsamente, não a partir das características intrínsecas ao problema, mas sim das necessidades impostas pelas estratégias de poder, dos negócios e das ideologias dominantes – como já afirmou o sociólogo Gabriel Bolaffi em sua interpretação certeira sobre o BNH. Ou seja, o pacote alçou a habitação a um “problema nacional” de primeira ordem, mas o definiu segundo critérios do capital, ou da fração do capital representada pelo circuito imobiliário, e do poder, mais especificamente, da máquina política eleitoral.
Como definiu Florestan Fernandes, constituem “problemas nacionais” aqueles “desajustamentos” que em um momento histórico determinado “são identificados e reconhecidos como ‘situações problemáticas’ por aqueles grupos que possuem poder de decisão”. Problemas reais são transformados em “falsos problemas”, explica Gabriel Bolaffi, cuja “solução” é pensada para assegurar a manutenção das estruturas de poder e de produção mercantil. Assim, “formulam-se problemas que não se pretende, não se espera e nem seria possível resolver, para legitimar o poder, e para justificar medidas destinadas a satisfazer outros propósitos”.
Impressiona, no pacote do governo Lula, a capacidade de articular um problema social real, a falta de moradias, à mobilização conformista do imaginário popular, o que lhe trará dividendos políticos e eleitorais, assim como aos interesses capitalistas – seja nos ganhos especulativos com a renda fundiária, seja na produção do valor, em um setor abundante em mais-valia absoluta. O circuito imobiliário é rico em combinações de diferentes modalidades de acumulação, rentismo, expropriação, captura de fundos públicos e espoliação urbana. Ele integra diversos meios, lícitos e ilícitos, de se obter dividendos: superfaturamento de obras; modificação na legislação em benefício próprio (sempre em detrimento do planejamento urbano); licitações fraudadas; corrupção; redução da fiscalização; financiamento de campanhas eleitorais; baixa taxação e regulação da renda fundiária; uso de fundos públicos, semi-públicos e financiamentos subsidiados; predação ambiental; apoio à remoção de favelas e à expulsão de pobres e moradores de rua; produção de territórios anti-urbanos em enclaves fortificados (condomínios fechados); estímulo à compra por campanhas de marketing (o sonho da casa própria, o desejo de status social etc); baixos investimentos nas forças produtivas (em pré-fabricação, máquinas e capital fixo); super-exploração nos canteiros de obra etc. A capacidade de gerir espaços caóticos e precarizados de produção para extrair o máximo de rentabilidade faz com que nossas construtoras exportem tecnologia de gestão para outros setores da economia, como uma espécie de vanguarda da flexibilização produtiva. Por sua vez, o circuito imobiliário é igualmente uma das conexões fundamentais da financeirização da economia e do capital fictício (em suas várias formas e, agora, na de ações de empresas imobiliárias S.A.) com a base real da produção do valor e de acumulação física de riqueza no território, aliada a formas de acumulação por despossessão, de privatização de fundos públicos e da riqueza social.
Daí a necessidade de “colocar o problema nos seus verdadeiros termos”. A transformação efetiva das cidades, dos usos e direitos sociais que ela propicia – a cidade como expressão da cidadania e não dos negócios imobiliários –, só se dará por meio de um programa radical de “reforma urbana”. Programas de reforma urbana muito sensatos, social-democratas ou democrático-populares já foram formulados no Brasil nos últimos 50 anos, mas sem grande, ou mesmo nenhuma efetividade. Alguns chegaram a ser parcialmente realizados, em algumas administrações municipais do antigo PT, em períodos curtos e quase sempre sofrendo reversões posteriores. Leis, Planos e o Estatuto da Cidade foram aprovados, mas são pouquíssimo implementados na prática – foram, aliás, redigidos de modo que se tornassem inaplicáveis na escala e rapidez necessárias para uma reforma urbana. Por isso é possível afirmar que a reforma urbana brasileira não se realizou e foi, inclusive, barrada – a despeito dos esforços de movimentos populares e de técnicos progressistas –, de forma ainda mais contundente do que a reforma agrária.
Essa impossibilidade da reforma urbana no Brasil só pode ser explicada na chave de Florestan Fernandes, quando afirmou que, no contexto histórico de uma sociedade na qual “as reformas não têm como se realizar”, a transformação social (e das cidades) deve ser concebida dentro de um projeto socialista. Contudo, no caso das cidades, um programa socialista nunca foi formulado no Brasil, dado o atraso, o idealismo ou o pragmatismo das discussões nesse campo. É preciso, no entanto, que ele seja imaginado coletivamente pelas forças de esquerda, sob pena de assimilarmos novas derrotas e acumularmos resignações, sem termos uma perspectiva clara do que fazer e pelo que lutar.
Julho de 2009
Gostaria de ter informações sobre a cooperativa habitacional Chave Real no Rj; se é confiável? se existe alguma denuncia ou reclamação em justiça?