Por Marcelo Lopes de Souza[*]
Pode ser lida AQUI a primeira parte deste artigo.
A burocratização e a mercantilização têm propiciado as condições ideais para que os “inovadores” se vejam, cada vez mais, acuados por “burocratas” e “(micro)empresários”. Ao mesmo tempo, a impressão que se tem é de que cresce a quantidade destes em comparação com a quantidade de “inovadores” e mesmo de bons “disseminadores”. Na realidade, o que ocorre é que se multiplicam as recompensas para “inovadores” que, candidatos a “caciques”, aceitem absorver algumas das técnicas e artimanhas de “burocratas” e “(micro)empresários”.
Em tempo, para evitar um mal-entendido: “inovador” não é sinônimo de “gênio”. Não se parte do pressuposto delirante de que, para atuar e ser reconhecido por seus pares como um “inovador”, cada professor universitário deve revolucionar sua área de conhecimento, ter livros traduzidos para uma dúzia de línguas estrangeiras ou colecionar prêmios nacionais e internacionais – da mesma forma como não se deve imaginar que, para disseminar competentemente o saber e comunicar-se bem com os pares, os estudantes e o público leigo, seja preciso que o professor possua um incomum talento retórico e uma vocação para “celebridade” midiática. A única premissa é aquela que, inclusive, está embutida nas exigências institucionais mais corriqueiras: que o professor universitário seja, também, um pesquisador, e que, do mesmo modo como se espera que ele, enquanto docente, ministre boas aulas, possa ele, na qualidade de pesquisador, gerar (criar) conhecimento novo.
Ademais, não é o caso de, hipocritamente, negar que é geralmente muito bom que um ou outro colega com talento e capacidade administrativos revele interesse em assumir cargos na administração acadêmica. O princípio da administração da universidade por ela própria, tão deformado no Brasil (porque, ao mesmo tempo em que falta uma genuína autonomia, escasseia a infraestrutura de suporte), implica que as funções de direção, nos diversos níveis, devem ser exercidas por quadros docentes, e não por funcionários que nada tenham a ver diretamente com o ensino e a pesquisa. Além disso, quando as condições materiais e institucionais propiciam o respeito e a cooperação necessários, a administração acadêmica pode, inclusive, assumir traços de atividade de formulador de políticas e estratégias acadêmico-institucionais, exigindo do ocupante do cargo qualidades como arrojo, senso de oportunidade (o que é diferente de oportunismo), vontade de inovação, etc. Nessas condições, exercer um cargo acadêmico pode ser, até mesmo do ponto de vista intelectual (para não falar no “prestígio”, nos marcos de uma sociedade heterônoma que reproduz hierarquias), algo compensador. Não é à toa que, nos institutos e departamentos daquelas que são consideradas as melhores universidades do mundo, os cargos de direção mais diretamente vinculados ao quotidiano dos institutos e departamentos geralmente não são confiados a alguém por conta de sua capacidade meramente burocrática; exige-se uma certa “representatividade”, um certo prestígio acadêmico para estar à frente, formalmente, como um “primeiro entre pares”. (Nem é preciso dizer que há, sem dúvida, “panelinhas” e interesses extra-acadêmicos em jogo mesmo nos ambientes acadêmicos de melhor nível. Apenas trata-se de reconhecer, aqui, o grande peso dos fatores propriamente vinculados à referida “representatividade”.) Não é isto, lamentavelmente, que o processo de burocratização nas condições de um país semiperiférico como o Brasil costuma engendrar como resultado. Pelo contrário: enquanto cargos de direção são geralmente evitados pela maioria por serem um fardo pouco ou nada compensador em matéria de reconhecimento público, há os que se “especializam” em fazer desses cargos o seu “nicho ecológico” básico, sem que, entretanto, necessariamente tenham a capacidade ou mesmo a vontade de inovar administrativamente ou nem sequer reformar o que quer que seja de modo consistente.
Dificilmente um “burocrata” ou um “disseminador” se transforma, de estalo, em um “inovador”. Torna-se cada vez mais provável, entretanto, que “inovadores”, exaustos ou desapontados com a escassez de estímulos materiais e imateriais, joguem cada vez mais cedo a toalha no ringue – mesmo que isso se dê sob a forma de um processo gradual, e não subitamente –, convertendo-se em “burocratas” ou “disseminadores” (ou, em alguns casos, em “(micro)empresários”). Do ponto de vista das relações de poder, particularmente grave é quando os “caciques” tornam-se “caciques” em grande parte por seu poder de influência como “burocratas” ou “(micro)empresários” (ou “disseminadores”), sendo o seu papel como “inovadores” pequeno ou inconsistente.
Os “caciques”, a propósito, são uma “espécie” politicamente crucial, ao mesmo tempo em que possui traços muito peculiares. Ao ingressar na carreira acadêmica, o jovem docente demonstrará, não raro desde o princípio, se seu perfil fundamental é o de um “inovador”, de um “disseminador” ou de um “burocrata”. O estabelecimento como um “(micro)empresário”, ao menos por enquanto, é coisa que exige mais tempo (uma vez que se leva algum tempo até poder mobilizar os recursos necessários à atuação como consultor – prestígio, contatos, formação de equipe etc.), e mais tempo ainda se requer para que se atinja a condição de “cacique”. Se, em condições “ideais”, seria de esperar que um “cacique”, por ser muitas vezes uma figura pública influente, ou mesmo uma “estrela”, deveria chegar a essa condição com base em seus méritos e em sua contribuição sobretudo (ainda que não exclusivamente) como “inovador”, o que se observa no Brasil é que isso cada vez menos parece corresponder à realidade.
