Num primeiro tempo, a erupção da crise foi seguida, na Europa, por um acréscimo significativo das lutas sociais, mesmo nas sociedades até então consideradas como lugares de tranquilidade consensual. Por Charles Reeve

No final de 2008, tal como após um degelo, o colapso do sistema bancário, na Islândia, deixou a descoberto um território árido devastado pela especulação financeira. A população local que tinha alegremente subscrito as promessas da felicidade – «fazer dinheiro com dinheiro» – acordou despojada sob o frio quase polar. Na sequência disso, violentas manifestações fizeram cair o governo, dando um fim provisório a esta saga nórdica moderna, símbolo caricatural do percurso seguido por outras economias na Europa. Como um pouco por todo o lado, na Islândia, o calor das manifestações de rua trouxe à luz do dia as fissuras da economia dita «real» cujos males repentinamente deveriam ser procurados, não no excesso de alguns gangsters da banca, mas noutro lado.

fire_n_flares_iceland_riotDesde aí, e apesar das profecias calmantes dos sacerdotes da economia e da retoma da actividade especulativa, a situação social não cessou de se agravar. Mês após mês, por toda a Europa, centenas de milhares de trabalhadores são enviados para um desemprego com perspectivas de duração cada vez mais longas. Os sectores chave da economia capitalista – dos bens de produção ao automóvel – são submetidos a uma drástica cura de emagrecimento, fusões e concentrações, quando não são pura e simplesmente apagados da paisagem industrial, prova da profundidade da crise e de uma improvável retoma próxima da máquina. Nos velhos centros do capitalismo europeu, a intervenção dos estados, os apoios sociais (ainda que revistos em baixa), amortecem a queda, tornam-se cuidados paliativos das consequências da crise. Enquanto nas sociedades mais pobres da periferia, o crescimento rápido do endividamento público pesa nas capacidades de financiamento dos estados e obriga os governos a encetar violentos programas de austeridade social.

Num primeiro tempo, a erupção da crise foi seguida, na Europa, por um acréscimo significativo das lutas sociais, mesmo nas sociedades até então consideradas como lugares de tranquilidade consensual. Aos protestos de Reiquejavique vieram juntar-se as greves numa Irlanda chocada com a morte inopinada do «Tigre céltico»; as manifestações violentas dos siderúrgicos e metalúrgicos da Galiza, em Espanha; o longo movimento dos professores do secundário em Portugal contra a precarização do seu estatuto; as revoltas nos países bálticos contra a redução das reformas, as prestações sociais e os salários dos funcionários (1). Tudo isto, claro, coroado pela importante revolta da juventude na Grécia, no Inverno de 2008-2009. Seria precipitado criar, a partir de uma simples soma, um movimento unificado de lutas e de protestos. Mas, não podemos negar que não haja uma convergência objectiva entre todos estes acontecimentos. Todas estas lutas e movimentos levantaram novos problemas ou, antes de mais, colocaram numa nova perspectiva problemas que haviam sido gerados no decurso dos anos precedentes de euforia neoliberal. Alguém disse que é «numa época perturbada que o ininteligível se afirma mais fortemente» (2). Se pensarmos que a questão social se tinha tornado no ininteligível da política contemporânea do «fim da história», então, o regresso à crise da «economia real» é também o regresso da questão social.

GREECE RIOTSOs acontecimentos do Inverno de 2008-2009, na Grécia, exprimiram, de modo extremo, problemas comuns às diversas sociedades europeias. Pela amplitude e pelo eco que encontrou na sociedade, pela ocupação do espaço urbano gerado, esta revolta acordou por todo o lado os receios das classes dirigentes. Antes de mais, porque o fogo da insurreição alimentou-se da precariedade da juventude estudante, condição que é hoje comum a todas as sociedades europeias. Uma proletarização que apaga progressivamente a distância anteriormente existente entre o mundo estudantil e o do trabalho, e que, pelo menos na Grécia, se tornou no elo entre os estudantes, os deixados à sua sorte, os jovens imigrantes e os trabalhadores. Receio também porque a insurreição grega se insurgiu contra a arbitrariedade e a arrogância repressiva do poder político, contra o clima de corrupção e os traços mafiosos da nomenklatura política, exprimindo uma rejeição da classe política que é palpável por toda a Europa. Na altura em que o sector financeiro aparecia associado à avidez capitalista e à corrupção do político, eis o que viria deitar óleo na fervura.

Por fim, a revolta grega ilustrou bem a tendência actual das lutas na Europa, nas quais uma minoria activa, radicalizada pelas suas próprias acções, é frequentemente incapaz de alargar o combate e acaba sistematicamente por capitular perante o seu próprio isolamento. Na Grécia, como em França ou noutro lado, os esforços para ultrapassar o papel pacificador das instituições sindicais e políticas, as raras tentativas de ligação directa com os trabalhadores, fracassaram (3). Estas instituições mantêm, como podem, um controlo sobre os restos do velho movimento operário organizado, permitindo assim ao poder político jogar com o esgotamento das revoltas. Para grande alívio dos dirigentes políticos europeus, a revolta grega não excedeu o âmbito da juventude estudante e marginal, afundou-se no tempo e foi encoberta pela normalidade alienada da vida social. O seu contágio a outras sociedades não acontecerá.

