Por Felipe Corrêa

 

Este artigo surgiu a partir de um convite do portal Passa Palavra, para todos que estiveram envolvidos no debate em torno da burocratização dos movimentos sociais lançado pelo artigo “Entre o Fogo e a Panela: movimentos sociais e burocratização”. A partir do convite, pensei que haveria algumas contribuições que eu poderia trazer ao debate, tanto a partir de referenciais teóricos, que venho estudando mais recentemente, quanto a partir do pouco mais de dez anos de prática com os movimentos sociais, que creio terem agregado algum conhecimento.

Na realidade, minha breve contribuição ao debate no Passa Palavra, feita por meio de um comentário ao artigo citado, referia-se aos problemas colocados pela prática, que muitas vezes complicam a análise e as propostas teóricas. E o convite foi realizado para que eu desenvolvesse esse argumento em um artigo.

Apesar disso, pensei que seria interessante voltar um pouco na discussão e tentar fazê-la do início, retomando aspectos de “Entre o Fogo e a Panela” e colocando uma análise própria sobre o tema para, posteriormente, chegar ao argumento dos problemas práticos.

Finalmente, decidi pelos seguintes passos que foram desenvolvidos: primeiro, busquei uma definição de objeto, tentando conceituar o que são os movimentos sociais e quando eles surgiram; depois, buscando um método de análise coerente, discutindo brevemente as três principais correntes teóricas sobre os movimentos sociais e chegando à Teoria do Confronto que, no campo acadêmico, parece oferecer boas bases para um trabalho teórico sobre os movimentos sociais.

Ainda que sem aprofundar significativamente o assunto, considerei as reflexões da Teoria do Confronto Político em torno de mecanismos e processos dos movimentos sociais e tentei aplicá-los, tanto para uma análise da burocratização como para um possível programa antiburocrático para os movimentos sociais. Se na primeira parte, de definição do objeto e de busca de um método de análise, utilizei referenciais acadêmicos, para a segunda parte, tentei formalizar uma série de conhecimentos que foram sendo adquiridos na prática com os movimentos sociais nesses anos. A idéia foi, basicamente, a partir de uma definição de burocracia e burocratização, listar tudo aquilo que contribuía com elas e, refletindo sobre causas e conseqüências, poder classificar e evidenciar mecanismos e processos de burocratização – o que constitui o problema a ser resolvido. Em seguida, desenvolvi um programa antiburocrático, que pode ser considerado uma saída para o problema apresentado.

Nessa reflexão sobre o programa antiburocrático, trago a discussão sobre o poder popular, baseando meus argumentos em material bastante recente produzido por uma determinada corrente, que hoje atua em movimentos sociais dos mais diferentes tipos – sindical, comunitário, estudantil, etc. E a partir dessa discussão, formulo teses sobre o poder popular que definem a concepção que sustento do conceito.

Por fim, entro em problemas que a prática coloca para a implementação do programa antiburocrático e do projeto de poder popular defendidos, levantando questões sem resposta para futuros debates coletivos.

O subtítulo “Da teoria à prática” revela esse fluxo do texto, que parte de reflexões em grande medida teóricas e acadêmicas, para uma elaboração de teoria baseada em conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo e discutidos no âmbito da militância, chegando por fim aos problemas essencialmente práticos que se colocam para esta própria teoria.

Enfim, nada do que coloco, tanto em termos de crítica quanto de proposições, tem por objetivo constituir uma teoria fixa, nem mesmo uma sistematização que desconsidera a particularidade de cada situação e que pode ser aplicada em qualquer contexto sem variações significativas. As próprias categorias utilizadas podem se sobrepor ou serem analisadas de maneira distinta, conforme o caso.

De qualquer maneira, creio que este artigo pode contribuir com o debate acerca da burocratização dos movimentos sociais, levantando os problemas e sugerindo possíveis saídas para eles. E espero que ele possa contribuir com isso. Ainda que o maior problema, hoje em dia, para mim, esteja naquilo que diz respeito à dificuldade de mobilização – relacionando-se, portanto, mais aos setores externos aos movimentos, não há dúvida que, para os setores mobilizados, e, portanto, dos próprios movimentos, a burocratização é um problema de primeira ordem.

OS MOVIMENTOS SOCIAIS NA HISTÓRIA: DEFINIÇÕES

Diversas produções teóricas contemporâneas vêm buscando criar ferramentas para aprofundar o estudo dos movimentos sociais. Ferramentas estas que podem ser utilizadas para análises dos movimentos sociais, mas também para um universo mais amplo de ações coletivas que envolvem as relações de poder. Utilizarei, para uma definição de objeto, conceitos desenvolvidos por autores da chamada “Teoria do Confronto Político” – em inglês, “Contentious Politics”.

O que são os movimentos sociais?