O problema não é somente o de que “caciques” nem sempre são “inovadores” consistentes, sendo, isso sim, algumas vezes, “pseudoinovadores”: ou seja, alguém que, vítima em certos casos de autoengano, pensa que está verdadeiramente inovando, mas está, na realidade, reinventando a roda (tornando-se, com isso, apenas um tipo sofisticado de “disseminador”). Em um ambiente em que nem sempre se conhece e acompanha direito a literatura de sua área como seria desejável (nem mesmo aquela em português, o que dirá aquela em línguas estrangeiras), esse tipo de deformação é um importante e constante risco. O problema é ainda mais sério quando a capacidade de falar o idioma do poder acadêmico-burocrático prepondera nitidamente, como fonte de prestígio, sobre a capacidade de criar e transmitir ideias. Nessas circunstâncias, está-se diante de um “paradoxo astronômico”: o “cacique” é uma “estrela” que brilha… sem possuir luz própria.
* * *
As crescentes burocratização do mundo acadêmico e mercantilização da produção intelectual são grandemente facilitadas pelo fato de que os “loci de referência discursiva” (= os objetos reais com referência aos quais se definem e constroem os objetos de conhecimento) e os “loci de construção discursiva” (= os ambientes concretos nos e a partir dos quais o trabalho intelectual é elaborado) predominantes de várias das ciências sociais sempre foram o Estado e o mercado capitalista, e não os movimentos sociais e suas organizações. Quanto a isso, os casos mais “didáticos” têm sido, provavelmente, a Economia e a Ciência Política, mas a Geografia Humana também deve ser lembrada – por exemplo, por conta de seu envolvimento, que frequentemente passa ao largo de qualquer senso crítico, com o planejamento urbano e regional promovido pelo Estado.
É uma triste e preocupante realidade, além disso, que a burocratização não implica somente o aumento da população daqueles que são, acima de tudo, “burocratas”. Praticamente todos os pesquisadores têm sido submetidos a diferentes pressões “burocratizantes” (por parte de agências de fomento, das universidades, etc.), as quais têm levado a que se gaste cada vez mais tempo elaborando e avaliando projetos, havendo, por outro lado, cada vez menos tempo e tranquilidade para gerar conhecimento novo.
Diante de todo esse quadro, quem mais se vê comprometido com o risco de incoerência são os docentes e pesquisadores que, à luz de suas biografias e autodefinições, representariam alguma modalidade de pensamento socialmente crítico. O “olhar de longe e do alto” nas ciências sociais, bastante típico da Economia e da Ciência Política, mas também da Geografia Humana, pode, eventualmente, até ser considerado como perfeitamente legítimo do ângulo do pensamento crítico, em uma circunstância: caso seja realizado com a finalidade de se ganhar visão de conjunto e apreender fenômenos somente apreensíveis nas escalas de representação dos grandes espaços, e não por distanciamento em relação aos “mundos da vida”, ao quotidiano dos atores sociais concretos. Mas, se for valorizado com exclusividade ou nítida prioridade, será uma “visão de sobrevôo” similar àquela que é própria do Estado, a qual serve à classificação e ao controle sociais. Essa “visão de sobrevôo” hipervalorizada pode ser compatível ou compatibilizável com a burocratização do mundo acadêmico e a mercantilização da produção intelectual. Entretanto, a disposição de abraçar ou manter um compromisso ético-político com a mudança sócio-espacial vai sendo minada ou dificultada no longo prazo pela burocratização e pela mercantilização, que levam a uma tendência de distanciamento crescente dos ambientes acadêmicos relativamente às circunstâncias espaço-temporais em que é possível observar as contradições e os conflitos sociais “de perto” e mesmo “de dentro” (o que pressupõe incorporar a perspectiva do insider, do “mundo da vida”).
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ilustrações: gravuras de Goya.
Olá Marcelo e leitores,
Acompanhei o artigo – e as discussões desenvolvidas na seção de comentários. E, assim como o João Bernardo ressaltou, também muito me entristece perceber que concordo com 100% das idéias e argumentos aqui desenvolvidos.
Para apresentar um outro ponto para nosso debate – e aproveitando do comentário de Danilo Chaves Nakamura, em referência a idéia de Paulo Arantes sobre a existência de uma massa nova de “intelectuais precários” (sem lugar na Universidade – e que vai morar e atuar com os movimentos populares nas periferias das grandes cidades) -, gostaria de saber o seguinte:
– A partir do momento em que esses “intelectuais precários” entram em contato com diferentes organizações dos movimentos sociais, não existe o risco de que a burocratização possa vir agora do outro lado – ou seja, de dirigentes e formas de atuação verticalizadas?
Pergunto isso por um simples motivo: para além de qualquer “paranoia com o aparelhamento” (o que seria, no mais das vezes, historicamente justificada por inúmeras experiências históricas nas lutas sociais), a principal contribuição existente numa atuação conjunta de (ex-)universitárias engajados (e não mais pertencentes ao ambiente universitário) em diferentes movimentos populares é justamente a capacidade de construção coletiva e crítica.
Daí que – em casos de burocratização reinante em algum movimento popular -, mesmo “mudando os ares”, a contribuição daqueles que querem contribuir teórica e praticamente para um processo de transformação fica a meio caminho – já que seu espírito crítico e criatividade são, grande parte das vezes, minadas. Não só os desses “intelectuais precários” – como também de todos os envolvidos nessas lutas, que ficam sujeitos às decisões das direções.
