Uma nova série de artigos documentais sobre certas aberrações habitualmente defendidas pelos multiculturalistas em nome do “respeito pelas culturas e as tradições”. Há demasiada confusão sobre isso nas esquerdas. É preciso traçar uma fronteira clara entre esses embustes identitários e o internacionalismo revolucionário. Por Passa Palavra

Parafraseando o primeiro ponto da plataforma do colectivo Passa Palavra (“Pontos de Partida”), podemos perguntar: as comunidades devem ter o direito de manter as suas próprias culturas, línguas e maneiras de viver? Sim, mas não se isso for em prejuízo das conquistas sociais conseguidas noutras lutas e noutras épocas. Isso significa que, para nós, as tradições podem ser boas ou más, como tudo neste mundo.

Os fanáticos do multiculturalismo – um dos avatares da ideologia pós-moderna – espalharam a ideia de que tudo o que corresponde a tradições e usos dos povos ou comunidades deve ser guardado e respeitado, e de que nós não temos nada que os julgar em função dos nossos próprios valores. Como se não fosse precisamente em função dos valores dos pontífices do multiculturalismo que essas tradições e usos são consideradas dignas de conservação!

Mas o que há de perverso naquele raciocínio é que, entre estes “nossos valores” a ignorar, são também postas em causa conquistas de âmbito universal alcançadas em épocas históricas mais recentes. Os resultados das lutas conduzidas pelos socialistas e pelos anarquistas na Europa do século XIX são válidos para todo o mundo, assim como são válidos para todo o mundo os resultados das lutas conduzidas hoje pelos camponeses de Chiapas. Ao internacionalismo das lutas, os multiculturalistas querem opor os nacionalismos, os regionalismos e os bairrismos das culturas conservadoras. Assim se chegaria à aberração de respeitar e preservar tudo quanto fossem “culturas e práticas arreigadas de um grupo ou comunidade”, como por exemplo, polícias de choque, torturadores ou extremistas religiosos, como denuncia Terry Eagleton [1]. Temas de grande actualidade, como o uso do véu islâmico ou da burka, ou a excisão das mulheres em certos povos africanos, ou a autoflagelação religiosa, sempre trazem por arrasto intermináveis e confusas discussões sobre “direitos identitários” que raramente conseguem traçar essa fronteira que o Passa Palavra define no texto já referido.

São questões importantes que atravessam a vida pública e privada em muitas sociedades pelo mundo fora. A quem não conhece, aconselhamos a leitura de As Identidades Assassinas, de Amin Maalouf [2], um escritor francófono originário das montanhas do Líbano que, a partir da sua história pessoal, aí faz a radiografia das consequências catastróficas que essas tentações identitárias podem trazer aos povos e às pessoas.

Nas esquerdas e nos múltiplos grupos e movimentos alternativos existe hoje uma enorme confusão de ideias e de atitudes quanto a estes problemas. Muitos ficam paralisados entre a tentação identitária do nacionalismo e, no lado oposto, o sentimento de uma culpa eurocentrista. Ora, a Europa e os Estados Unidos não foram nem são uma cultura só, mas sociedades divididas por contradições e rasgadas por conflitos. O eurocentrismo que hoje domina não é o de uma mítica Europa, mas o de classes dominantes que impuseram uma cultura capitalista transnacional, da qual são parte activa as classes capitalistas africanas, asiáticas e latino-americanas. O internacionalismo revolucionário é a unificação de lutas travadas por explorados e oprimidos no mundo inteiro, os seus ganhos são universais.

Outros, alimentando a ilusão de um “retorno às origens”, como fizeram os naturalistas românticos do séc. XIX, menosprezam conquistas dos trabalhadores que têm um valor universal para toda a humanidade e sobrevalorizam a herança e a tradição, mesmo quando representam violações dos direitos humanos entretanto conquistados.

A humanidade não deve ser masoquista. Uma pessoa razoável não deve ter saudades do sofrimento. Se conseguirmos, ao estudar as tradições, escalpelizá-las para perceber o seu carácter de classe no respectivo enquadramento histórico, certamente conseguiremos distinguir o que é património enriquecedor dos seres humanos daquilo que não passa de barbarismos residuais que ofendem a dignidade e a liberdade das pessoas.