Doug McAdam, Sidney Tarrow e Charles Tilly, teóricos que hoje podem ser inscritos nesse campo da Teoria do Confronto Político, vêm se esforçando nas últimas décadas para uma definição de objeto, a partir de determinadas ferramentas conceituais. Segundo sua definição,

“um movimento social é uma interação sustentada entre pessoas poderosas e outras que não têm poder: um desafio contínuo aos detentores de poder em nome da população cujos interlocutores afirmam estar ela sendo injustamente prejudicada ou ameaçada por isso. […] Esta definição específica exclui as reivindicações coletivas de poderosos em relação a poderosos, esforços coletivos para se evadir ou se auto-renovar e alguns outros fenômenos próximos que, de fato, compartilham características importantes com as interações que estão dentro das fronteiras. Nós nos concentramos nas relações dominantes-subordinados baseados na hipótese de que o confronto que envolve uma desigualdade substancial entre os protagonistas tem características gerais distintivas que ligam movimentos sociais a revoluções, rebeliões e nacionalismos de base popular (bottom-up).” (McAdam, Tarrow, Tilly, 1996, p. 21)

Neste sentido, os movimentos sociais são definidos a partir dessa relação de poder. Poder este que circula por todo o corpo social, nas mais diferentes esferas estruturadas e relações sociais – e, portanto, circula pelas esferas econômica, política-jurídica-militar e também ideológica-cultural. Resultado destas relações de poder, os movimentos sociais surgem para organizar uma força social que tem por objetivo modificar a relação de poder estabelecida; uma relação em que os poderosos impuseram sua vontade por meio da força social mobilizada, sobrepujando outras forças e constituindo, na maioria dos casos, uma relação de dominação, chamada de “relações dominantes-subordinados”, e gerando confronto político.

Relações de confronto político foram muito comuns durante todas as épocas da história “desde tumultos por comida e rebeliões contra impostos e até guerras religiosas e revoluções”. No entanto,

“é apenas quando a ação coletiva contra antagonistas é sustentada que um episódio de confronto se torna um movimento social. Objetivos comuns, identidades coletivas e desafios identificáveis ajudam os movimentos a fazer isso, mas, a não ser que possam sustentar seu desafio, irão desaparecer numa espécie de ressentimento individualista, que James Scott chama de ‘resistência’, endurecer-se em seitas religiosas ou intelectuais ou recolher-se ao isolamento. A sustentação da ação coletiva em interação com opositores poderosos distingue o movimento social das formas iniciais de protesto que vieram antes dele na história e ainda hoje o acompanham.” (Tarrow, 2009, p. 23)

Quando e como surgiram os movimentos sociais?

É a partir desta definição que os autores consideram que as condições para o surgimento dos movimentos sociais se deram somente a partir do século XVIII. “Durante o século XVIII, pessoas na Europa Ocidental e na América do Norte deram início à decisiva criação de um novo fenômeno político. Elas começaram a criar movimentos sociais.” (Tilly e Wood, 2008, p. 3). Foi neste contexto que se reuniram as condições para que os movimentos sociais começassem uma intervenção no jogo de forças da sociedade, colocando-se como novos atores políticos – ainda que o termo “movimentos sociais” tenha sido utilizado somente a partir de meados do século XIX.

Mudanças fundamentais que possibilitaram o surgimento e o desenvolvimento dos movimentos sociais foram: a formação de governos fortes, ainda que em diversos deles possa ser notado um enfraquecimento das monarquias; a formação de organizações populares reivindicando algo a esses governos; o surgimento de uma elite propensa a governar em nome do povo; desenvolvimentos nos transportes e nas relações comerciais, que passaram a ligar povos distantes; o aumento da capacidade de ler e escrever e o surgimento de novos meios de comunicação, conectando maior número de pessoas. Era um contexto, enfim, de desenvolvimento do capitalismo e do Estado Moderno.

Foi esse contexto que possibilitou o surgimento dos movimentos sociais, no ocidente, depois de 1750, a partir de uma síntese inovadora, resultante de três elementos:

“1. Um esforço público sustentado e organizado para fazer reivindicações em relação às autoridades (chamemos isso de campanha).
2. O emprego de combinações dentre as seguintes formas de ação política: criação de associações e coalizões com propósitos especiais, reuniões públicas, marchas, vigílias, comícios, manifestações, petições, declarações para a imprensa e panfletagem (chamemos o conjunto variável de atuação de repertório do movimento social).
3. As representações públicas planejadas pelos participantes de ‘RUNC’: respeitabilidade, unidade, números e compromisso de uma parte deles e/ou daqueles em seu círculo (chamemos isso de demonstrações de RUNC).” (Tilly e Lesley 2008, pp. 3-4)

As campanhas diferenciam-se das ações que se realizam somente uma vez, estendendo-se para além disso, e possuem, geralmente, três partes envolvidas: um grupo de reivindicadores, um objeto de reivindicação e algum tipo de público. As reivindicações podem ser dirigidas ao governo, mas também a outros detentores de poder como proprietários, autoridades religiosas, entre outros. O repertório do movimento social se sobrepõe a outros tipos de fenômenos políticos e o conjunto “RUNC” influencia as formas de ação do movimento.

A partir dessas definições, pode-se entender que os movimentos sociais incluem uma infinidade de fenômenos que vão do século XVIII até os nossos dias. Movimentos mais ou menos revolucionários, em torno do local de trabalho, do local de moradia, do local de estudo, em torno das mais diversas reivindicações.

Hoje, no Brasil, pensar na questão dos movimentos sociais deve significar, portanto, uma análise sobre os mais diversos fenômenos, incluindo os diversos movimentos populares, e, portanto, também o movimento sindical. Fenômenos que existem por aqui há mais de um século.

Bibliografia completa ao final do 5º artigo da série.

Pode ler aqui os outros artigos desta série:
2) Um método de análise para os movimentos sociais
3) Mecanismos e processos de burocratização
4) Programa antiburocrático e poder popular
5) Uma discussão entre teoria e prática

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