Claro que estou falando disso em relação aos universitários (ou ex-universitários) que se envolvem de fato com a construção coletiva das mobilizações. Ou seja, assim como a chamada “base”, tais intelectuais também fica reféns de um iluminada direção. Outro tipo de intelectual é aquele que, como meta e projeto político, reforça a diferenciação entre base e direção – tornando-se, assim, parte da direção dessas organizações populares.
Talvez seja essa mesma a questão central: afinal, a luta é para que intelectuais tomem as direções dos movimentos (“nova” burocracia no lugar da “velha”), ou para que a construção das organizações seja de fato horizontal (e daí, e até que enfim, tanto os intelectuais, como a referida base – que alguns intelectuais têm horror de exercer o mesmo poder de decisão – possam efetivamente destruir essas divisões internas que só contribuem para a burocratização das lutas sociais)?
É de se pensar.
Abraços,
Talvez seja essa mesma a questão central: afinal, a luta é para que intelectuais tomem as direções dos movimentos (”nova” burocracia no lugar da “velha”), ou para que a construção das organizações seja de fato horizontal (e daí, e até que enfim, tanto os intelectuais, como a referida base – que alguns intelectuais têm horror de exercer o mesmo poder de decisão – possam efetivamente destruir essas divisões internas que só contribuem para a burocratização das lutas sociais)?
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Caríssimo Xavier e demais companheiros:
No meu artigo, que o PassaPalavra achou por bem dividir em duas partes – por ser um pouco longo -, eu me concentrei, por assim dizer, em um aspecto do problema. A questão que você levanta tem a ver com um dos desdobramentos de toda essa discussão. A gente poderia formular esse desdobramento desta forma: pois bem, e o que fazer com um conhecimento que seja realmente crítico e não arrogante (ou seja, sem os cacoetes do “discurso competente” e do “tecnocratismo de esquerda”)? Mas eu acho mais rigoroso e elucidativo a gente formular o tal desdobramento sob a forma da seguinte questão: em que condições se constrói um saber realmente crítico e radical que, enquanto tal? Ouso apostar que somente nas condições da PRÁXIS. Sei que soa como lugar comum, vou usar isso para estabelecer uma espécie de balizamento.
Do ponto de vista que advogo, a práxis visa, sempre, a AUTONOMIA: o conhecimento emancipatório é produto em meio a um fazer dos homens e mulheres que é, ao mesmo tempo, um fazer-SE desses homens e mulheres. Nesses marcos, a “teoria” nada mais é que um esforço, sempre provisório – e que SE SABE como tal – de sistematização em sentido amplo (isto é, sem “espírito de sistema”) e de elucidação. Não há “teoria” a ser elaborada por uma camada, segmento, instância de poder ou grupo privilegiado (o Partido, o Comitê Central…), e de uma vez por todas. Além do mais, a autonomia é, por definição, HORIZONTAL: a práxis revolucionária exercida sob as condições de uma tutela autoritária (centralista, estadocêntrica, partidária) é uma práxis caricatural, uma vez que manietada pela heteronomia que lhe serve de contexto (ou se argamassa organizacional e ideológica).
Dito isso, vou estabelecer duas restrições:
Uma diz respeito a grande parte (ou à maior parte) da esquerda acadêmica – MESMO AQUELA REFERENTE A UM “MARXISMO HETERODOXO”. Por tratar-se de intelectuais algumas vezes de alto nível, mas desvinculados das práticas dos agentes que lutam para tornar-se sujeitos não sujeitados (sem-terra, sem-teto etc.), produzem, quando muito, um conhecimento potencialmente interessante e útil a respeito de certas conexões gerais e globais (a “dinâmica do capital”), mas marcado por uma extrema ARROGÂNCIA e por uma enorme incapacidade de construir estratégias de TRANSFORMAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL. É comum ouvir frases condescendentes segundo as quais os movimentos sociais concretos teriam uma indiscutível “dignidade”, mas lhes faltaria uma visão de “totalidade”. “TOTALIDADE”! Eis a categoria relevante que, na boca de tantos marxistas – e me refiro mesmo a vários dos “heterodoxos” -, degenera rapidamente em categoria METAFÍSICA, RACIONALISTA, infensa à práxis. Isso ajuda a explicar a melancolia dessa gente (ou o seu pessimismo) – aquele tipo de melancolia “fin-de-siècle” charmosa, que povoa o caderno “Mais!” da Folha de São Paulo (agora rebatizado como “Ilustríssima”).
Outra restrição, mais dolorosa e mais delicada, diz respeito aos próprios movimentos sociais. Onde está a HORIZONTALIDADE? Há algumas décadas que vemo-la difundir-se como uma exigência. Várias organizações de movimentos têm, hoje em dia, a autogestão como um horizonte organizacional consciente. A desconfiança em relação ao “centralismo democrático” bolchevique e seus equivalentes funcionais tem, desde os anos 90, crescido – os Zapatistas mexicanos, uma boa parte dos piqueteros argentinos, os “Autonomen” na Alemanha, o “Reclaim the Streets” na Inglaterra, várias ocupações de sem-teto no Rio de Janeiro… Há muita coisa nova fermentando, sem dúvida. Há, infelizmente, um ambiente GERAL, no mundo, de neoconservadorismo, que é asfixiante; mas, em meio a isso, há várias manifestações importantes e criativas de resistência. E, dentre essas, as que mais têm se destacado, por sua originalidade, são, seguramente, não aquelas que tentam retomar o “socialismo real”, mas sim aquelas que, ainda que de modo transformado e amadurecido, buscam recuperar a herança libertária (que não se restringe ao anarquismo clássico: em sentido amplo e não dogmático, nos remete ao conjunto de vertentes empenhadas no enfrentamento simultâneo do capitalismo E do “socialismo burocrático” e seus pressupostos autoritários/hierárquicos). A questão, no entanto, é que as dores do parto das novas formas de organização e dos novos discursos são lancinantes: há, ainda, mesmo em alguns movimentos sociais importantes e interessantes, elementos verticais e hierárquicos (organizacionais e discursivos) que atravancam o caminho. E mais: que tornam esses movimentos, às vezes, um pouco vulneráveis perante as aproximações de partidos e grupelhos de figurino bolchevique, sempre dispostos a aparelhá-los (tarefa grandemente facilitada quando o formato da própria organização do movimento já era um tanto vertical e inspirada em um figurino, por assim dizer, partidário).