Por isso iniciamos com este vídeo exibido num canal televisivo francês uma série documental que poderá ajudar-nos a questionar o fundamento e a legitimidade de certos costumes. Pensámos dar-lhe o título genérico, tristemente irónico, de “Maravilhas do multiculturalismo”. Como é muito longo, optámos por “Maus costumes”.

Esta reportagem mostra como os rapazes quirguizes têm vindo a ressuscitar uma antiga tradição que consiste em – com ou sem o conhecimento das famílias delas – raptar jovens mulheres, em geral estudantes, e forçá-las a casar de imediato. Apesar de ser um crime à luz das leis quirguizes, este barbarismo tem vindo a recrudescer desde o fim da União Soviética e a independência do Quirguistão.

Notas:

[1] EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005 – ou Lisboa: Temas e Debates, 2003. A passagem a que se alude encontra-se na pág.15 da edição em inglês, The Idea of Culture, Oxford e Malden, Massachusetts: Blackwell Publishers, 2000.

[2] MAALOUF, Amin. As identidades assassinas. Lisboa: Difel, 1998, reed.2009

Reportagem exibida em 29 de Novembro de 2009 pelo programa Envoyé Spécial, do canal francês FR2.
Legendado em português por Passa Palavra.

6 COMENTÁRIOS

  1. A mim cabe certa ponderação sobre a questão, pincipalmente pq dentre as várias questões levantadas como razões contra os quais se insurgir entre crimes, hábitos ou tradições que digam respeito a povos e grupos específicos quem julga em geral, põe-se na perscpectiva de uma cultura superior contra uma inferior, mesmo se tratando de uma sociedadem com hábitos modernizados e valores identificados em parte dos resultados dos turbilhões de revoluções nacionais do final do século XIX e começo do XX que não é em todas as vezes de inspiração anarquista ou comunista.

    Seria necessário, para tanto, analisar que práticas seriam estas de que estamos tratando e não dizer de modo geral, pois é justamente nesta abstração que os poderes gestores se colocam como modernizadores de hábitos de nativos por aí, o que é também outra forma de poder exercido.

    Lembro de vários exemplos dentro da ex-URSS e que estavam latentes no imaginário, basta ver o filme de Dziga Vertov três canções para Lênin que trata da ilumnao de uma moça que abandona sua cultura e a burka, em troca do quê ? Do culto de Lênin e da hidrelétrica e um modelo de organização que lembra em muito algo do facismo como na marcha mostrada.

    Outra questão foi a da língua pautada por Stalin,que queria padronizar e extinguir línguas locais. Dizimar diversas línguas não aliena as pessoas frente às línguas adotadas pelas burocracias, educação, etc ? Não estava abrindo caminho no caso à elite soviética gestora que tomaria parte do processo de controle local ? Esste é o ponto que Bakhtin questiona em Marxismo e Linguagem.

    Já por fim, lembro de Infiel, de Ayaan Hirsi Ali e a biografia da autora. Tendo passado de fato pelo horror da clitoridectomia (extirpação do clitóris), onde de fato, qualquer pessoa apoiaria, surgiu a questão de sua fuga para a Holanda contra um casamento arranjado pela família. Ela troca os dispositivos e inicia sua busca por cidadania na Holanda. Consegue o apoio dos social democratas que, como estrangeira, foram os únicos a apoiá-la incondicionalmente e dá uma bolsa de estudos em ciência política e um lugar ao lado na social democracia.

    E eis que ela utiliza dentro da esquerda o argumento de justificação de intervenções nestes países contra estes hábitos horriveis, que acabam resultando para a política de estado numa intervenção militar. Com o tempo ela muda de posição e se torna liberal radical, visando ajudar, desde que abrissem espaço para ela, a acabar com o estado de bem estar social e direitos dos trabalhadores conquistados na Holanda. Perde a cusa da cidadania holandesa, quando o caso é esclarecido de que fugia do casamento e não de perseguição religiosa (de minha parte acho válido fugir de casamento arranjado, mas não o governo holandês).

    Então ela vai para os EUa e se torna consultora do governo Bush ao lado dos águias e reaproveita o argumento de Huntington em Choque das civilizações, propondo uma luta militar entre oriente cristão e oriente islâmico que passaria, entre outros, por argumentos em torno de direitos civis que passam a ser então incorporados pelos democratas (e que pode-se acompanhar na revista Foreign Affairs na mudança da política de estado dos democratas).