3217352000_8617db83fdCuriosamente, é com o aprofundar da crise que estes acontecimentos ganham dimensão. A falência virtual do estado grego e a elaboração de um programa de austeridade sob o olhar vigilante dos poderes financeiros supranacionais estabeleceram o elo entre a crise social e política e a crise económica. Com efeito, a aptidão das classes dirigentes para aplicar estes programas mantém-se largamente condicionada pelas condições de paz social. Sabemos que a margem é estreita na Grécia. Do mesmo modo, por toda a Europa, o sucesso da austeridade encontra-se sujeito à relação de forças entre explorados e exploradores, no âmbito específico de cada sociedade. A dimensão da agitação social, a instabilidade política, a dificuldade de governar passam então a fazer parte dos dados de crise. É assim que o equilíbrio frágil das sociedades do sul e das de leste se acrescenta às dificuldades de rentabilidade dos centros capitalistas europeus. Os países do sul foram anteriormente considerados como «os bons alunos» da integração europeia. Isto significou que o aparelho produtivos destes países foi reestruturado de acordo com as necessidades do capitalismo dos países do «núcleo central». Hoje, e uma vez que apresentam taxas de pobreza elevadas e que a sobrevivência de uma grande parte da população é assegurada pela «economia informal» (4), são classificados como «maus alunos», «produtos de risco». Os «PIGS» (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) constituem assim uma carga para as economias centrais, levantando pela primeira vez a perspectiva devastadora de uma «deslocação da zona euro», com enormes consequências sociais e políticas. No leste e, sobretudo, nos países bálticos, o desastre é ainda mais vasto. A passagem do capitalismo de estado à economia privada criou nesses países condições ideais para a especulação e pilhagem, a emergência de um capitalismo de casino [cassino]. A falência do sistema financeiro significou o quase desaparecimento da «nova economia», somou-se à desintegração dos sistemas de protecção social deixando as sociedades exangues [débeis] (5).

13176_0_cig2

As condições de luta de classes mudam com a continuação da crise. A degradação persistente da situação social e o contínuo desabamento das estruturas produtivas cria um terror paralisante. A estes movimentos de revolta sucedeu-se um período de acalmia resignada, do qual ainda não saímos. A lógica do endividamento público leva por todo o lado à continuação do desmantelamento das estruturas de protecção social. No entanto, é curioso constatar que os governos tentam, ao mesmo tempo, preservá-las, e até pontualmente alargá-las (6). Eles sabem que as ajudas sociais constituem a última barreira contra a explosão social e as perturbações políticas, reconhecendo também – setenta anos depois de Keynes – que apenas a intervenção do estado é capaz de compensar socialmente a estagnação do capitalismo e a sua incapacidade em concretizar uma política de emprego através do investimento privado, o «único meio possível de evitar uma completa destruição das instituições económicas actuais» (7).

Notas:

(1) Na Letónia a redução foi da ordem de 20%.

(2) Siegfried Kracauer, L’Histoire. Des avant-dernières choses, Stock.

(3) Encontraremos um debate sobre os limites da auto-organização assim como do papel representado pelos sindicatos para isolar o movimento da juventude, em «Décembre 2008, Grèce: une tentative d’identifier la force et les limites de notre force» [Dezembro de 2008, Grécia: uma tentativa para identificar a força e os limites da nossa força] (http://reposito.internetdown.org/analyses/Blaumachen.pdf). «O limite da rebelião deve residir no facto de esta não se ter podido estender aos locais de trabalho».

(4) No final de 2009, em Portugal, quatro milhões de pessoas vivem na pobreza (numa população de 9 milhões), dos quais 2 milhões sobrevivem com as ajudas do estado (Público, 1 de Janeiro de 2009). Na Grécia como em Portugal, estima-se que 25% da população vive da economia informal.

(5) No caso extremo da Letónia, o governo foi forçado a distribuir lotes de terra aos mais pobres para evitar a fome (Le Monde, 2 de Janeiro de 2010). Um regresso inesperado às políticas da reforma agrária!

(6) Em certos países (como em Espanha), o montante e a duração dos subsídios de desemprego foram aumentados. Na Alemanha, o governo apoia o recurso às medidas de desemprego parcial. Em França, o governo propõe sistematicamente planos de reconversão e de acompanhamento dos despedidos.

(7) J. M. Keynes, Théorie générale de l’emploi, de l’intérêt et de la monnaie.

2 COMENTÁRIOS

  1. Não tenho dúvida nenhuma que as reacções das sociedades europeias à guerra que o mercado lhes declarou serão cada vez mais frequentes e mais violentas, mas não tenho nenhuma certeza de que sejam racionais.

    Nunca, desde os anos trinta do século passado, se viram os trabalhadores e as classes médias tão frustrados como estão hoje, nem tão descrentes dos políticos e das instituições, nem tão zangados com o capital financeiro. Sabemos como acabaram por reagir há oitenta anos: criando, contra os seus próprios interesses, os fascismos.

    Segundo Karl Polanyi, não foi por acaso que os movimentos fascistas surgiram praticamente ao mesmo tempo em sociedades tão diversas e com culturas políticas tão diferentes como a Alemanha e a Itália, o Reino Unido e a Espanha, a Suécia e o Japão; e até na Rússia, se incluirmos o estalinismo, como eu penso que pode ser incluído, no rol dos fascismos.

    Se for válido o trilema segundo o qual as sociedades, colocadas perante os mercados livres, os estados-nação e a democracia real, pode escolher quaisquer duas destas opções, mas nunca as três; e se for um facto, como penso que é, que a utopia neoliberal se está a tornar um peso insuportável para as sociedades actuais – então temo que muitas pessoas rejeitem a democracia e se refugiem em nacionalismos agressivos.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here