Não precisamos, sem dúvida, de novas “direções”. Precisamos, isso sim, de novos RUMOS. Esses rumos, no entanto, JÁ VÊM sendo construídos. E não só em Chiapas, mas, muito mais modestamente, em ocupações de sem-teto tais como Quilombo das Guerreiras e Chiquinha Gonzaga, na Zona Portuária do Rio de Janeiro (onde, nesta última, aliás, realizou-se, ontem, mais uma reunião da bela iniciativa que é o [Re]Unindo Retalhos, grande articulação de movimento para trocar experiências e organizar lutas conjuntas). As sinergias, cabe a nós – com as origens que tivermos, com as biografias que tivermos, com as experiências que tivermos – ajudar a propiciá-las.
Companheiros:
Somente agora percebo que, na correria da manhã, cometi alguns lapsos de digitação, engolindo algumas palavras e deixando uma passagem um pouco truncada. Mesmo assim, creio que o comentário anterior está perfeitamente compreensível.
O que me leva a complementá-lo, agora, é uma preocupação. Preocupação com dois possíveis mal-entendidos – aliás, seguramente interligados.
1) Quando eu fiz referência crítica a certos “marxistas heterodoxos” – no fundo, “marxistas de salão”, avessos a uma práxis efetiva e profundamente racionalistas, contaminados até a medula pelo imaginário capitalista -, eu preferi não nomear vertentes e ambientes institucionais particulares, para não incorrer em uma deselegância e, também, na injustiça de mencionar alguns exemplos e esquecer outros. Com isso, porém, é claro que incorri em outro risco: o de dar a entender que estava a menoscabar “in totum” o pensamento marxista. Ao deixar clara a minha afinidade com a “linhagem libertária” (amplamente compreendida, isto é, não restringida ao anarquismo clássico), o risco de um tal mal-entendido, à luz da história de antagonismo feroz entre marxistas e libertários, certamente só se veria reforçada. Ora, nada mais distante das minhas intenções – e dos meus esforços ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Tenho, em muitas ocasiões, ressaltado que, para a minha formação, intelectuais como A. Pannekoek, E. P. Thompson, João Bernardo e Robert Kurz (e, até, certo ponto, Henri Lefebvre, por exemplo) – que, de modos distintos, desdobraram o legado de Marx sem dogmatismo, inclusive polemizando com aspectos do próprio pensamento marxiano – para não mencionar o próprio Marx, tiveram e têm uma importância simplesmente crucial. Note-se que os mais lúcidos dos libertários contemporâneos, como Bookchin e Castoriadis, mesmo oferecendo interpretações extremamente desconfortáveis no que se refere a diversos aspectos da herança marxista (e, sobretudo, marxiana), não cometeram a injustiça, tão comum em espíritos imaturos e desinformados, de substituir a crítica ponderada pela iconoclastia vociferante. (Sirvam de exemplo, aqui, o respeito mútuo, graças a isso, entre um Thompson e um Castoriadis, ou o profundo respeito que Bookchin sempre nutriu pela obra de Marx, para além de todas as óbvias divergências.)
2) A aposta na horizontalidade e na autogestão – não como palavra oca, como adorno discursivo, como impostura, mas sim como práxis que renasce e teima em se reafirmar – precisa, nos dias que correm, considerar algumas peculiaridades. Há, por um lado, uma leitura, que creio ser legítima, e que é aquela que adiantei no comentário anterior: o “novo” – que não é exatamente “novo”, obviamente, mas que foi abafado durante as décadas de hegemonia do “socialismo real” e do bolchevismo, e que agora ressurge renovado – é o projeto de autonomia, sob a forma de uma exigência, em muitos lugares e em muitos movimentos, por horizontalidade e autogestão. Isso, no entanto, se acha, nos planos simbólico, discursivo e organizacional, volta e meia mesclado com elementos verticais, hierárquicos. E nem tudo é estratégia adaptativa, instinto de sobrevivência ou mimetismo oportunista de organizações (e intelectuais) que, oriundos de um ambiente outro (crença no Partido, no “socialismo real”, no “centralismo democrático” etc. etc.), agora tentam integrar-se a um mundo no qual zapatistas e piqueteros lhes confundem. Oportunismos existem, mas leituras moralizantes são limitadas e, no limite, tacanhas e um tanto tolas. Há militantes, pesquisadores etc. honestos e sensíveis que, tendo sido socializados politicamente em dado ambiente, efetuam transições e operam aberturas, menos ou mais lentas, menos ou mais consistentes. Vivemos não uma era de organizações e movimentos “puros”, na maior parte dos casos; vivemos uma era de busca de novos referenciais – com umas tantas confusões e alguns debates e umas tantas tensões internas aos próprios movimentos.