    Outro resultado de sua passagem pela holanda e dos argumetnos que utilizou foi Pim Fortuyn, que era negro, gay, mas direitista e favorável à expulsão e tratamento diferenciados a imigrantes, espcialmente se tivessem hábitos distintos, como ficou imortalizado na frase: “Não podemos ser tolerantes com os intolerantes”, ele confundia os limites entre hábitos, práticas, violações e violências políticas permitindo uma exclusão de todo dos árabes junto aos grupos humanos que trabalham por salários diminutos naquele país a perderem mais ainda seus direitos e correrem o risco de expulsão.

    Se há o problema do relativismo cultural, há o do determinismo, ou da defesa dos direitos civis que pode oscilar para a escolha racional entre poderes de estado (aceitando o melhor demônio) que pretensamente queiram levar a humanidade numa operação humana, demasiadamente humana a favor do humanitarismo e da civilização contra a barbárie.

  2. Também acho uma boa matéria. Combater o multiculturalismo e o nacionalismo é importante porque são cancros nas “esquerdas”. No fundo revelam a natureza dessas esquerdas. Mas como a socialização esquerdista de muita boa gente passa por aí torna-se uma questão importante. A questão de avaliar a partir duma perspectiva “superior” não se põe porque avalia-se a partir duma perspectiva de classe. Quem avalia tudo a partir de perspectivas “puramente” culturais são os pequeno-burgueses, e que passe este termo tão pouco preciso. Como classificar os surrealistas árabes ou os comunistas iranianos? Como corpos estranhos numa cultura tradicional inoculados pelo imperialismo cultural ocidental? Há luta de classes lá também. Eu não me importo minimamente de ser considerado imperialista cultural se isso se aplica a uma perspectiva comunista que é necessariamente universalista sem por isso ser homogeneizadora. A esse tipo de “imperialismo” eu chamo solidariedade. internacionalista.

  3. Sempre achei que a questão do culturalismo passasse muito mais por universidades européias e americanas, onde certamente é mais influente entre as esquerdas. No Brasil, em geral, quase toda a esquerda tem influência estalinista modernizante e anticultural, minorias e outros, com base numa perspectiva muito mais próxima da modernização capitalista nacional e xenófoba do que uma solidariedade contra a exploração de indivíduos ou grupos conforme se dêem as contardições e conflitos.
    A perspectiva nacional modernizante também é anti-culturalista, mas minha questão é muito mais colocada ao problema: estamos tratando de modernização de hábitos sociais ? Muito bem, pode ser sim, mas no olhar de quem, de quem chega com uma força bélica nacional ou internacional ou de quem luta a partir de baixo? Espero que, neste contexto, na última opção.
    Utilizam-se muitas razões quando se põem em marcha uma destruição de um hábito, pois a razão contra este terrível que apresentam se utiliza contra outros que não o são (como agora a campanha contra o hábito de mascar Qat que ajuda no Iêmen em verdade os clérigos fundamentalistas). Utilizando-se de razões humanitárias, ou de valores até mesmo utilizando de valores socialistas, é que se utilizam estas internvenções militares que destroem menos o grupo no poder, que pode ser islâmico ou moderno de inspiração capitalista do que os grupos de resistência local socialistas, populares, etc, etc.
    Para separar estas coisas e distanciar-se da visão de estratégia de dominação de estado e de ferramenta para subjugar grupos, sociedades, etnias, ou seja lá quais coletivos prefiram como classe (lembrando que nem toda dominação e estratificação social é classe e que formas diversas de poder se conjugam), é preciso conhecer as formas de organização e resistência locais e soluções diversas que podem aparecer distintas de resistências anticapitalistas que podem ser ou não até parecidas com o que vemos no facismo ou uma forma material de solidariedade e resistência.
    Colocar esta separação me parece essencial. Como apoiar resistentes como Wafa Sultan, mas evitando algo que dificulte a vida de quem vive num país e mantem hábitos distintos como um todo. Que é um movimento internacional de perseguição pautado muito mais habilmente pela extrema direita européia ou militares sulamericanos desejosos de terras indígenas.

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