Não creio que seja, em absoluto, o caso de abrirmos mão de nossas identidades. É preciso ser sincero e divergir de peito aberto – mas co um mínimo de espírito receptivo, com disposição para aprender e trocar. Com disposição antes para CONvencer que para “vencer” e, acima de tudo, com disposição para COOPERAR, até onde for possível. Tenho dito e repito: não estamos em 1936 ou 1937, na Espanha; libertários e marxistas precisam buscar os pontos de convergência possíveis nesta quadra da história, ao mesmo tempo em que as diferenças podem propiciar avanços de parte a parte. É claro que isso tem alguns “limites”, por assim dizer. Para um marxista, certamente não será possível tolerar um libertário que insulte Marx sem que deste tenha lido uma linha sequer; para um libertário, em contrapartida, dialogar com um “conselhista”, no estilo de Pannekoek (ainda existem?…), deveria ser infinitamente mais fácil que estabelecer qualquer tipo de cooperação com um leninista consequente – o que, é forçoso reconhecer, é muito difícil, se não impossível. Creio, entretanto, que, tanto entre libertários quanto entre marxistas, aumenta o número daqueles dispostos ao diálogo. Diálogo que, como todo diálogo, pressupõe a diferença, a existência do Outro – mas, precisamente, também o respeito.
Companheiro Marcelo:
Mesmo considerando – a serem mantidos os marcos sistêmicos do capitalismo – que o processo de mercantilização e burocratização da universidade seja inexorável, vou aceitar o desafio de refletir sobre as possibilidades de resistência do pensamento crítico em meio ao ambiente extremamente desfavorável que você descreveu (com contornos quase dantescos!). Afinal, sei perfeitamente que não é a sua intenção, ao expor as coisas de maneira realista, disseminar o imobilismo e minar a “moral” daqueles que, como você, sabem tão bem fazer da universidade o que ela deveria ser.
Vou priorizar, portanto, a ênfase sobre os elementos que podem ser mais nocivos à “vida inteligente” e crítica nas universidades: a formação de círculos de poder que impeçam o acesso de novos professores/pesquisadores críticos; a completa falta de recursos e estrutura para a sua atividade; a pletora burocrática que entrava a sua produção e o seu engajamento. Limito-me a estes aspectos por acreditar que, na escala da universidade, não há muito mais o que fazer do que criar espaços de resistência, evitando, assim, aquela ingenuidade tão bem ilustrada por um Lima Barreto em “Policarpo Quaresma”, que acreditava poder mudar as instituições apenas com o seu voluntarismo.
Começo pelo primeiro elemento, que são os círculos de poder, ou “panelinhas”. Posso estar enganado, mas acredito que hoje elas são menos influentes do que já foram, e tendem a ser ainda menos no futuro. Seja pela diminuição do prestígio dos “caciques”, seja pela dispersão dos “micro-empresários” causada pelas exigências das suas atividades mercantis, o que temos visto em muitos dos atuais processos de seleção de novos professores nas universidades públicas é uma abertura cada vez maior a candidatos que souberam moldar o seu currículo com habilidade (isto é, com profusão de artigos, participações em eventos acadêmicos e formações complementares, mesmo que todos de qualidade duvidosa). Afinal, tendo em vista o ambiente concorrencial consequente ao declínio dos grandes “caciques”, e considerando-se a vinculação dos recursos recebidos pelos departamentos à produção quantitativa do seu quadro discente e à soma dos seus diplomas de doutorado, temos que as bancas encarregadas de selecionar os seus novos colegas acabam por priorizar aqueles capazes de produzir o máximo possível e que tem o mais alto diploma. Segue, frequentemente, a disputa entre os “caciques-empreendedores” para tentar arregimentar os noviços para os seus “laboratórios/empresas”, aumentando assim o seu quadro de “funcionários”: primeiro, pelos próprios professores; depois, pelos seus orientandos e futuros bolsistas.
O que escrevi logo acima tem uma implicação ambivalente para os jovens pesquisadores críticos que almejam aceder ao ambiente acadêmico: por um lado, os diques representados pelas panelinhas estão menos resistentes. Por outro lado, um pesquisador crítico, e que ainda seja organicamente vinculado aos movimentos sociais, se depara com a maior concorrência dos seus colegas, muitos dos quais dedicam seu tempo quase que exclusivamente a robustecer o seu currículo, em geral em ambientes como os “laboratórios/empresas”, os quais souberam desde muito cedo exercer uma alquimia negativa, a qual consiste em transmutar mercadorias em artigos curriculares (“ouro” em “tinta”).
Consideremos, agora, o problema da falta de recursos e estrutura para a atividade dos pesquisadores críticos. Nesse aspecto, é preciso diferenciar a estrutura material (verbas, instalações, vagas de trabalho etc.) da estrutura “imaterial” (nível de formação dos alunos e dos professores, estabilidade profissional, tempo para estudo e desenvolvimento das pesquisas etc.). A estrutura material é mais suscetível às variações conjunturais, dependendo do papel ao qual a universidade é chamada a desempenhar na acumulação capitalista. A partir de 2003, o sucateamento das universidades federais começou a ser revertido, com aumento das verbas, reabertura de concursos para professores e funcionários técnico-administrativos, reajuste das bolsas de todos os níveis, expansão de certas universidades e abertura de outras novas. Nos estados o quadro varia muito: há aqueles em que as universidades estão à mingua (como o Rio de Janeiro), enquanto outros seguem a tendência federal (como Santa Catarina). Apesar das variações de esferas administrativas, há, hoje, uma demanda crescente por novos professores, mas uma demanda cuja continuidade depende da conjuntura. Além disso, o salário dos professores universitários, embora longe do que poderia ser considerado como ideal, está longe também de ser péssimo, pairando bem acima da média dos salários dos servidores públicos no Brasil e muito acima dos salários de professores universitários da grande maioria dos países (semi)periféricos. A estabilidade profissional nas universidades públicas é proporcional à sua burocratização (e, embora não seja causa direta dela, permite que ela se expanda sem barreiras) e, mais importante do que isso, há grande liberdade de profissão ideológica e de escolha e desenvolvimento de temas de pesquisa nelas. É evidente que, muitas vezes, paga-se com o isolamento e a falta de financiamento, mas, mesmo assim, tendo em vista a burocratização cada vez maior das agências de fomento à pesquisa e à carência de formação e desbotamento ideológico dos seus consultores e pareceristas, os critérios para a aceitação de projetos de pesquisa estão de mais a mais vinculados aos currículos dos seus proponentes, e não tanto ao seu caráter dócil ou crítico do status quo. É claro que os “caciques-microempresários”, além de conseguirem recursos com os seus serviços prestados às empresas ou às administrações estatais, tendem a robustecer o seu currículo em maior velocidade (pela “transmutação alquímica” já mencionada) e a conseguir um número maior de currículos associados às suas pesquisas (devido à cooptação também mencionada anteriormente). Mas nada disso impede que os pesquisadores críticos (e até mesmo engajados) consigam também ter aprovados os seus projetos, como têm dado prova alguns bravos, e até certo ponto notórios, intelectuais; “apenas” obriga-os a se depararem com a pletora de formulários, projetos e demais procedimentos burocráticos que lhe cerceia o precioso tempo para a pesquisa (sobretudo aquela com “perspectiva histórica”, a que se referiu o João Bernardo no seu comentário) e para a cooperação junto aos movimentos sociais.
No que concerne à estrutura, portanto, aquela que mais escasseia para o desenvolvimento de pesquisas críticas e ao mesmo tempo engajadas é de conteúdo “imaterial”: a péssima formação dos alunos, o conservadorismo e individualismo reinantes entre eles – elementos que os tornam muito mais facilmente arregimentados pelos”laboratórios/empresas” – e a falta de tempo. Quero defender aqui, depois de todas essas linhas, que nada disso deve ser visto como um bloqueio irreparável à construção das “trincheiras” de resistência do conhecimento crítico e engajado dentro das universidades. Isto se considerarmos que ela ainda é uma instituição importante a ser disputada na “guerra de posição” que pretendemos empreender contra o sistema de opressão capitalista. Neste caso, precisamos – nós, os intelectuais críticos e que cooperam com os movimentos sociais – subverter os aspectos irracionais da burocratização em favor da nossa estratégia de (contra)poder, a começar por romper a distância que guardamos uns com os outros. Multiplicar os espaços de reflexão e discussão das nossas pesquisas, os meios de divulgação científica críticos, a nossa cooperação (em pé de igualdade, claro!) com os movimentos sociais, fazendo com que isso seja lido pelos burocratas de bancas de seleção e de agências de fomento da maneira como elas verdadeiramente são: atividades acadêmicas 9mesmo que rompam com os limites da academia. Para isso, há de se vencer também a desconfiança dos movimentos sociais, que estão acostumados a constatarem que a aproximação dos “intelectuais críticos” produz mais prestígio para estes últimos do que caminhos para a sua práxis. É preciso, pois, que nos associemos e cooperamos cada vez mais nas universidades, que tenhamos uma estratégia de formação dos futuros professores críticos e que tudo isso seja iluminado no trabalho de cooperação com os movimentos. Em todas essas tarefas, o nosso companheiro Marcelo Lopes de Souza tem dado um importante exemplo (acessem, para uma rápida constatação, a página do colóquio que ele e o seu núcleo de pesquisas vêm organizando: http://territorioautonomo.wordpress.com/).
Tenho uma discordância de enfoque sobre os estudos realizados e sua função. Acho que ao contrário de você, acho que justamente os estudos acadêmicos e universitário sobre movimentos sociais são os que, exatamente quando feito pelas pessoas mais conhecedoras e que circulam melhor nos movimentos sociais, tendem a servir melhor ao processo de burocratização do capital.
De fato, quando isto acontece, ocorre algo diferente das pesquisas normais, circula oxigênio e as pessoas entendem melhor as contradições dos processos de luta, mas, para quem estas pesquisas se dirigem ?
Vejo muitos policiais consultando teses na USP, por exemplo, mapeando o que sai e colhendo dados novos, mas os movimentos sociais, por exemplo, na maioria dos casos, atem-se à uma análise pautada numa hierarquia interna onde o esforço analítico é desenvolvido e os militantes consomem e reproduzem. Isto não os torna menos anti-capitalistas, mas mostra que estão presos nas contradições sociais como todas as outras organizações até agora, com a diferença de que apontam algo para além.
Sempre achei que a melhor contribuição fosse estudar o capitalismo e seus desdobramentos nos diversos campos que o constituem auxiliando na análise dos movimentos sociais anti-capitalistas e não ajudar a estudar os movimentos para o estado na gestão de conflitos sociais.
É interessante que o saber produzido pelos movimentos sociais coletivamente se torna objeto de estudo de um acadêmico que, após formalizá-lo, dele se apropria, retornando ao movimento social como especialista. Este especialista é ouvido e então se torna referência inclusive para a auto-análise do movimento naquilo em que é menos tático, ou pragmático.
Além disso, não em relação aos movimentos anti-capitalistas que possam vir a existir (como exemplo o autor do texto que fio preso recentemente: http://bit.ly/bzFklS), os que estão aí se organizam com base em certo repertório inspirado no centralismo e com relações internas a partir de formação de quadros, etc, que, mesmo que externamente repilam a universidade, tem certa analogia funcional e por isso incorporam o saber técnico aplicado destes quando entram no ME.
O estudante sai da universidade contra a burocratização e a hierarquia baseada no saber técnico e o movimento, num momento de tensão em que necessita reagir a partir de certa estrutura contra o estado, utiliza a divisão social de tarefas e emprega a função especializada daquele universitário.
Companheiros:
Apesar de parcialmente discordantes, os comentários do Eduardo e do Douglas trouxeram pontos fundamentais para este debate.
Quem estuda, pesquisa e reflete, reflete A PARTIR DE ONDE, COM QUAIS PROPÓSITOS e ESTABELECE QUAIS PRIORIDADES E PARCERIAS? (E mais: que CAUTELAS devem ser estabelecidas?) O mais comum é pensar em uma perspectiva que parta da universidade para o “povo” (movimentos e suas organizações, por exemplo). Há vários (não muitos, infelizmente) estudantes corajosos e com garra e desejo de mudança que, em um primeiro momento, pensam assim, de modo bem convencional. Mas o Xavier e eu mesmo já havíamos frisado que não se trata propriamente disso: trata-se de, SEM ABRIR MÃO DAS UNIVERSIDADES, APRIORISTICAMENTE, COMO UM ESPAÇO A PARTIR DO QUAL ALGUMAS COISAS AINDA PODEM SER FEITAS (MAS SEM ILUSÕES E SEM EXPECTATIVAS EXAGERADAS, CABE SALIENTAR!), LUTAR PARA QUE OS PRÓPRIOS MOVIMENTOS GEREM, CONTINUAMENTE, O SEU “SABER-PODER” INSURGENTE. Não é à toa que a principal organização de movimento social da África do Sul – a Abahlali baseMjondolo [“Movimento dos ‘Shack Dwellers’” na língua zulu], que enfrenta tanto o partido do Congresso Nacional Africano quanto as ONGs e a “esquerda acadêmica – criou, sugestivamente, a sua “universidade”, a “University of Abahlali” (vale a pena dar uma olhada, eles têm uma bela página na Internet). Criaram-na, justamente, para não ficarem DEPENDENTES da “esquerda acadêmica” e das universidades formais – O QUE NÃO IMPEDE A ABAHLALI DE TEREM PESQUISADORES E INTELECTUAIS UNIVERSITÁRIOS ENTRE OS SEUS PARCEIROS, MAS SEMPRE EM UMA RELAÇÃO DE DIÁLOGO, SEM HIERARQUIA. O lema central deles é: “talk TO us – not FOR us, not ABOUT us”.
Dito isso, algumas ponderações:
1) É claro que não faz nenhum sentido, de um ponto de vista emancipatório consistente, coerente e honesto, “estudar” movimentos sociais como quem estuda, digamos, espécies exóticas. Aliás: movimentos fortes, como a Abahlali – ou mesmo o movimento dos sem-teto do Rio de Janeiro, que conheço muito bem – não PERMITEM que se estabeleça uma relação nem remotamente parecida com isso, em que universitários, pesquisadores e intelectuais se arvoram em “especialistas”. Esse é o figurino das ONGs – e sabemos o estrago que isso tem causado.
2) Há, de qualquer forma, uma circulação e uma interação entre saber produzido em universidades e fora delas – inclusive em ambientes das organizações dos movimentos. Ativistas se utilizam de um vocabulário e de elementos interpretativos em grande parte, muitas vezes, herdado de alguém já morto há cem ou cento e cinqüenta anos. Alguém que, mesmo sem ter trabalhado em universidades, obteve títulos acadêmicos (Marx, por exemplo) ou, em todo o caso, cultivou um tipo de saber “acadêmico”, no bom sentido (como os anarquistas e geógrafos Piotr Kropotkin e Elisée Reclus, por exemplo). Isso é, a priori, ruim? Não seria razoável pensar assim. O problema reside em outro lugar. Reside nas HIERARQUIAS, no tipo de relação INTELECTUAL e POLÍTICA que se estabelece e se reproduz, via de regra, entre “dirigentes” e “executantes”, entre “trabalhadores intelectuais” e “trabalhadores manuais”, entre “classe média” (ou os [candidatos a] “gestores”, de que nos fala João Bernardo, ou a “burocracia”, no sentido de Castoriadis) e o “povão” – e entre o “saber” plenamente reconhecido como tal (“teoria” em sentido pleno, segundo o pensamento herdado), e o que é, condescendentemente muitas vezes, chamado de “saber local”.
3) Quem disse que somente algum tipo de conhecimento que envolva, diretamente, a dinâmica dos movimentos, pode ser apropriado pelo Estado?!… O Estado – e o capital privado, sem mediações – deglute e regurgita, se apropria e coopta muitos tipos de conhecimento, inclusive muitos daqueles sobre aspectos relativos à “dinâmica do capital(ismo)”. Não tenhamos ilusão quanto a isso. Os exemplos abundam.
4) Ainda sobre não termos ilusões: o essencial não é, portanto, claro, apenas “estudar” OS movimentos, mas sim buscar conhecer a realidade sócio-espacial JUNTAMENTE com aqueles agentes que, buscando se afirmar como sujeitos não sujeitados, lutam por afirmar a própria autonomia, e nos quais pesquisadores de classe média (os tais caras precarizados de que falou o Xavier – mas que devem ter a consciência aguçada não apenas pela própria “pindaíba” momentânea, mas sim pela compreensão global do beco sem saída que é a realidade do capitalismo atual) devem ter os seus PARCEIROS/COMPANHEIROS. Restringir-se a uma “visão de sobrevôo” para dar conta da “dinâmica do capital(ismo)”, sem levar suficientemente a sério – inclusive METODOLOGICAMENTE – o desafio de mergulhar no “mundo da vida” dos sujeitos e suas lutas, é o caminho que leva ao conhecimento a serviço de um olhar, precisamente, arrogante, sociocêntrico (“socialismo científico”…). Ou seja: uma práxis truncada ou caricaturada, para voltar a um comentário que fiz anteriormente.
Que bom que o debate sobre o texto está tendo apontamentos ligados à prática, ou melhor, a práxis. A mensagem do Eduardo trouxe o ponto da forma de resistência anti-capitalista no interior da universidade, algo não só possível como necessário. Que os professores, funcionários e estudantes conscientes desta tarefa se organizem no interior da universidade para realizar discussões, atos, atividades, eventos, etc… que contribuam para o desenvolvimento de uma consciência autogestionária nos participantes e pessoas próximas. (Como bem notou o Eduardo não é uma tarefa fácil, mas é necessária).
Um outro apontamento, que está diretamente ligado ao primeiro, é o de se buscar uma aproximação com os movimentos sociais internos e externos à universidade, baseado na lógica do “talk to us – not for us, not about us” como apontou o Marcelo.
E por último, a aproximação destes coletivos, grupos, redes, que já realizam estas atividades em universidade pelo Brasil e pelo mundo, movimentos sociais, para a troca de experiência, bem como de realização de atividades conjuntas, quando possível. O que hoje em dia é facilitado pela internet, por exemplo como estamos fazendo agora neste site, e se faz também em outros como CMI, Movaut, etc…
Por fim relato um pouco de minha experiência na Universidade burocratizada, mercantilizada e medíocre Federal Fluminense. Lá, pude conhecer e participar de um movimento social que se baseava na autogestão e lutou contra a REItoria e contra os partidos burocratizados ditos de esquerda, por assitência estudantil, o “Acampamento Maria Júlia Braga”, onde de fato me formei. Este movimento contou com um apoio importante de uma professora da Educação, a Profa Maria Lúcia Oliveira, que busca desenvolver relações horizontais entre os participes do projeto sobre “Redes de solidariedade em espaços públicos” (o nome não é bem este mas a idéia é esta que estamos debatendo). O projeto procura articular os setores e indivíduos que lutam na área de educação, no ensino fundamental, médio e superior, bem como outros movimentos sociais, e dentro do possível,(na conjuntura etc e tal) creio que contribui com algumas sementes autogestionárias. Outros poucos professores foram também solidários ao movimento.
Para concluir, nos cabe tentar criar espaços de contra-poder no interior da universidade, como o AMJB fez enquanto durou, como o projeto “redes de solidariedade em espaços públicos” faz, como outros movimentos e coletivos fazem, ou ao menos tentar fazer…
Terminando o artigo, vi que não foi falado sobre a relação da academia com um tipo de movimento social que é interno a ela: o movimento estudantil universitário.
Por vezes vejo que, por lidarmos com a base (diga-se de passagem que, enquanto intelectuais libertários, não existe essa de nós x base: somos a própria base!!!) que está imersa no ambiente acadêmico, onde, pra piorar, nos ambientes de humanas o processo de “alienação teórica” (como diria Castoriadis) é maior que nos ambientes de exatas que estão mais longe de pensamentos “conservadores chiques” como os que já ouvi durante minha tragetória de atuação que demonstrarei rapidamente aqui:
1) “mesa e inscrição de fala é autoritário/eurocêntrico!”
2) “deveriamos sermos todos Bartleby, onde, afirmando “eu preferiria não fazer”, renuncia-se a todas teleologias!”
3) [insira uma frase de teor moralista que confunda intelectualismo com academicismo, vindo da boca de pessoas que nunca se engajaram em um processo de luta e somente lêem o que aparece nas grades das aulas]
4) (essa é hilária): “no que li do comitê invisível, deveríamos fazer ‘atos moleculares’ em toda a cidade, com poucas pessoas bloquear diversas estradas: nós da PUC podemos trancar o túnel Zuzu Angel e vocês do Centro a Presidente Vargas!” (imagine aquelas reunioes cheias onde o que se faz do deliberado é cumprido por somente 5% dos participantes).
Ou seja, a relação entre teoria e prática, no movimento estudantil, principalmente nas áreas de humanidades, acaba tendo um caráter de colonialismo intelectual voluntário cuja recusa de se ler e teorizar sobre a matéria bruta da prática leva à preguiça de ler os processos de luta por meio das teorias que temos que ler para tirarmos boas notas. Do que li nos comentários, seria algo mais distinto do que nos movimentos sociais como sem teto, onde a base não é refém das “novidades” de “modismos” acadêmicos cuja interpretação e sensação de novidade que vem dos países centrais muitas vezes mostra, para os olhares mais atentos, um sintoma da amnésia teórica (os inventadores de rodas) e uma profunda ignorância sobre a formação social brasileira e quais seus dilemas centrais.
Estou devendo uma análise, ainda, sistemática do seu artigo, Marcelo, mas sairá algum dia!